sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Infância e adolescência em Tolstoi

A primeira parte da obra "Infância, adolescência, juventude" de Leon Tolstoi, Infância, trata das lembranças iniciais do personagem Vladimir Petrovitch, até a idade de doze anos, quando morre a sua mãe. São as lembranças do preceptor, o severo Karl Ivanovitch, das brincadeiras com o irmão Volodia, da irmâ Liubotchka e da filha da preceptora da irmâ, a pequena Katienka. Lembranças do seu pai Piotre, do administrador Jacok e de sua bomdosa mãe, Natália. Lembrança da resignada e complexa figura Natacha, que falece pouco após a morte da mãe; do mordomo Foka, do cocheiro Filipe, do criado Vacili, entre outros. Relatos de sua estadia em Moscou, na casa da avó, e a extrema vergonha de ter tentado dançar no salão uma dança que não conhecia. Recordação de um dia de caça onde toda a família participou e se divertiu, as brincadeiras e o primeiro amor por Katianka. Há também um aspecto interessante sobre a sexualidade, ou ao menos, sobre a futura sexualidade do pequeno Vladimiro. Ele relata uma estranha atração por um rapaz um pouco mais velho, Serioka Irvine, quando numa brincadeira eles quase chegam a se beijar. Mas também a atração por uma garotinha da sua idade, Sonietchka, com quem dança e conversa num baile onde é executada a mazurca. E a morte da mãe, as pessoas à cabeceira do féretro e as exéquias ocorridas antes do enterro. Falando sobre o peregino Gricha, o protagonista afirma: "Muitas têm ocorrido desde então, muitas recordações perderam já a sua importância a meus olhos e se tornaram como vagas ilusões: o peregrino Gricha, já há muito terminou a sua última jornada, mas jamais há de desvanecer-se na minha memória a impressão e os sentimentos que em mim provocou".

A segunda parte, Adolescência, começa com o retorno de toda a família para Moscou, após a morte da mamã. A descrição da viagem é admirável. Pelo caminho ele passa por algumas vilas e imagina a vida das pessoas que lá estão, pessoas que na maioria das vezes nunca mais se verão. "Uma carruagem com quatro cavalos de posta, corre velozmente ao nosso encontro. Apenas decorrem dois segundos e os rostos que, a uma distância de dois archines nos olham com curiosidade e benevolência, desaparecem já. É estranho que essas pessoas não tenham nada comigo e que talvez nunca mais torne a vê-las". O coche e a caleche que levam o narrador e outras pessoas do seu convívio diário atravessam uma tempestade e a chegada dessa, paulatinamente, culmina com a tormenta sobre eles. "No momento em que nos pomos em marcha, um relâmpago que nos cega ilumina o vale, obrigando os cavalos a pararem. Sem o mais pequeno intervalo estala um trovão ensurdecedor. Foi como se a abóboda celeste se despenhasse sobre nós". Posteriormente, ficamos sabendo da triste história de Karl Ivanovitch, que se alista no exército no lugar de seu irmão para dar uma alegria ao pai, os seus anos de guerra e a fuga após retornar à casa. Relata também os devaneios do adolescente, a conquista do irmão e a morte da avó; as dúvidas e inconsequências da adolescência; o ódio ao preceptor e a curiosidade pelo quarto das criadas; a preparação para a Faculdade de Ciências Exatas, pois lhe agradam as palavras 'seno', 'diferencial' e 'integral'.

Na terceira parte, o protagonista fala do seu círculo familiar, agora da perspectiva de um jovem que tem um melhor conhecimento sobre o mundo; as regras que ele impôs à sua vida: a forma como ele se preparou para os exames de ingresso à universidade; como foram os exames de diversas disciplinas; como passavam o dia seu irmão Volodia e seus amigos; a discussão com um senhor no restaurante; as visitas realizadas às pessoas que o seu pai recomendara, como a Senhora Irvine: "Não havia dúvida de que as minhas respostas acerca da minha família a interessavam; eram como se, ao escutar-me, recordasse melancolicamente tempos que tinham sido melhores". O protagonista também faz uma reflexão sobre o amor; sua duvidosa paixão por Sonietchka; a amizade por Dimítri; o desprezo pela irmã e por Katienka, que não o entendia bem. "Nem na infância, nem na adolescência, nem depois já mais velho, nunca tive o vício de mentir; pelo contrário, era quase demasiado e sincero e franco, mas nesse primeiro período de minha juventude era frequentemente assaltado pelo desejo de mentir descaradamente e sem motivo evidente. Digo que mentia descaradamente porque mentia em coisas nas quais era muito fácil que me descobrissem". Depois o protagonista fala de sua aproximação ao piano, que mais do que um amor à música, parecia para ele ser uma forma de atrair a atenção das garotas. Ele também consome um tempo com os romances e faz uma interessante reflexão sobre os personagens de Sue, Dumas e Paul de Kock. "As personagens mais falsas e os acontecimentos mais irreais pareciam-me tão verdadeiros como a realidade. Não me a suspeitar que o autor mentisse, pois ele nem sequer existia para mim; via surgir das páginas do livro personagens reais, vivas, assim como um série de acontecimentos. O fato de nunca ter encontrado criaturas parecidas com as desses romance não me fazia duvidar nem por um momento de que havia de encontrá-las". Durante os verões de sua juventude há ainda lembranças de passeios a cavalos com as meninas da casa, o saboreio de bagas maduras colhidas diretamente das árvores. Às vezes, tinha saudade de algumas pessoas que ficaram no passado, mas devido encontrar-se cheio de esperança e vida, essa tristeza logo se dissipava. É interessante uma descrição do apagar das luzes da casa, que lembra um pouco o que Proust escreverá algumas décadas depois sobre o apagar das luzes quando um viajante chega a um hotel. "Mas as luzes das janelas de cima iam-se apagando, os passos e as conversas eram substituídas pelo ressonar, o guarda-noturno começava a bater na tábua, o jardim tornava-se ao mesmo tempo mais sombrio e mais claro quando desapareciam os raios de luz avermelhada que vinham das janelas; a última luz da casa de jantar era levada para o vestíbulo, deixando um rato luminoso no úmido jardim (...) Finalmente apagava-se a última vela, a janela fechava-se, eu ficava sozinho". Relata ainda sobre a ascenção e declínio do amor entre o pai e a jovem Avdotia Vacilievna, os encontros do protagonista com seus camaradas de universidade, o orgulho de se sentir superior a eles e, por fim, a reprovação ao fim do primeiro ano de estudo.