sábado, 8 de novembro de 2025

A sombra de Gógol

Há muito tempo - décadas, na verdade - li "Almas Mortas", de Nicolai Gógol, e só possuía na memória as ideias gerais deste grande livro. Lendo agora "Lições de literatura russa" de Vladimir Nabokov [1], senti vontade de (re)ler a obra prima de Gógol.

Nabokov apontava Gógol, juntamente com Leon Tolstói e Anton Tchekhov, os três grandes escritores da literatua russa. É curioso ele não colocar Fiodor Dostoievski no mesmo nível destes três, mas isso não vem ao caso neste momento.

Entre as muitas características do mestre russo, Nabokov destaca que Gógol passa de uma ideia a outra, de uma imagem a outra através de passos firmes e galopes entre as frases. Ele fornece alguns exemplos destas características em seu livro, como o reproduzido abaixo:

"Os vigorosos latidos dos cachorros que recepcionaram Tchitchikov quando chegou à casa da Sra. Korobotchka também se mostram igualmente férteis:

'Enquanto isso, os cães latiam em todos os tons possíveis: um deles, com a cabeça jogada para trás, se permitiu ululações tão conscienciosas como se estivesse sendo reiamente pago por seus esforços; outro ladrou alto e repetidamente, mas do modo rotineiro como o sacristão de sua aldeia badala o sino: entre os dois, se ouvia, como a sineta de uma carruagem dos correios, os agudos persistentes do que era provavelmente um filhote; tudo isso coroado pelos tons graves que pertenciam presumivelmente a um velho animal dotado de implacável disposição canina, pois sua voz era tão rouca quando a de um baixo profundo num coro de igreja, quando o concerto está chegando ao clímax, com os tenores se pondo na ponta dos pés na ânsia de produzir uma nota alta e todos os demais também curvando a cabeça para trás e erguendo o corpo - e só ele, com o queixo mal escanhoado enfiado no lenço do pescoço, afasta os joelhos, quase desce até o chão e de lá emite a nota que faz tremer e chocalhar os vidros das janelas.'

Assim o latido de um cachorro gera um coralista de igreja. Em outro trecho (quando Pável chega à casa de Sobakevitch), nasce um músico de modo mais compleco e que traz o símile entre o céu nublado e o soldado bêbado".  

Enquanto em Tchecov, se um elemento qualquer aparecer num conto, ele deve desempenhar alguma função importante na trama, em Gógol, personagens secundários podem surgir sem menos se esperar, atuarem despretenciosamente e, a seguir, desaparecerem para sempre. Nabokov mostra este aspecto da escrita de Gógol retirando uma das primeiras partes de "Almas Mortas": 

"Assim, a conversa acabou. Além do mais, quando o coche chegou à porta da hospedaria, por acaso passou um jovem usando calças de sarja branca muito justas e curtas, bem como um casaco de fraque então na moda, debaixo do qual se via o peitilho preso com um alfinete de bronze de Tula em formato de pistola. O jovem virou a cabeça, olhou de volta para a carruagem, segurou o boné que o vento ia arrancando, e seguiu o seu caminho". (...) Agora a análise de Nabokov: "Outro toque especial pode ser exemplificado pelo transeunte acidental - o jovem retratado com uma repentina e totalmente irrelevante riqueza de detalhes: ele aparece como se fosse permanecer no livro (como muitos do homúnculos de Gógol parecem desejar - mas em vão). Qualquer outro autor de sua época estaria obrigado a assim iniciar o parágrafo seguinte: "Ivan, pois esse era o nome do jovem..." Mas não: uma rajada de vento interrompe sua olhadela e ele segue em frente, não voltando a ser mencionado".

