sábado, 30 de agosto de 2025

Vida e morte de Simoésio

Essa passagem sobre a vida e morte de Simoésio, num texto curto consistindo de umas poucas frases, já relatei numa antiga postagem neste blog. Mas consegui outras versões[*], que vou reproduzi-las porque esta passagem da Ilíada de Homero me parece rica em significados e explora a história de uma vida em meia dúzia de frases.

A primeira refere-se à tradução de Manuel Odorico Mendes, talvez o primeiro tradutor de Homero para a língua portuguesa (no caso, estou utilizando uma reimpressão da Ciranda Cultural, 2020): Lanceia o Telamônio a Simoésio, filho de Antemion, solteiro e imberbe: No Ida, os gados a ver baixando às margens do Símois com seus pais, a mãe o teve; donde vinha-lhe o nome. Aos que o geraram em frutos não pagou ternura tanta, Pelo bronze de Ajax em flor cortado: A destra mama atinge e lhe atravessa o ombro a lançada, que o rebolca e estende. Ao pé de úmido lago o choupo liso, que a rama e o cimo exalta, o carpinteiro talha a ferro aceirado, por que em rodas curve-o de belo coche, e à beira o tronco jaz do rio a secar; destarte o jovem, a quem despoja o herói, murchece e tomba.

A segunda é a tradução de Trajano Vieira: Ájax acerta o Antemiônio Simoésio, na flor da idade. A mãe o concebera abaixo do Ida, às margens do Simoente onde estivera acompanhada pelos pais tocando a rês. Daí o nome. Mas aos pais não devolveu todo apuro da infância: a vida dura pouco, caído sob a lança de Ájax animoso. Em seu avanço, o Telamônio o alanceou no mamilo direito. A ponta sai da espádua, e ele tombou no pó, de borco, como um álamo que aflora na umidez do prado, no paul enorme, liso, ramos espoucando acima, e com o ferro cintilante um carpinteiro o talha e o arredonda para a roda bela de um carro. E jaz à beira-rio para a secagem. Ájax privou assim de vida Simoésio.

A terceira tradução é do tradutor português Frederico Lourenço: Então atingiu Ájax, filho de Télamon, o filho de Antémion - o florescente Simoésio, ainda solteiro, que outrora a mãe dera à luz junto às correntes do Simoente, quando descia do Ida; pois aí se dirigira com os pais para ver os rebanhos. Por essa razão lhe puseram o nome de Simoésio; mas aos pais não restituiu o que gastaram ao criá-lo, pois breve foi a sua vida, subjugado como foi pela lança do magnânimo Ájax. Enquanto avançava entre os primeiros foi atingido no peito, junto ao mamilo direito; e completamente lhe trespassou o ombro a lança de bronze. No chão caiu como o álamo que cresceu nas terras baixas de uma grande pradaria, liso, mas com ramos viçosos na parte de cima - álamo que com o ferro fulgente o homem fazedor de carros cortou para com ele fabricar um lindíssimo carro, e que deixou a secar, jazente, na ribeira de um rio. Deste modo Ájax, criado por Zeus, matou Simoésio, filho de Antémion.

A quarta tradução, creditada a Haroldo de Campos, já foi reproduzida neste blog em 31/01/2014: Ájax, o Telamônio, vulnera Simoésio, filho de Antemion, jovem no florir da vida, a quem a mãe, descendo do alto do monte Ida, com os pais, para junto dos rebanhos, dera à luz, perto do rio Simoento; daí, seu nome. Não pode retribuir o cuidado dos pais, a vida lhe foi curta. Ájax, sempre-ardoroso, o dobrou. Com a lança transpassou-lhe o peito, à altura do mamilo direito; varou-lhe a espádua a ponta brônzea e rojou-o no pó. Qual um álamo negro dos confins de um pântano, que ergue o tronco brunido e alteia a copa e as ramas até que um artesão de carros com luzente lâmina o abata, para as rodas de uma biga esplêndida encurvar; e ele tomba e dessora à beira-rio; assim, sob Àjax, Simoésio.

