quinta-feira, 1 de maio de 2025

A(s) casa(s)

Em 1974 a avenida Oliveira Paiva, em Fortaleza, foi duplicada. Foi necessário que ela invadisse alguns terrenos e até destruisse um pouco a parte frontal de algumas residências. Na fotografia 1, apresenta-se a situação da casa de número 1417, em novembro de 1974. É possível ver que o terreno da avenida está quase um metro abaixo do terreno da moradia, mas essa depressão receberia piçarra, areia e pedregulhos antes de serem acomodas as pedras e colocado o asfalto. No terreno havia cinco coqueiros e várias goiabeiras que foram arrancados por diversos motivos nas décadas seguintes. Ali também está crescendo um belo floboyant laranja (fotografia 2), que várias decádas depois também será cortado. É verdade, aquela casa não existe mais, as paredes podem ser a mesmas, os caibros e as ripas, alguns foram substituídos, outros ainda permanecem, a pintura renovada diversas vezes, a antena sobre a casa foi tirada. Também não se escuta mais o som do vento balançando as palhas dos coqueiros. As lembranças das noites em que faltava energia da Coelce e as crianças brincavam de esconde-esconde debaixo das mesas e sob as camas, as bicicletas que eram utilizadas no vasto terreno, os jogos de futebol - traço gol ou gol a gol, o jogo de bandeirantes, as casas imaginárias nos galhos das goiabeiras...todas as lembranças estão quase desaparecendo para sempre, um pouco como aquelas do replicante do Blade Runner que levará consigo recordações que nenhum humano desconfia. O vai e vem do carro na garagem não leva mais as crianças ao colégio nem para a praia em alguns domingos, nem vai mais para a serra de Pacatuba visitar parentes e trazer bananas. Vários cachorros latiram naquele quintal: o Jacaré, o Tubarão, o Javali, o Barão, a Anxova, a Guilim, a Yune... um deles - pequeno ainda - ficou doente e todos tiveram que tomar 14 injeções antirrábicas na barriga. Os pombos - o Beleto era o mais manso -também se foram, várias tartarugas pereceram, galinhas, galos de briga. Os anos transformam tudo em pó. Depois as crianças cresceram e com elas vieram visitar a casa... novas crianças.

Cinquenta anos após o registro da fotografia 1, uma montagem de fotos da casa (fotografia 3), com registros tomados ao longo de vários anos, será uma pequena parte do tema de uma dissertação de mestrado defendida na Universidade Federal do Ceará. Intitulada "Criação de cidades possíveis: a montagem de Letícia Lampert em Random City" e defendida em 2024 por Beatriz Rabelo no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social, a dissertação tentou compreender a obra citada a partir da montagem de fotografias, dialogando-se com o texto de vários teóricos. Ao final, uma montagem autoral da casa da Oliveira Paiva inspirada na obra de Lampert é apresentada. Uma reflexão também é fornecida.


Fotografia 1: Casa na Av. Oliveira Paiva, 1417, em novembro de 1974.


Fotografia 2: Casa na Av. Oliveira Paiva, 1417, vendo-se um flamboyant laranja, em fevereiro de 2024 (uns poucos meses depois ele seria derrubado).



Fotografia 3: Montagem da casa tomada ao longo do tempo (Beatriz Rabelo).

"A casa que costumávamos conhecer deixa de existir. Porque a casa antiga era a que havia os netos correndo, as paredes de tom vivos, os almoços aos domingos, as reuniões nos natais, os aniversários cheios de balões, a mãe esperando as cartas do filho, e todas essas pequenas sutilezas que tornam o espaço em Casa. Mas um dia, você retorna, e aquilo já não existe mais, resta apenas o molde do que havia. As janelas estão sempre fechadas, os quartos estão vazios, os netos já não visitam mais e não são realizados almoços aos domingos. Impactada pelo peso do tempo, as ruas e as paisagens vão mudando. Penso nas camadas que atravessam a fachada da casa da minha avó, de como o que existe agora talvez se aproxime mais de um molde ou de uma casca. Um dia, foi uma casa marcada de risadas, de crianças correndo, de galinhas no quintal, de um cômodo oficina em que vovô Hélio trabalhava e pintava os quadros dele. Aquela casinha singela da Oliveira Paiva um dia teve um cachorro negro chamado Barão, que ficava no fundo do quintal, e diversas tartaruguinhas que as crianças pequenas gostavam de brincar quando tinham permissão. As árvores na área de trás eram grandes e fortes, e cada irmão tinha uma árvore própria, que usavam para escalar e pular de uma para outra. Havia um poço, uma estrutura para cortar cocos, uma área proibida que tinha abelhas, um chão de terra pintado de seriguelas que caiam em certas temporadas. Os almoços eram em uma grande mesa para caber vovô Hélio, vovô Lily e os cinco filhos.