E ainda em relação a "Almas Mortas" e os personagens secundários, Nabokov lembra de um certo tenente, que aparece em um único parágrafo, para depois sumir e nunca mais retornar:

"Tchichikov, após fechar com êxito sua transação espectral com os proprietários de terras, foi recepcionado pelos maiorais da cidade e vai para a cama muito bêbado: seu cocheiro e seu criado saem de mansinho para fazer uma farra e voltam cambaleantes para a hospedaria, de maneira muito cortês se amparando um no outro, e logo caem no sono também.

'[...] soltando roncos com uma incrível densidade sonora, ecoados pelo fino chiado nasal de seu senhor no quarto ao lado. Logo depois, tudo ficou em silêncio e o sono profundo tomou conta da hospedaria: só uma luz permanecia acesa na pequena janela de um certo tenente que chegara de Riazan e era aparentemente um amante de botas, já tendo adquirido quatro pares e continuando a experimentar um quinto par. Vez por outra ia até a cama como se tencionasse tirá-las para se deitar, porém simplesmente não podia; na verdade, aquelas botas eram bem-feitas e, por bastante tempo, ele ficou girando o pé e inspecionando o arrojado formato de um tacão admiravelmente produzido.'

Assim termina o capítulo - e aquele tenente continua a experimenar suas imortais botas de cano alto, e o couro brilha, e a vela arde firme e brilhante na única janela iluminada de uma cidadezinha morta no mais fundo de uma noite estrelada. Não conheço nenhuma descrição mais lírica do silêncio noturno do que esa Rapsódia das Botas."

[1] V. Nabokov, lições de literatura russa, trad. Jorio Dauster, São Paulo: Fósforo, 2021.

sábado, 30 de agosto de 2025

Vida e morte de Simoésio

Essa passagem sobre a vida e morte de Simoésio, num texto curto consistindo de umas poucas frases, já relatei numa antiga postagem neste blog. Mas consegui outras versões[*], que vou reproduzi-las porque esta passagem da Ilíada de Homero me parece rica em significados e explora a história de uma vida em meia dúzia de frases.

A primeira refere-se à tradução de Manuel Odorico Mendes, talvez o primeiro tradutor de Homero para a língua portuguesa (no caso, estou utilizando uma reimpressão da Ciranda Cultural, 2020): Lanceia o Telamônio a Simoésio, filho de Antemion, solteiro e imberbe: No Ida, os gados a ver baixando às margens do Símois com seus pais, a mãe o teve; donde vinha-lhe o nome. Aos que o geraram em frutos não pagou ternura tanta, Pelo bronze de Ajax em flor cortado: A destra mama atinge e lhe atravessa o ombro a lançada, que o rebolca e estende. Ao pé de úmido lago o choupo liso, que a rama e o cimo exalta, o carpinteiro talha a ferro aceirado, por que em rodas curve-o de belo coche, e à beira o tronco jaz do rio a secar; destarte o jovem, a quem despoja o herói, murchece e tomba.

A segunda é a tradução de Trajano Vieira: Ájax acerta o Antemiônio Simoésio, na flor da idade. A mãe o concebera abaixo do Ida, às margens do Simoente onde estivera acompanhada pelos pais tocando a rês. Daí o nome. Mas aos pais não devolveu todo apuro da infância: a vida dura pouco, caído sob a lança de Ájax animoso. Em seu avanço, o Telamônio o alanceou no mamilo direito. A ponta sai da espádua, e ele tombou no pó, de borco, como um álamo que aflora na umidez do prado, no paul enorme, liso, ramos espoucando acima, e com o ferro cintilante um carpinteiro o talha e o arredonda para a roda bela de um carro. E jaz à beira-rio para a secagem. Ájax privou assim de vida Simoésio.