Finalmente, a quinta tradução, agora para o inglês, é devida a Emily Wilson: Then Telamonian Ajax struck and wounded young Simoesius, Anthemion's son, a healthy boy who had been born beside the streams of the Simoeis when his mother had gone to see her parents' flocks of sheep upon Mount Ida. On the way back down she gave birth by the river. That was why they named him Simoesius. That boy would never pay his loving parents back for taking care of him. His life was short, because the spear of Ajax cut him down. The young man stepped in front, and Ajax struck his chest by his right nipple, and the bronze pierced through and came out by his shoulder blade. He fell down in the dust, just like a poplar that grows upon a vast expanse of marshland - smooth on its trunk with branches high up top. A chariot maker with a bright iron axe fells it to form the rim around the wheel upon a glorious chariot. The tree lies drying out beside the riverbanks. So Simoesius, Anthemion's son, was killed by Zeus-born Ajax.

[*] Agradeço à beatriz.rabelo@svm.com.br a indicação destas várias versões, de fato, só conhecia a tradução de Haroldo de Campos.

quarta-feira, 27 de agosto de 2025

O arianismo do barão do Rio Branco

Folhei aleatoriamente um livro de Gilberto Freyre e vi o texto que reproduzo abaixo. Ele apresenta uma faceta impressionante, eugenismo/ arianismo, do barão do Rio Branco, que hoje é nome de ruas, avenidas e escolas em quase todas as cidades do Brasil. Um herói. Qual é o peso do legado deste heroismo? (Claro, aqui esta é apenas uma questão retórica).

Bem, abaixo um recorte do texto de Gilberto Freyre:

Do barão do Rio Branco se sabe que, escolhido pela República para ser ministro dos Negócios Estrangeiros do Brasil, ocupou esse cargo, inteligentemente atento a aspectos da representação brasileira no estrangeiro que sua longa residência na Europa lh ensinara serem de importância para a afirmação de prestígio de uma nação ainda jovem em formação, entre as antigas e plenamente maduras. Entre esses aspectos, a aparência dos diplomatas que, a seu ver, deviam ser eugênicos, altos, bem-apessoados, representando o que a 'raça' brasileira em formação tivesse já de melhor; e esse seu cuidado pela aparência de diplomatas brasileiros no estrangeiro levou-o ao excesso arianista de quase sistematicamente incluir entre aquelas virtudes eugênicas, que exigia dos candidatos à representação do Brasil no exterior, o aspecto caucásico dos indivíduos. Que fossem brancos ou quase brancos - quase brancos como Domício da Gama, por exemplo: quase outro Nabuco na distinção do porte e das maneiras - de bem-nascidos, bem-criados e bem-educados. E não só isso: casados com senhoras que fossem também, se não sempre belas, o mais possível elegantes no porte e no trajo, além de brancas ou quase brancas; e falassem o seu francês ou o seu inglês razoavelmente bem. Esta caracterização do segundo Rio Branco como homem atento a pormenores de ordem eugênica, estética e étnica, na escolha de enviados do Brasil ao estrangeiro, baseia-se em informações orais que nos foram transmitidas pelo seu sobrinho, e nosso amigo, já falecido, Pedro Paranhos Ferreira, nascido em 1875; e que foi na mocidade tratado pel Barão quase como se fosse um dos filhos; admitido à sua intimidade; contagiado pela sua tendência para expandir-se, sempre que a discrição inerente ao cargo diplomático o permitisse, de gourmet em gourmet, tanto quanto por algumas das suas ideias menos ostensivas porém mais constantes: uma delas, a de terem deixado os portugueses de ser um povo admirável, ao qual muito devia o Brasil, para viverem na vizinhança do ridículo, à semelhança de vários dos sul-americanos. Desse ridículo é que era uma das preocupações do Barão livrar o Brasil, para que as afirmações do progresso brasileiro sob a República - pelo seu gosto, não se teria dado a substituição do Império pela República de 89 - se fizessem dentro de uma ordem que, além de social e também ética, em geral, fosse estética, em particular; e incluísse o comportamento, a aparência, o aspecto dos brasileiros incumbidos da missão, para ele quase sagrada, de representarem o Brasil na Europa.

In "Ordem e Progresso", Gilberto Freyre