"Mas agora meu avô virou saudade, e minha avó tem 95 anos e as crianças já estão crescidas. Os netos visitam ocasionalmente, mas a casa guarda mais silêncios e quietudes, do que barulhos, correrias, risadas e histórias partilhadas em voz alta. Não há mais nenhuma mãe esperando para receber do carteiro a correspondência que o filho envia da Itália, ou um pai que se junta com o filho explorador para tentar um tipo de rádio que hoje se tornou obsoleto e desconhecido pela nova geração. 'Um dia você retorna, e a casa não está lá' (Marques, 2017, p.45), não existe mais, como a dos Buendía53. O agora é outra coisa, ainda que também seja o que foi no passado. Tudo converge. As casas, as ruas, os bairros e as cidades existem de modo temporal. O espaço que ocupa muitos tempos, mas que se entrelaçam no agora." [1] 

[1] Beatriz R. Cavalcante, Criação de cidades possíveis: a montagem de Letícia Lampert em Random City, Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social, Universidade Federal do Ceará (2024).

sábado, 19 de abril de 2025

Questionando a loucura

 Vendo a loucura do engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha, um cônego o questiona. 

"- É possível, senhor fidalgo, que a leitura amarga e ociosa dos livros de cavalaria tenha exercido tanto poder em vossa mercê, a ponto de desviarem seu juízo para que acredite que está encantado, com outras coisas dessa natureza, tão distante de serem verdadeiras como a própria mentira está longe da verdade? E como é possível que haja mente humana que acredite que existiu no mundo uma infinidade de Amadises e aquela turbamulta de tantos cavaleiros famosos, tantos imperadores de Trebizonda, tantos Felixmarte de Hircânia, tanto palafrém, tantas donzelas andantes, tantas serpentes, tantos endríagos, tantos gigantes, tantas aventuras inauditas, tanto tipo de encantamentos, tantas batalhas, tantos encontros insolentes, tantos trajes elegantes, tantas princesas enamoradas, tantos escudeiros condes, tantos anões engraçados, tantos bilhetes, tantos galanteios, tantas mulheres corajosas e, enfim, tantos e tão disparatados casos como os livros de cavalaria contêm? De mim sei dizer que, quando os leio, desde que não me ponha imaginar que são todos mentiras e leviandades, me dão alguma satisfação; mas quando percebo o que são, dou com o melhor deles na parede, e até o lançaria no fogo, se o tivesse a meu lado ou nas proximidades, como merecedores de tal pena, por serem falsos e embusteiros e fora do tratamento que a natureza comum exige, e como inventores de novas seitas e de um novo modo de vida, e como quem dá oportunidade para o vulgo ignorante acreditar e considerar verdadeiros tantos disparates como contêm. E ainda têm tanto atrevimento que se atrevem a perturbar o engenho dos discretos e bem-nascidos fidalgos, como bem se vê pelo que fizeram com vossa mercê, pois o levaram a tal termo que é preciso encerá-lo numa jaula e trazê-lo num carro de bois, como quem traz ou leva um leão ou um tigre de um lugar para outro, para ganhar com ele deixando que o vejam." 

Miguel de Cervantes Saavedra, tradução de Paula Renata de Araújo & Silvia Massimini Felix, Rio de Janeiro: Antofágica, 2024.


Autoria: Gustave Doré e H. Pisan. França, 1863.

