quinta-feira, 1 de maio de 2025

A(s) casa(s)

Em 1974 a avenida Oliveira Paiva, em Fortaleza, foi duplicada. Foi necessário que ela invadisse alguns terrenos e até destruisse um pouco a parte frontal de algumas residências. Na fotografia 1, apresenta-se a situação da casa de número 1417, em novembro de 1974. É possível ver que o terreno da avenida está quase um metro abaixo do terreno da moradia, mas essa depressão receberia piçarra, areia e pedregulhos antes de serem acomodas as pedras e colocado o asfalto. No terreno havia cinco coqueiros e várias goiabeiras que foram arrancados por diversos motivos nas décadas seguintes. Ali também está crescendo um belo floboyant laranja (fotografia 2), que várias decádas depois também será cortado. É verdade, aquela casa não existe mais, as paredes podem ser a mesmas, os caibros e as ripas, alguns foram substituídos, outros ainda permanecem, a pintura renovada diversas vezes, a antena sobre a casa foi tirada. Também não se escuta mais o som do vento balançando as palhas dos coqueiros. As lembranças das noites em que faltava energia da Coelce e as crianças brincavam de esconde-esconde debaixo das mesas e sob as camas, as bicicletas que eram utilizadas no vasto terreno, os jogos de futebol - traço gol ou gol a gol, o jogo de bandeirantes, as casas imaginárias nos galhos das goiabeiras...todas as lembranças estão quase desaparecendo para sempre, um pouco como aquelas do replicante do Blade Runner que levará consigo recordações que nenhum humano desconfia. O vai e vem do carro na garagem não leva mais as crianças ao colégio nem para a praia em alguns domingos, nem vai mais para a serra de Pacatuba visitar parentes e trazer bananas. Vários cachorros latiram naquele quintal: o Jacaré, o Tubarão, o Javali, o Barão, a Anxova, a Guilim, a Yune... um deles - pequeno ainda - ficou doente e todos tiveram que tomar 14 injeções antirrábicas na barriga. Os pombos - o Beleto era o mais manso -também se foram, várias tartarugas pereceram, galinhas, galos de briga. Os anos transformam tudo em pó. Depois as crianças cresceram e com elas vieram visitar a casa... novas crianças.

Cinquenta anos após o registro da fotografia 1, uma montagem de fotos da casa (fotografia 3), com registros tomados ao longo de vários anos, será uma pequena parte do tema de uma dissertação de mestrado defendida na Universidade Federal do Ceará. Intitulada "Criação de cidades possíveis: a montagem de Letícia Lampert em Random City" e defendida em 2024 por Beatriz Rabelo no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social, a dissertação tentou compreender a obra citada a partir da montagem de fotografias, dialogando-se com o texto de vários teóricos. Ao final, uma montagem autoral da casa da Oliveira Paiva inspirada na obra de Lampert é apresentada. Uma reflexão também é fornecida.


Fotografia 1: Casa na Av. Oliveira Paiva, 1417, em novembro de 1974.


Fotografia 2: Casa na Av. Oliveira Paiva, 1417, vendo-se um flamboyant laranja, em fevereiro de 2024 (uns poucos meses depois ele seria derrubado).



Fotografia 3: Montagem da casa tomada ao longo do tempo (Beatriz Rabelo).

"A casa que costumávamos conhecer deixa de existir. Porque a casa antiga era a que havia os netos correndo, as paredes de tom vivos, os almoços aos domingos, as reuniões nos natais, os aniversários cheios de balões, a mãe esperando as cartas do filho, e todas essas pequenas sutilezas que tornam o espaço em Casa. Mas um dia, você retorna, e aquilo já não existe mais, resta apenas o molde do que havia. As janelas estão sempre fechadas, os quartos estão vazios, os netos já não visitam mais e não são realizados almoços aos domingos. Impactada pelo peso do tempo, as ruas e as paisagens vão mudando. Penso nas camadas que atravessam a fachada da casa da minha avó, de como o que existe agora talvez se aproxime mais de um molde ou de uma casca. Um dia, foi uma casa marcada de risadas, de crianças correndo, de galinhas no quintal, de um cômodo oficina em que vovô Hélio trabalhava e pintava os quadros dele. Aquela casinha singela da Oliveira Paiva um dia teve um cachorro negro chamado Barão, que ficava no fundo do quintal, e diversas tartaruguinhas que as crianças pequenas gostavam de brincar quando tinham permissão. As árvores na área de trás eram grandes e fortes, e cada irmão tinha uma árvore própria, que usavam para escalar e pular de uma para outra. Havia um poço, uma estrutura para cortar cocos, uma área proibida que tinha abelhas, um chão de terra pintado de seriguelas que caiam em certas temporadas. Os almoços eram em uma grande mesa para caber vovô Hélio, vovô Lily e os cinco filhos.

"Mas agora meu avô virou saudade, e minha avó tem 95 anos e as crianças já estão crescidas. Os netos visitam ocasionalmente, mas a casa guarda mais silêncios e quietudes, do que barulhos, correrias, risadas e histórias partilhadas em voz alta. Não há mais nenhuma mãe esperando para receber do carteiro a correspondência que o filho envia da Itália, ou um pai que se junta com o filho explorador para tentar um tipo de rádio que hoje se tornou obsoleto e desconhecido pela nova geração. 'Um dia você retorna, e a casa não está lá' (Marques, 2017, p.45), não existe mais, como a dos Buendía53. O agora é outra coisa, ainda que também seja o que foi no passado. Tudo converge. As casas, as ruas, os bairros e as cidades existem de modo temporal. O espaço que ocupa muitos tempos, mas que se entrelaçam no agora." [1] 

[1] Beatriz R. Cavalcante, Criação de cidades possíveis: a montagem de Letícia Lampert em Random City, Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social, Universidade Federal do Ceará (2024).

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