A terceira tradução é do tradutor português Frederico Lourenço: Então atingiu Ájax, filho de Télamon, o filho de Antémion - o florescente Simoésio, ainda solteiro, que outrora a mãe dera à luz junto às correntes do Simoente, quando descia do Ida; pois aí se dirigira com os pais para ver os rebanhos. Por essa razão lhe puseram o nome de Simoésio; mas aos pais não restituiu o que gastaram ao criá-lo, pois breve foi a sua vida, subjugado como foi pela lança do magnânimo Ájax. Enquanto avançava entre os primeiros foi atingido no peito, junto ao mamilo direito; e completamente lhe trespassou o ombro a lança de bronze. No chão caiu como o álamo que cresceu nas terras baixas de uma grande pradaria, liso, mas com ramos viçosos na parte de cima - álamo que com o ferro fulgente o homem fazedor de carros cortou para com ele fabricar um lindíssimo carro, e que deixou a secar, jazente, na ribeira de um rio. Deste modo Ájax, criado por Zeus, matou Simoésio, filho de Antémion.

A quarta tradução, creditada a Haroldo de Campos, já foi reproduzida neste blog em 31/01/2014: Ájax, o Telamônio, vulnera Simoésio, filho de Antemion, jovem no florir da vida, a quem a mãe, descendo do alto do monte Ida, com os pais, para junto dos rebanhos, dera à luz, perto do rio Simoento; daí, seu nome. Não pode retribuir o cuidado dos pais, a vida lhe foi curta. Ájax, sempre-ardoroso, o dobrou. Com a lança transpassou-lhe o peito, à altura do mamilo direito; varou-lhe a espádua a ponta brônzea e rojou-o no pó. Qual um álamo negro dos confins de um pântano, que ergue o tronco brunido e alteia a copa e as ramas até que um artesão de carros com luzente lâmina o abata, para as rodas de uma biga esplêndida encurvar; e ele tomba e dessora à beira-rio; assim, sob Àjax, Simoésio.

Finalmente, a quinta tradução, agora para o inglês, é devida a Emily Wilson: Then Telamonian Ajax struck and wounded young Simoesius, Anthemion's son, a healthy boy who had been born beside the streams of the Simoeis when his mother had gone to see her parents' flocks of sheep upon Mount Ida. On the way back down she gave birth by the river. That was why they named him Simoesius. That boy would never pay his loving parents back for taking care of him. His life was short, because the spear of Ajax cut him down. The young man stepped in front, and Ajax struck his chest by his right nipple, and the bronze pierced through and came out by his shoulder blade. He fell down in the dust, just like a poplar that grows upon a vast expanse of marshland - smooth on its trunk with branches high up top. A chariot maker with a bright iron axe fells it to form the rim around the wheel upon a glorious chariot. The tree lies drying out beside the riverbanks. So Simoesius, Anthemion's son, was killed by Zeus-born Ajax.

[*] Agradeço à beatriz.rabelo@svm.com.br a indicação destas várias versões, de fato, só conhecia a tradução de Haroldo de Campos.

quarta-feira, 27 de agosto de 2025

O arianismo do barão do Rio Branco

Folhei aleatoriamente um livro de Gilberto Freyre e vi o texto que reproduzo abaixo. Ele apresenta uma faceta impressionante, eugenismo/ arianismo, do barão do Rio Branco, que hoje é nome de ruas, avenidas e escolas em quase todas as cidades do Brasil. Um herói. Qual é o peso do legado deste heroismo? (Claro, aqui esta é apenas uma questão retórica).

Bem, abaixo um recorte do texto de Gilberto Freyre:

Do barão do Rio Branco se sabe que, escolhido pela República para ser ministro dos Negócios Estrangeiros do Brasil, ocupou esse cargo, inteligentemente atento a aspectos da representação brasileira no estrangeiro que sua longa residência na Europa lh ensinara serem de importância para a afirmação de prestígio de uma nação ainda jovem em formação, entre as antigas e plenamente maduras. Entre esses aspectos, a aparência dos diplomatas que, a seu ver, deviam ser eugênicos, altos, bem-apessoados, representando o que a 'raça' brasileira em formação tivesse já de melhor; e esse seu cuidado pela aparência de diplomatas brasileiros no estrangeiro levou-o ao excesso arianista de quase sistematicamente incluir entre aquelas virtudes eugênicas, que exigia dos candidatos à representação do Brasil no exterior, o aspecto caucásico dos indivíduos. Que fossem brancos ou quase brancos - quase brancos como Domício da Gama, por exemplo: quase outro Nabuco na distinção do porte e das maneiras - de bem-nascidos, bem-criados e bem-educados. E não só isso: casados com senhoras que fossem também, se não sempre belas, o mais possível elegantes no porte e no trajo, além de brancas ou quase brancas; e falassem o seu francês ou o seu inglês razoavelmente bem. Esta caracterização do segundo Rio Branco como homem atento a pormenores de ordem eugênica, estética e étnica, na escolha de enviados do Brasil ao estrangeiro, baseia-se em informações orais que nos foram transmitidas pelo seu sobrinho, e nosso amigo, já falecido, Pedro Paranhos Ferreira, nascido em 1875; e que foi na mocidade tratado pel Barão quase como se fosse um dos filhos; admitido à sua intimidade; contagiado pela sua tendência para expandir-se, sempre que a discrição inerente ao cargo diplomático o permitisse, de gourmet em gourmet, tanto quanto por algumas das suas ideias menos ostensivas porém mais constantes: uma delas, a de terem deixado os portugueses de ser um povo admirável, ao qual muito devia o Brasil, para viverem na vizinhança do ridículo, à semelhança de vários dos sul-americanos. Desse ridículo é que era uma das preocupações do Barão livrar o Brasil, para que as afirmações do progresso brasileiro sob a República - pelo seu gosto, não se teria dado a substituição do Império pela República de 89 - se fizessem dentro de uma ordem que, além de social e também ética, em geral, fosse estética, em particular; e incluísse o comportamento, a aparência, o aspecto dos brasileiros incumbidos da missão, para ele quase sagrada, de representarem o Brasil na Europa.

In "Ordem e Progresso", Gilberto Freyre

sábado, 28 de junho de 2025

Foi-se Forsyth

Há muito tempo eu tinha um colega que colecionava, e lia, os livros de Sidney Sheldon, Harold Robbins, Frederick Forsyth e Stephen King. Eu sentia um pouco de inveja da disposição deste meu amigo, que devorava vários volumes dos referidos autores ao longo dos anos. Eu sabia que as histórias destes escritores eram bastante criativas e com muita imaginação, e dizia que algum dia eu iria ler pelo menos uma obra de cada um deles.

Na semana passada morreu Frederick Forsyth e dando uma rápida olhadela na estante de casa, percebi que havia alguns volumes do Stephen King - adquirido por uma das filhas - que acredito que seja o último sobrevivente entre os quatro autores. Um deles contém quatro contos, enquanto o segundo volume é um romance bastante espesso.

Nenhum dos quatro autores ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, não tenho capacidade para julgar a qualidade das obras, mas imagino que não seja desonra para nenhum grande vendedor de livros, não receber esta honraria. A gente lembra que Guimarães Rosa não recebeu, também passaram em brancas nuvens Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz, João Ubaldo Ribeiro e Jorge Amado. Esse pessoal não deixa de ser gigante por não ter ido à Estocolmo receber uma medalha e um milhão de dólares. Fabiano, a cachorra Baleia, Diadorim, o retirante da seca de quinze, os capitães de areia são personagens eternos. 

quinta-feira, 1 de maio de 2025

A(s) casa(s)