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Casa dos mortos e notas de inverno

Alieksandr Pietróvitch Goriântchicov foi um ex-condenado que viveu por dez anos em uma prisão na Sibéria. Depois, foi morar numa povoação siberiana e após alguns anos, morreu e deixou um relato extraordinário de sua vida no presídio, as ''Cenas da Casa dos Mortos''. Recuperado pelo narrador, parte dos dez anos é relatada no romance ''Memória da Casa dos Mortos''. Um destaque especial é a descrição de vários caráteres dos presidiários, como o parricida, que era um indivíduo estouvado, desorientado, muito insensato, embora esperto. Nunca lhe notei o menor indício de crueldade especial. Ou então o major que cuidava do presídio: Era por natureza um  homem severo e mau, e nada mais. (...) Possuía sem dúvida alguma aptidões; mas tudo, inclusivamente o que era bom, apresentava nele um aspecto incompleto. Ou o velho de sessenta anos, baixinho e de cabelos brancos (...) talvez não tenha encontrado na vida uma criatura tão boa e tão simpatica. Ou Sirótkin, que sob vários aspectos, era uma criatura muito enigmática (...) Era muito preguiçoso e andava mal vestido. Ou Gázin, que era um indivíduo terrível. Provocava em todos uma estranha impressão de horror. A mim parecia-me que não podia existir criatura mais feroz e abominável. Ou então os que praticam um crime apenas com o fim de irem dar à prisão e livrarem-se, deste modo, da vida, incomparavelmente mais forçada em liberdade do que no presídio. Na vida livre vive no último grau de humilhação, nunca come o suficiente e trabalha para o amo desde manhã até à noite. Ou Orlov, que segundo o narrador, nunca na minha vida encontrei um caráter humano mais forte, mais férreo do que o seu. Ou Suchílov cuja característica consistia em... anular a sua personalidade, sempre e em todos os lados e (...) representar nos assuntos comuns um papel não de segunda mas de terceira ordem. Um destaque especial: Lembro-me dessa criatura repugnante, como de um fenômeno. Vivi alguns anos com assassinos, com malfeitores repelentes; mas digo convictamente que nunca, até hoje, encontrei na vida uma degradação moral tão completa, uma depravação tão consumada e com tão insolentes baixezas como as que reunia A...v. Sobre os castigos a que alguns presos eram condenados: Muitos supliciados vinham muitíssimo ferido e no entanto raramente algum deles se queixava. Somente o seu rosto parecia transfigurar-se, empalidecer; os seus olhos brilhavam: tinham o olhar fixo, inquieto; os lábios tremiam-lhes, os dentes batiam-lhes como se quisessem morder e não raro que se mordessem até fazer sangue. Durante a madrugada... então põe-se a sonhar, a recordar o passado, e surgem quadros amplos e brilhantes, evocados pela fantasia; e recordam-se pormenores que, noutro tempo, não teríamos recordado nem nos teriam causado tanta impressão como agora. O presídio segundo o antigo morador da casa dos mortos é, em resumo, um local onde homens perderam as suas liberdades, boa parte de suas juventudes, desperdiçaram seus talentos, e suas almas são cotidianamente destruídas, amassadas pela força das chicotadas e das humilhações e esmagadas pelo peso das horas que se somam formando os dias e anos intermináveis.

''Uma história aborrecida'' é um pequeno texto que trata de episódio na vida de Ivan Ilhitch Pralínski, conselheiro efetivo do Estado, que diz que irá provar a seus colegas de Conselho, S.N. Nikíforov e S.I. Chipulenko, ser capaz de um ato de benevolência inaudita. Com a ideia de despertar sentimentos nobres em outras pessoas, que ele considerava inferiores, adentra à festa de casamento de um humilde funcionário de repartição - Sr. Pseldónimov. A intenção de Prolínski é mostrar uma extrema benevolência, mas deixando absolutamente claro a abissal diferença entre ele e o convidados da festa. Entretanto, em virtude de Prolínski ir se embebedando, à princípio com champagne, mas também com vódca, passa então de importante visitante a um ridículo comensal na festa de Pseldóminov. Termina, portanto, dormindo na casa dos noivos, de tão alcolizado que se encontrava. Por conta da ressaca moral, passa uma semana em casa, antes de ter condição de retornar às suas atividades no escritório.

