domingo, 29 de julho de 2018

Brasil com futuro?

Enquanto a miséria aumenta a olhos vistos por causa das atitudes irresponsáveis do governo golpista de Michel Temer traduzidas pelo fim dos programas Bolsa Família, Farmácia Popular e Mais Médicos, entre outros, dívidas de grandes bancos – da ordem de bilhões de reais – são perdoadas e impostos de petroleiras estrangeiras – da ordem de um trilhão de reais nos próximos vinte anos – são dispensados. Além disso, grandes campos de petróleo do Pré-Sal são fornecidos às companhias internacionais, a Embraer, que foi construída ao longo de décadas com muito esforço, cedida à empresa Boeing americana, e o sistema Eletrobrás é privatizado... O patrimônio do povo brasileiro e as suas condições básicas de vida estão sendo destruídos numa articulação onde se juntaram o judiciário elitista, a imprensa patrimonialista, os empresários de rapina e parte do parlamento representado por políticos corruptos de diversos partidos de direita, ou seja, a elite do atraso, na expressão muito bem cunhada pelo sociólogo Jessé de Sousa. Será que o Brasil terá um futuro?



sábado, 14 de julho de 2018

Cem anos de Bergman

Há exatos cem anos nascia o cineasta sueco Ingmar Bergman. Autor de filmes memoráveis como Persona, O Sétimo Selo e Morangos Silvestres, entre outros, é cultuado por muitos admiradores do cinema. Particularmente, acho Morangos Silvestres (Smultronstället) uma das mais belas obras do cinema. Assisti esse filme pela primeira vez numa sala de projeção no Conjunto Nacional, em São Paulo, tendo saído pela manhã de Campinas, onde morava, especificamente para esse fim. Na sessão das treze horas, apenas quatro ou cinco pessoas ocupavam o imenso salão de cadeiras vazias... era um ambiente misterioso para uma obra reveladora de grandes facetas da mente e da alma humanas. 


Prof. Isak Borg (Victor Sjöström) e Sara (Bibi Andersson) em Morangos Silvestres.

O filme Morangos Silvestres conta a história de um médico e professor, Isak Borg, que vai da cidade de Estocolmo para Lund de carro com sua nora para receber uma homenagem na universidade pelos seus 50 anos de profissão. A história toda acontece ao longo de um dia durante o qual se intercalam sonhos e realidade. O filme possui muitos simbolismos. Ele começa com um sonho do Prof. Borg pouco antes do amanhecer e termina também com um sonho logo após ele deitar-se à noite. No total são quatro sonhos, o que já poderia sugerir uma ideia de totalidade, ou ao menos, uma complementaridade entre a realidade e o sonho.

No primeiro sonho o Prof. Borg encontra-se num local desconhecido e desabitado da cidade onde os relógios não têm ponteiros, ou seja, como se o tempo não passasse. Ele vê então a chegada de uma carruagem desgovernada no interior da qual encontra-se um caixão de defunto. A roda da carruagem engancha num poste e os cavalos que a puxam ficam forçando para frente e para trás até ela quebrar e o caixão escorregar, ficando parcialmente aberto. Quando o professor se aproxima do caixão, a mão do cadáver que se encontra fora o agarra e quando ele olha para o corpo que está sendo carregado percebe que o mesmo está com os olhos abertos e para sua grande surpresa é o próprio professor! 

Ao acordar desse primeiro sonho o Prof. Borg, interpretado magistralmente por Victor Sjöström, resolve ir de carro com sua nora, ao invés de avião como estava combinado com todos, para desgosto de sua ajudante de muito anos, Agda. Ela então, chateada, sugere que esta é a atitude de um velho resmungão e egoísta. Durante a viagem o Prof. Borg tem uma dura conversa com a nora Marianne, interpretada por Ingrid Thulin, e se detém para descansar num local onde sua família passava o verão há muito tempo atrás: o campo dos morangos silvestres. 

Enquanto Marianne vai dar um mergulho num lago próximo, o Prof. Borg descansa na relva e sonha pela segunda vez naquele dia. Então, a imagem clara da manhã se dissolve em imagens ainda mais claras das lembranças, nas palavras do próprio Isak. Ele caminha até a casa e se reencontra com os seus familiares do passado. Lá estão os irmãos, a mãe, o tio e a prima Sara, o amor de sua vida. Enquanto Sara, interpretada pela atriz Bibi Andersson, está colhendo morangos silvestres para presentear o tio surdo que faz aniversário, ela é assediada pelo irmão do Prof. Borg, Sigmund. Sara está indecisa entre Isak, com sua inteligência e frieza, e Sigmund, um sujeito bonachão e brincalhão. 

Após assistir a cena do almoço e a dúvida de Sara, ele acorda com uma garota pedindo uma carona pois está indo para a Itália com dois amigos. A garota, que também se chama Sara e é interpretada pela mesma Bibi Andersson, está em dúvida com quem dos dois amigos ela deve namorar, uma vez que um deles é muito racional e o outro é sensível e religioso. Essa coincidência parece revisitar o passado do próprio Prof. Borg com seu irmão e sua prima (Sara se casara com Sigmund e tivera seis filhos). O simbolismo não passa despercebido pelo professor e ele comenta sobre a semelhança física da garota Sara com sua prima, que no momento tem setenta e cinco anos.