Em 1974 a avenida Oliveira Paiva, em Fortaleza, foi duplicada. Foi necessário que ela invadisse alguns terrenos e até destruisse um pouco a parte frontal de algumas residências. Na fotografia 1, apresenta-se a situação da casa de número 1417, em novembro de 1974. É possível ver que o terreno da avenida está quase um metro abaixo do terreno da moradia, mas essa depressão receberia piçarra, areia e pedregulhos antes de serem acomodas as pedras e colocado o asfalto. No terreno havia cinco coqueiros e várias goiabeiras que foram arrancados por diversos motivos nas décadas seguintes. Ali também está crescendo um belo floboyant laranja (fotografia 2), que várias decádas depois também será cortado. É verdade, aquela casa não existe mais, as paredes podem ser a mesmas, os caibros e as ripas, alguns foram substituídos, outros ainda permanecem, a pintura renovada diversas vezes, a antena sobre a casa foi tirada. Também não se escuta mais o som do vento balançando as palhas dos coqueiros. As lembranças das noites em que faltava energia da Coelce e as crianças brincavam de esconde-esconde debaixo das mesas e sob as camas, as bicicletas que eram utilizadas no vasto terreno, os jogos de futebol - traço gol ou gol a gol, o jogo de bandeirantes, as casas imaginárias nos galhos das goiabeiras...todas as lembranças estão quase desaparecendo para sempre, um pouco como aquelas do replicante do Blade Runner que levará consigo recordações que nenhum humano desconfia. O vai e vem do carro na garagem não leva mais as crianças ao colégio nem para a praia em alguns domingos, nem vai mais para a serra de Pacatuba visitar parentes e trazer bananas. Vários cachorros latiram naquele quintal: o Jacaré, o Tubarão, o Javali, o Barão, a Anxova, a Guilim, a Yune... um deles - pequeno ainda - ficou doente e todos tiveram que tomar 14 injeções antirrábicas na barriga. Os pombos - o Beleto era o mais manso -também se foram, várias tartarugas pereceram, galinhas, galos de briga. Os anos transformam tudo em pó. Depois as crianças cresceram e com elas vieram visitar a casa... novas crianças.

Cinquenta anos após o registro da fotografia 1, uma montagem de fotos da casa (fotografia 3), com registros tomados ao longo de vários anos, será uma pequena parte do tema de uma dissertação de mestrado defendida na Universidade Federal do Ceará. Intitulada "Criação de cidades possíveis: a montagem de Letícia Lampert em Random City" e defendida em 2024 por Beatriz Rabelo no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social, a dissertação tentou compreender a obra citada a partir da montagem de fotografias, dialogando-se com o texto de vários teóricos. Ao final, uma montagem autoral da casa da Oliveira Paiva inspirada na obra de Lampert é apresentada. Uma reflexão também é fornecida.


Fotografia 1: Casa na Av. Oliveira Paiva, 1417, em novembro de 1974.


Fotografia 2: Casa na Av. Oliveira Paiva, 1417, vendo-se um flamboyant laranja, em fevereiro de 2024 (uns poucos meses depois ele seria derrubado).



Fotografia 3: Montagem da casa tomada ao longo do tempo (Beatriz Rabelo).

"A casa que costumávamos conhecer deixa de existir. Porque a casa antiga era a que havia os netos correndo, as paredes de tom vivos, os almoços aos domingos, as reuniões nos natais, os aniversários cheios de balões, a mãe esperando as cartas do filho, e todas essas pequenas sutilezas que tornam o espaço em Casa. Mas um dia, você retorna, e aquilo já não existe mais, resta apenas o molde do que havia. As janelas estão sempre fechadas, os quartos estão vazios, os netos já não visitam mais e não são realizados almoços aos domingos. Impactada pelo peso do tempo, as ruas e as paisagens vão mudando. Penso nas camadas que atravessam a fachada da casa da minha avó, de como o que existe agora talvez se aproxime mais de um molde ou de uma casca. Um dia, foi uma casa marcada de risadas, de crianças correndo, de galinhas no quintal, de um cômodo oficina em que vovô Hélio trabalhava e pintava os quadros dele. Aquela casinha singela da Oliveira Paiva um dia teve um cachorro negro chamado Barão, que ficava no fundo do quintal, e diversas tartaruguinhas que as crianças pequenas gostavam de brincar quando tinham permissão. As árvores na área de trás eram grandes e fortes, e cada irmão tinha uma árvore própria, que usavam para escalar e pular de uma para outra. Havia um poço, uma estrutura para cortar cocos, uma área proibida que tinha abelhas, um chão de terra pintado de seriguelas que caiam em certas temporadas. Os almoços eram em uma grande mesa para caber vovô Hélio, vovô Lily e os cinco filhos.