Dostoiévski fez uma viagem à Europa ocidental, Alemanha, França, Inglaterra, Suiça e Itália, e alguns meses depois, já no inverno, fez um relato aos seus amigos. Esse relato é a obra ''Notas de inverno sobre impressões de verão''. O relato das pessoas e o modo como ele as vê é bem interessante, em particular os parisienses. Em relação à Berlim, ele assevera: Berlim provocou-me a mais desagradável das impressões, de maneira que não fiquei nessa cidade senão um dia. Em Colônia, teve a impressão de ser humilhado ao sentir que um cobrador lhe falava com os olhos: Já vês como é a nossa ponte, miserável russo... Não tens outro remédio senão reconhecer que és um verme, comparado com a nossa ponte e com qualquer alemão, pois na tua terra não há uma ponte como essa. Dostoiévski faz, então, uma comparação dos russos humildes com alguns europeus ocidentais; fala também de coisas que tem vergonha de dizer, mas mesmo assim, atreve-se a falar de algumas delas, como por exemplo, de uma bela fatal frequentadora de salas de festa e quartos de pouc permanência. Ela estava também muito triste. Tinha uma feições delicadas, finas: qualquer coisa de secreto e triste transparecia nos seus olhos, um tanto altivos, algo de reflexivo e triste. Dostoiévski fala extensamente do burguês da França e do que ele pode apreender de sua hipocrisia; uma parte em destaque: o burguês está disposto a perdoar muitas coisas, mas não perdoa o roubo, ainda que um homem ou os seus filhos estejam morrendo de fome. Mas se esse homem roubar por virtude, então tudo se lhe perdoa; naturalmente quer faire fortune e amealhar; pois muito bem, cumpre um dever da Natureza e da sociedade. E é por isso que, no Código, estão muito bem especificadas as diferenças entre o roubo com mau fim, isto é, por um pedaço de pão, e o roubo por uma virtude elevada. Este último está garantido em alto grau, estimulado e organizado com desusada precisão. Ele continua a análise através de uma visão bastante aguçada sobre o grupo que tem uma visão claramente curta: E que indiferença por tudo, que leviandade, que interesses tão insignificantes! O autor continua a descrição dos burgueses, caminhando para a descrição dos belos casais de de seus amante. Finalizando, ele apresenta o orgulho do burguês pela conquista da fitinha da Legião de Honra: A propósito, essa fitinha é feroz. O ono está tão orgulhoso dela que é quase impossível falar-lhe, ir com ele de comboio, estar a seu lado no teatro ou encontrá-lo no restaurante. Pouco lhe falta para que cuspa nos outros, trata a todos com maneiras de valentão descarado, resfolga, arqueja, por pura ostentação, e tanto que acabamos por sentir náuseas... Grande retrato dos européus ocidentais do meio do século XIX.


terça-feira, 5 de novembro de 2024

Do Pequeno Herói aos Humilhados e Ofendidos

No conto "O Pequeno Herói" um rapaz de onze anos vai para uma festa de aniversário que dura vários dias, na casa de um esbanjador que convida para a comemoração cerca de cem pessoas (lembrou-me ligeiramente "O bosque das ilusões perdidas", Le Grand Meaulnes, de Alain Fournier, pelo menos no que diz respeito a uma festa longa, com muitos convidados e num local fora da cidade). A festa tem lugar em uma chácara próxima a Moscou. Nessa festa o protagonista conhece diversas pessoas, em particular, uma moça loura que tira várias brincadeiras com ele, muitas vezes o envergonhando em público, e uma senhora casada, Madame M..., por quem ele se apaixona, mesmo sem entender esse sentimento. Os dias passam e o protagonista vive algumas aventuras. Ao final ele percebe que um gesto de carinho de Madame M... marca o fim de sua infância. 

