sábado, 19 de abril de 2025

Questionando a loucura

 Vendo a loucura do engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha, um cônego o questiona. 

"- É possível, senhor fidalgo, que a leitura amarga e ociosa dos livros de cavalaria tenha exercido tanto poder em vossa mercê, a ponto de desviarem seu juízo para que acredite que está encantado, com outras coisas dessa natureza, tão distante de serem verdadeiras como a própria mentira está longe da verdade? E como é possível que haja mente humana que acredite que existiu no mundo uma infinidade de Amadises e aquela turbamulta de tantos cavaleiros famosos, tantos imperadores de Trebizonda, tantos Felixmarte de Hircânia, tanto palafrém, tantas donzelas andantes, tantas serpentes, tantos endríagos, tantos gigantes, tantas aventuras inauditas, tanto tipo de encantamentos, tantas batalhas, tantos encontros insolentes, tantos trajes elegantes, tantas princesas enamoradas, tantos escudeiros condes, tantos anões engraçados, tantos bilhetes, tantos galanteios, tantas mulheres corajosas e, enfim, tantos e tão disparatados casos como os livros de cavalaria contêm? De mim sei dizer que, quando os leio, desde que não me ponha imaginar que são todos mentiras e leviandades, me dão alguma satisfação; mas quando percebo o que são, dou com o melhor deles na parede, e até o lançaria no fogo, se o tivesse a meu lado ou nas proximidades, como merecedores de tal pena, por serem falsos e embusteiros e fora do tratamento que a natureza comum exige, e como inventores de novas seitas e de um novo modo de vida, e como quem dá oportunidade para o vulgo ignorante acreditar e considerar verdadeiros tantos disparates como contêm. E ainda têm tanto atrevimento que se atrevem a perturbar o engenho dos discretos e bem-nascidos fidalgos, como bem se vê pelo que fizeram com vossa mercê, pois o levaram a tal termo que é preciso encerá-lo numa jaula e trazê-lo num carro de bois, como quem traz ou leva um leão ou um tigre de um lugar para outro, para ganhar com ele deixando que o vejam." 

Miguel de Cervantes Saavedra, tradução de Paula Renata de Araújo & Silvia Massimini Felix, Rio de Janeiro: Antofágica, 2024.


Autoria: Gustave Doré e H. Pisan. França, 1863.

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