"Mas agora meu avô virou saudade, e minha avó tem 95 anos e as crianças já estão crescidas. Os netos visitam ocasionalmente, mas a casa guarda mais silêncios e quietudes, do que barulhos, correrias, risadas e histórias partilhadas em voz alta. Não há mais nenhuma mãe esperando para receber do carteiro a correspondência que o filho envia da Itália, ou um pai que se junta com o filho explorador para tentar um tipo de rádio que hoje se tornou obsoleto e desconhecido pela nova geração. 'Um dia você retorna, e a casa não está lá' (Marques, 2017, p.45), não existe mais, como a dos Buendía53. O agora é outra coisa, ainda que também seja o que foi no passado. Tudo converge. As casas, as ruas, os bairros e as cidades existem de modo temporal. O espaço que ocupa muitos tempos, mas que se entrelaçam no agora." [1] 

[1] Beatriz R. Cavalcante, Criação de cidades possíveis: a montagem de Letícia Lampert em Random City, Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social, Universidade Federal do Ceará (2024).

sábado, 19 de abril de 2025

Questionando a loucura

 Vendo a loucura do engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha, um cônego o questiona. 

"- É possível, senhor fidalgo, que a leitura amarga e ociosa dos livros de cavalaria tenha exercido tanto poder em vossa mercê, a ponto de desviarem seu juízo para que acredite que está encantado, com outras coisas dessa natureza, tão distante de serem verdadeiras como a própria mentira está longe da verdade? E como é possível que haja mente humana que acredite que existiu no mundo uma infinidade de Amadises e aquela turbamulta de tantos cavaleiros famosos, tantos imperadores de Trebizonda, tantos Felixmarte de Hircânia, tanto palafrém, tantas donzelas andantes, tantas serpentes, tantos endríagos, tantos gigantes, tantas aventuras inauditas, tanto tipo de encantamentos, tantas batalhas, tantos encontros insolentes, tantos trajes elegantes, tantas princesas enamoradas, tantos escudeiros condes, tantos anões engraçados, tantos bilhetes, tantos galanteios, tantas mulheres corajosas e, enfim, tantos e tão disparatados casos como os livros de cavalaria contêm? De mim sei dizer que, quando os leio, desde que não me ponha imaginar que são todos mentiras e leviandades, me dão alguma satisfação; mas quando percebo o que são, dou com o melhor deles na parede, e até o lançaria no fogo, se o tivesse a meu lado ou nas proximidades, como merecedores de tal pena, por serem falsos e embusteiros e fora do tratamento que a natureza comum exige, e como inventores de novas seitas e de um novo modo de vida, e como quem dá oportunidade para o vulgo ignorante acreditar e considerar verdadeiros tantos disparates como contêm. E ainda têm tanto atrevimento que se atrevem a perturbar o engenho dos discretos e bem-nascidos fidalgos, como bem se vê pelo que fizeram com vossa mercê, pois o levaram a tal termo que é preciso encerá-lo numa jaula e trazê-lo num carro de bois, como quem traz ou leva um leão ou um tigre de um lugar para outro, para ganhar com ele deixando que o vejam." 

Miguel de Cervantes Saavedra, tradução de Paula Renata de Araújo & Silvia Massimini Felix, Rio de Janeiro: Antofágica, 2024.


Autoria: Gustave Doré e H. Pisan. França, 1863.