Na obra "O sonho do tio", Dostoievski relata o ambiente de fofocas numa cidade do interior da Rússia. Maria Alieksándrova urde um plano para casar a sua filha Zina com um príncipe moribundo, que é parente distante de Páviel Mosliakov. Maria, numa conversa com Páviel: Nós atendemos sempre à nossa conveniência, mesmo nos atos mais desinteressados, e fazemo-lo quase inconscientemente, sem darmos por isso! Claro que todos se costumam enganar, atribuindo-os à sua nobreza de alma! Mas Páviel é apaixonado por Zina e estraga todo o plano, com a ajuda das fofoqueiras da cidade interiorana. Zina, por seu turno, é apaixonada por um pobre rapaz que morre tuberculoso. Ao final, Zina não se casa nem com o príncipe, nem com Páviel, e nem tampouco com o jovem tuberculoso, que morre em seus braços. Zina se casa com um governador de província, na fronteira do Império.

Na história "A granja de Stiepantchikovo e os seus moradores", o narrador, Sierguiéi Alieksándrovitch, relata o plano de várias pessoas que querem fazer com que o seu tio viúvo, pai de Sacha e Ilúchka, se case com Tatiana Ivanôvna, pessoa que sofrera bastante durante toda a sua vida. Tatiana tinha os olhos doces e azuis, e embora já cercados de rugas, havia tal candura na sua expressão, tanta bondade e alegria que era um prazer encontrar o seu olhar. Entretanto, o dono da granja, Coronel Ievgraf Ilhitch Rostâniev, tio do protagonista, homem de temperamento bonacheirão e conciliador, que acreditava em todos, amava secretamente a Nástienhka Ievgráfovna, a preceptora das ciranças. A casa era dominada intelectualmente por um antigo bobo do finado general casado com a mãe de Ilhitch, a generala Krokótkina, Fomá Fomitch Opískin. A descrição de Fomá: Imaginem pois um homem, o mais inútil e pusilânime, receoso das pessoas, sem préstimo para nada, completamente inútil, muitíssimo feio, mas extraordinariamente soberbo da sua pessoa e egoísta, sem possuir a mínima qualidade que pudesse justificar o seu amor-próprio, morbidamente exagerado. Fomá exercia uma grande influência sobre a velha generala que era magra e de aspecto maldosa. A generala vivia com um séquito de bajuladores, com destaque especial para a menina Pieriepelítsina, que possuía um rosto extraordinariamente feio e descolorido. Vários outros personagens moram ou frequentam diariamente a granja, como Páviel Obnóskin, Ivan Miezíntchiko; Anfissa Pietróvna; Praskóvia Ilínichna - filha do general em primeiras núpcias; Ievgraf Lariônitch, que é o pai de Nástienhka; Falálei, de uma família de mujiques, que é perseguido por Formá; Vidopliássove, entre outros. Na história percebe-se claramente o fato de que uma pessoa que tem um pouco de conhecimento no meio de ignorantes, passa a ideia de ser sábio e referência moral. Entretanto, em alguns momentos também é possível que sua máscara caia e seja percebida a verdadeira índole, como Sacha numa reunião, a falar de Formá: Formá Fomitch é um estúpido, um egoísta, um porco, um coração cheio de fel, um tirano, um mexeriqueiro, um mentiroso...

