Há muito tempo - décadas, na verdade - li "Almas Mortas", de Nicolai Gógol, e só possuía na memória as ideias gerais deste grande livro. Lendo agora "Lições de literatura russa" de Vladimir Nabokov [1], senti vontade de (re)ler a obra prima de Gógol.
Nabokov apontava Gógol, juntamente com Leon Tolstói e Anton Tchekhov, os três grandes escritores da literatua russa. É curioso ele não colocar Fiodor Dostoievski no mesmo nível destes três, mas isso não vem ao caso neste momento.
Entre as muitas características do mestre russo, Nabokov destaca que Gógol passa de uma ideia a outra, de uma imagem a outra através de passos firmes e galopes entre as frases. Ele fornece alguns exemplos destas características em seu livro, como o reproduzido abaixo:
"Os vigorosos latidos dos cachorros que recepcionaram Tchitchikov quando chegou à casa da Sra. Korobotchka também se mostram igualmente férteis:
'Enquanto isso, os cães latiam em todos os tons possíveis: um deles, com a cabeça jogada para trás, se permitiu ululações tão conscienciosas como se estivesse sendo reiamente pago por seus esforços; outro ladrou alto e repetidamente, mas do modo rotineiro como o sacristão de sua aldeia badala o sino: entre os dois, se ouvia, como a sineta de uma carruagem dos correios, os agudos persistentes do que era provavelmente um filhote; tudo isso coroado pelos tons graves que pertenciam presumivelmente a um velho animal dotado de implacável disposição canina, pois sua voz era tão rouca quando a de um baixo profundo num coro de igreja, quando o concerto está chegando ao clímax, com os tenores se pondo na ponta dos pés na ânsia de produzir uma nota alta e todos os demais também curvando a cabeça para trás e erguendo o corpo - e só ele, com o queixo mal escanhoado enfiado no lenço do pescoço, afasta os joelhos, quase desce até o chão e de lá emite a nota que faz tremer e chocalhar os vidros das janelas.'
Assim o latido de um cachorro gera um coralista de igreja. Em outro trecho (quando Pável chega à casa de Sobakevitch), nasce um músico de modo mais compleco e que traz o símile entre o céu nublado e o soldado bêbado".
Enquanto em Tchecov, se um elemento qualquer aparecer num conto, ele deve desempenhar alguma função importante na trama, em Gógol, personagens secundários podem surgir sem menos se esperar, atuarem despretenciosamente e, a seguir, desaparecerem para sempre. Nabokov mostra este aspecto da escrita de Gógol retirando uma das primeiras partes de "Almas Mortas":
"Assim, a conversa acabou. Além do mais, quando o coche chegou à porta da hospedaria, por acaso passou um jovem usando calças de sarja branca muito justas e curtas, bem como um casaco de fraque então na moda, debaixo do qual se via o peitilho preso com um alfinete de bronze de Tula em formato de pistola. O jovem virou a cabeça, olhou de volta para a carruagem, segurou o boné que o vento ia arrancando, e seguiu o seu caminho". (...) Agora a análise de Nabokov: "Outro toque especial pode ser exemplificado pelo transeunte acidental - o jovem retratado com uma repentina e totalmente irrelevante riqueza de detalhes: ele aparece como se fosse permanecer no livro (como muitos do homúnculos de Gógol parecem desejar - mas em vão). Qualquer outro autor de sua época estaria obrigado a assim iniciar o parágrafo seguinte: "Ivan, pois esse era o nome do jovem..." Mas não: uma rajada de vento interrompe sua olhadela e ele segue em frente, não voltando a ser mencionado".
E ainda em relação a "Almas Mortas" e os personagens secundários, Nabokov lembra de um certo tenente, que aparece em um único parágrafo, para depois sumir e nunca mais retornar:
"Tchichikov, após fechar com êxito sua transação espectral com os proprietários de terras, foi recepcionado pelos maiorais da cidade e vai para a cama muito bêbado: seu cocheiro e seu criado saem de mansinho para fazer uma farra e voltam cambaleantes para a hospedaria, de maneira muito cortês se amparando um no outro, e logo caem no sono também.
'[...] soltando roncos com uma incrível densidade sonora, ecoados pelo fino chiado nasal de seu senhor no quarto ao lado. Logo depois, tudo ficou em silêncio e o sono profundo tomou conta da hospedaria: só uma luz permanecia acesa na pequena janela de um certo tenente que chegara de Riazan e era aparentemente um amante de botas, já tendo adquirido quatro pares e continuando a experimentar um quinto par. Vez por outra ia até a cama como se tencionasse tirá-las para se deitar, porém simplesmente não podia; na verdade, aquelas botas eram bem-feitas e, por bastante tempo, ele ficou girando o pé e inspecionando o arrojado formato de um tacão admiravelmente produzido.'
Assim termina o capítulo - e aquele tenente continua a experimenar suas imortais botas de cano alto, e o couro brilha, e a vela arde firme e brilhante na única janela iluminada de uma cidadezinha morta no mais fundo de uma noite estrelada. Não conheço nenhuma descrição mais lírica do silêncio noturno do que esa Rapsódia das Botas."
[1] V. Nabokov, lições de literatura russa, trad. Jorio Dauster, São Paulo: Fósforo, 2021.