"Humilhados e ofendidos" também é uma grande história. O narrador, Ivan, foi criado por Nikolai Serguetch e Anna Andréivna, que trabalham para o orgulhoso príncipe Piotr Alexândrovitch Valkóvski. Nikolai e Anna são os pais de Natacha, por quem Ivan é apaixonado. Mas essa paixão não é correspondida, já que Natacha ama Alexei Petróvitch, o Aliocha, que é filho do príncipe Piotr. Num ano cheio de tribulações...Relembro, involuntária e constantemente, tod o último ano de minha vida, esse ano tão difícil assim. Quero anotar tudo agora mesmo; creio, aliás, que, se não tivesse inventado tal diversão para mim, já teria morrido de tristeza (...) Sim, inventei uma boa coisa. Natacha sai da casa de seu pai e vai morar com Aliocha. Isso é uma grande ofensa para Nikolai, que cuidara por um tempo em sua casa do jovem Aliocha. O príncipe Piotr Valkóvski - único, maldoso, indecente, vil e dissimulado - vê nessa atitude de Natacha uma artimanha apenas para ela entrar na aristocracia. Ivan tenta ajudar Aliocha e Natacha para que se casem o mais rápido possível. Nesse ínterim, Ivan conhece a pequena Yelena, ou Nelly, neta do velho Smith, que morreu na sua frente e pediu que procurasse a neta, talvez querendo que cuidasse dela. A partir de Nelly, Ivan descobre uma história terrificante, a história da mãe de Nelly, que cansada de sofrer e rejeitada por todos, até mesmo pelo último ser com que poderia contar, pelo seu pai, que ela havia ofendido outrora e que, por sua vez, perdera a razão em face de insuportáveis sofrimentos e humilhações. Urdindo uma trama maquiavélica, o príncipe arranja um casamento para Aliocha com a bondosa Kátia, herdeira de três milhões. Isso produz uma grande aflição em Natacha, que pede a Ivan uma ajuda. Por causa da proximidade com Natacha, o príncipe ameaça essa última e humilha Ivan. Ao mesmo tempo, Ivan descobre uma grave doença de Nelly e fica com a atenção dividida. Após conseguir a separação definitiva do filho com Natacha, o príncipe ainda vai à sua casa humilhá-la. Ivan surpreende o príncipe e o expulsa da casa de Natacha aos murros. Ivan leva a pequena Nelly para contar ao pai de Natacha a história de como sua mãe tentou pedir perdão ao pai por tê-lo abandonado e levado o seu dinheiro, mas quando esse resolve dar o perdão, a mãe de Nelly já havia morrido. O pai de Natacha, que não queria perdoar a filha, se sensibiliza e a perdoa. Nelly, já doente, passa a viver com Nikolai, Anna e Natacha, que a tratam com muito amor. Lobóiev, antigo amigo de Ivan e hoje detetive, descobre e diz ao escritor que Nelly é filha legítima do príncipe - o que roubou o velho Smith - mas não tinha como provar. Antes de morrer, Nelly deixa com Ivan uma carta de sua mãe comprovando a sua ascendência. Mas já não importa.

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Infância e adolescência em Tolstoi

A primeira parte da obra "Infância, adolescência, juventude" de Leon Tolstoi, Infância, trata das lembranças iniciais do personagem Vladimir Petrovitch, até a idade de doze anos, quando morre a sua mãe. São as lembranças do preceptor, o severo Karl Ivanovitch, das brincadeiras com o irmão Volodia, da irmâ Liubotchka e da filha da preceptora da irmâ, a pequena Katienka. Lembranças do seu pai Piotre, do administrador Jacok e de sua bomdosa mãe, Natália. Lembrança da resignada e complexa figura Natacha, que falece pouco após a morte da mãe; do mordomo Foka, do cocheiro Filipe, do criado Vacili, entre outros. Relatos de sua estadia em Moscou, na casa da avó, e a extrema vergonha de ter tentado dançar no salão uma dança que não conhecia. Recordação de um dia de caça onde toda a família participou e se divertiu, as brincadeiras e o primeiro amor por Katianka. Há também um aspecto interessante sobre a sexualidade, ou ao menos, sobre a futura sexualidade do pequeno Vladimiro. Ele relata uma estranha atração por um rapaz um pouco mais velho, Serioka Irvine, quando numa brincadeira eles quase chegam a se beijar. Mas também a atração por uma garotinha da sua idade, Sonietchka, com quem dança e conversa num baile onde é executada a mazurca. E a morte da mãe, as pessoas à cabeceira do féretro e as exéquias ocorridas antes do enterro. Falando sobre o peregino Gricha, o protagonista afirma: "Muitas têm ocorrido desde então, muitas recordações perderam já a sua importância a meus olhos e se tornaram como vagas ilusões: o peregrino Gricha, já há muito terminou a sua última jornada, mas jamais há de desvanecer-se na minha memória a impressão e os sentimentos que em mim provocou".

A segunda parte, Adolescência, começa com o retorno de toda a família para Moscou, após a morte da mamã. A descrição da viagem é admirável. Pelo caminho ele passa por algumas vilas e imagina a vida das pessoas que lá estão, pessoas que na maioria das vezes nunca mais se verão. "Uma carruagem com quatro cavalos de posta, corre velozmente ao nosso encontro. Apenas decorrem dois segundos e os rostos que, a uma distância de dois archines nos olham com curiosidade e benevolência, desaparecem já. É estranho que essas pessoas não tenham nada comigo e que talvez nunca mais torne a vê-las". O coche e a caleche que levam o narrador e outras pessoas do seu convívio diário atravessam uma tempestade e a chegada dessa, paulatinamente, culmina com a tormenta sobre eles. "No momento em que nos pomos em marcha, um relâmpago que nos cega ilumina o vale, obrigando os cavalos a pararem. Sem o mais pequeno intervalo estala um trovão ensurdecedor. Foi como se a abóboda celeste se despenhasse sobre nós". Posteriormente, ficamos sabendo da triste história de Karl Ivanovitch, que se alista no exército no lugar de seu irmão para dar uma alegria ao pai, os seus anos de guerra e a fuga após retornar à casa. Relata também os devaneios do adolescente, a conquista do irmão e a morte da avó; as dúvidas e inconsequências da adolescência; o ódio ao preceptor e a curiosidade pelo quarto das criadas; a preparação para a Faculdade de Ciências Exatas, pois lhe agradam as palavras 'seno', 'diferencial' e 'integral'.

Na terceira parte, o protagonista fala do seu círculo familiar, agora da perspectiva de um jovem que tem um melhor conhecimento sobre o mundo; as regras que ele impôs à sua vida: a forma como ele se preparou para os exames de ingresso à universidade; como foram os exames de diversas disciplinas; como passavam o dia seu irmão Volodia e seus amigos; a discussão com um senhor no restaurante; as visitas realizadas às pessoas que o seu pai recomendara, como a Senhora Irvine: "Não havia dúvida de que as minhas respostas acerca da minha família a interessavam; eram como se, ao escutar-me, recordasse melancolicamente tempos que tinham sido melhores". O protagonista também faz uma reflexão sobre o amor; sua duvidosa paixão por Sonietchka; a amizade por Dimítri; o desprezo pela irmã e por Katienka, que não o entendia bem. "Nem na infância, nem na adolescência, nem depois já mais velho, nunca tive o vício de mentir; pelo contrário, era quase demasiado e sincero e franco, mas nesse primeiro período de minha juventude era frequentemente assaltado pelo desejo de mentir descaradamente e sem motivo evidente. Digo que mentia descaradamente porque mentia em coisas nas quais era muito fácil que me descobrissem". Depois o protagonista fala de sua aproximação ao piano, que mais do que um amor à música, parecia para ele ser uma forma de atrair a atenção das garotas. Ele também consome um tempo com os romances e faz uma interessante reflexão sobre os personagens de Sue, Dumas e Paul de Kock. "As personagens mais falsas e os acontecimentos mais irreais pareciam-me tão verdadeiros como a realidade. Não me a suspeitar que o autor mentisse, pois ele nem sequer existia para mim; via surgir das páginas do livro personagens reais, vivas, assim como um série de acontecimentos. O fato de nunca ter encontrado criaturas parecidas com as desses romance não me fazia duvidar nem por um momento de que havia de encontrá-las". Durante os verões de sua juventude há ainda lembranças de passeios a cavalos com as meninas da casa, o saboreio de bagas maduras colhidas diretamente das árvores. Às vezes, tinha saudade de algumas pessoas que ficaram no passado, mas devido encontrar-se cheio de esperança e vida, essa tristeza logo se dissipava. É interessante uma descrição do apagar das luzes da casa, que lembra um pouco o que Proust escreverá algumas décadas depois sobre o apagar das luzes quando um viajante chega a um hotel. "Mas as luzes das janelas de cima iam-se apagando, os passos e as conversas eram substituídas pelo ressonar, o guarda-noturno começava a bater na tábua, o jardim tornava-se ao mesmo tempo mais sombrio e mais claro quando desapareciam os raios de luz avermelhada que vinham das janelas; a última luz da casa de jantar era levada para o vestíbulo, deixando um rato luminoso no úmido jardim (...) Finalmente apagava-se a última vela, a janela fechava-se, eu ficava sozinho". Relata ainda sobre a ascenção e declínio do amor entre o pai e a jovem Avdotia Vacilievna, os encontros do protagonista com seus camaradas de universidade, o orgulho de se sentir superior a eles e, por fim, a reprovação ao fim do primeiro ano de estudo.

segunda-feira, 15 de julho de 2024

O quarto quarenta e cinco

A estrada apresentava-se clara, apenas corujas e sapos eram ouvidos numa lagoa próxima. Mas certa voz assombrosa interrompeu-me o caminho na noite de quase lua cheia.

- Senhor, senhor, me dê um instante.

quarta-feira, 25 de outubro de 2023

A Colação de Grau

Hoje seria um dia especial. Para qualquer pai, a colação de grau de um filho é um dia bastante simbólico. Um cordão umbilical invisível que o unia à infância e à juventude da criança é cortado e o filho encontra-se adulto para sempre. As brincadeiras na piscina, as viagens imaginárias no barco que estava sempre prestes a partir e os filmes de Branca de Neve ficaram irremediavelmente no passado. A partir de agora há um novo futuro e os passos dos formandos vão começar a construir suas próprias estradas.

Encontrava-me numa grande euforia pelo que esperava presenciar dali a poucas horas. Esqueci de informar, chamo-me Melquíades, é um nome estranho eu sei, mas os pais têm essa prerrogativa de escolher os nomes dos pequenos. Quando estava chegando ao meu carro no estacionamento do prédio, escuto um pouco surpreso: - Seu Melquíades, o senhor estacionou o seu carro muito próximo do meu.

Olhei rapidamente e vi que o carro do vizinho é que se encontrava sobre a listra divisória amarela, portanto, a observação dele era um completo absurdo.

- Meu caro, retruquei, acho que o senhor está enganado, seu carro é que avançou na minha garagem.

Enquanto entabulava essa discussão, lembrei-me que em diversas ocasiões já ajudara esse vizinho: levara-o para comprar uma bateria nova, ajudara-o a trocar um pneu e ainda conseguira, certa vez, água destilada para colocar no motor superaquecido. Ajudei-o por ajudar, nada de altruísmo de minha parte. Mas em relação a mim, o seu relacionamento amistoso sempre possuía uma restrição, um senão, um porém, um problema. Eu bem que poderia ter mantido uma distância de segurança, mas não o fiz.  

- Você é um estúpido, acrescentou descontroladamente o vizinho. Eu não conseguia entender perfeitamente aquela agressividade. Pensei que se rebatesse com algum argumento um pouco convincente poderia até ser agredido fisicamente. 

- Vou requer uma reunião para discutirmos a sua insolência, esbravejava o homem completamente transtornado. - Vou lhe expulsar daqui. Tudo era surreal.

Entrei o mais rápido possível no meu carro e saí, deixando o vizinho com o rosto assustador refletindo no retrovisor. Meu ânimo inicial por um importante acontecimento que se aproximava - a colação de grau do meu filho - fora completamente despedaçado por um fato absolutamente singelo. O vizinho sabia que eu não estava errado, sua atitude foi apenas para me maltratar, sabe lá Deus o porquê.

Em direção ao trabalho, quis esquecer, mas a ameaça me perturbara fortemente, pelo menos durante aquele dia. Cheguei chateado no escritório e não consegui concatenar as ideias. Fiquei olhando a folha de papel sobre a mesa como se ela quisesse me avisar que tudo aquilo era pequeno demais: - Você é um idiota!

Saí mais cedo e caminhei em torno da praça central com suas árvores centenárias. As caleches e os coches foram há muito substituídos por carros extremamente modernos. Calaram-se os chicotes, falam agora silenciosamente as placas de silício. - Meu Deus, como passa o tempo!

No anfiteatro lotado, os jovens e familiares acompanhados de suas alegrias ocupavam quase todo o espaço. Sentado no chão, pois não havia mais cadeiras disponíveis, rabisquei um papel para encerrar o dia: - Filho, hoje completa-se um ciclo simbólico na sua vida. Acredito no futuro, apesar dos anos, os seus pesos, tropeços e bocejos.

Eu iria escrever mais alguns parágrafos, mas uma bota chutou para longe a caneta que estava em minha mão. Está bom mesmo assim. Amanhã terei um novo dia de tarefas, vou já para casa dormir.