Mais à frente o carro que transporta as cinco pessoas quase se choca com outro que movimentava-se em sentido contrário. Isak e Marianne dão carona ao casal que vinha no outro veículo após o mesmo ter sofrido avarias. Entretanto, o casal fica brigando verbal e fisicamente na frente dos três jovens que estão no carro, lembrando ao Prof. Borg a sua própria vida pregressa quando era casado com Karen, já falecida. Por conta disso, Isak e Marianne pedem para o casal sair do carro. Mais adiante todos param num posto de gasolina na cidade aonde vive a mãe quase centenária de Isak. O frentista reconhece o antigo médico do lugarejo e o elogia como "o melhor médico do mundo". Isak pensa em voz alta que não deveria ter nunca saído dali. Isak vai com Marianne visitar a sua velha mãe e a nora percebe quão fria e dura era a avó do seu marido, Evald.

Novamente na estrada com a direção do carro sob Marianne, Isak sonha pela terceira vez. Inicialmente ele vê a sua prima Sara numa casa com o seu irmão Sigmund. Ela toca piano e a seguir os dois se dirigem a uma mesa onde será servido um jantar. A seguir, o velho Isak entra em uma casa onde vai passar por um teste de Medicina. O avaliador faz alguns questionamentos que ele não sabe ou não lembra a resposta. No exame prático o avaliador mostra uma mulher que está com o rosto ligeiramente inclinado e lhe pergunta o diagnóstico. Isak toca o seu pescoço e conclui que ela está morta. Quase imediatamente a mulher levanta a cabeça e dá uma sonora gargalhada. Isak, com o argumento de sua idade avançada - já tem 78 anos - pede que o avaliador seja indulgente. Entretanto o julgador o reprova por incompetência, frieza, egoísmo e falta de compreensão. Finalmente o avaliador o chama para um pátio ao lado e diz que quer lhe mostrar mais alguma coisa. A uns poucos metros Isak consegue ver a sua esposa Karen o traindo com outro homem. Karen diz que Isak, com sua típica frieza e atitude superior, vai perdoá-la. 

Pouco antes de chegar a Lund, Marianne tem uma conversa com o seu sogro e diz que agora entende a frieza de Evald, parece que vem da família, da mãe de Isak, do professor... Ela fala ainda que está grávida mas Evald não quer o filho mas mesmo assim ela vai tê-lo. Após a cerimônia em que o Prof. Isak Borg recebe um título da Universidade, os três jovens batem à sua janela e cantam uma canção para homenageá-lo. O Prof. Borg tem uma conversa com o filho Evald; Marianne vem se despedir dele de uma maneira amigável sugerindo uma reconciliação entre eles, ou ao menos uma compreensão após o dia de convivência. O Prof. Borg dorme e sonha pela quarta vez. Ele caminha novamente pelo claro caminho dos morangos silvestres guiado pelas mãos da prima Sara que o leva até a beira do lago. De lá ele acena e recebe de volta o carinho dos pais que o retribui com sorridentes acenos. 

Bergman no seu livro Imagens afirma que ao fim e ao cabo o filme se deveu principalmente a Viktor Sjöström que pegou o texto e inseriu a sua própria experiência "o seu sofrimento, misantropia, indiferença, brutalidade, dor, medo, solidão, gelo, calor, acidez e tédio (...) não era mais o meu filme, era o filme de Viktor Sjöström". Enfim, um filme belíssimo, com atuações excepcionais, cheio de poesia e reflexões acerca da vida e sobre a aproximação da morte. Um filme para dezenas e dezenas de reflexões. Parabéns, Bergman!


Marianne (Ingrid Thulin) e Prof. Isak Borg (Victor Sjöström) em Morangos Silvestres.


sábado, 7 de julho de 2018

A morte de Bergotte

Na última postagem lembrei de pesadelos atribuídos ao personagem Bergotte, de Em busca do tempo perdido, no quinto volume (A prisioneira) de Marcel Proust, na tradução de Manuel Bandeira e Lourdes Sousa de Alencar. Duas páginas à frente Proust faz uma curiosa descrição da morte do escritor Bergotte. Embora a narrativa não seja tão triste quanto aquela relativa à morte da avó do narrador, entretanto, trata-se de uma interessante reflexão sobre as obras de arte que são deixadas pelos artistas, os seus legados, que de certa forma parecem lhes fornecer um caráter de imortalidade. Mais alguns belíssimos parágrafos do gênio francês: 

“Morreu nas circunstâncias seguintes. Por causa de uma crise de uremia sem maior gravidade lhe haviam prescrito o repouso. Lendo, porém, num crítico, que na Vista de Delft de Ver Meer (emprestada pelo museu de Haia para uma exposição holandesa), quadro que ele apreciava muitíssimo e julgava conhecer em todos os pormenores, havia um panozinho de muro amarelo (de que não se lembrava) tão bem pintado que era como uma preciosa obra de arte chinesa, de uma beleza completa em si mesma, Bergotte comeu umas batatas, saiu de casa e entrou na exposição. Logo nos primeiros degraus que teve de subir sentiu umas tonteiras. Passou em frente de alguns quadros e teve a impressão da secura e da inutilidade de uma arte tão factícia, e que não valia as correntes de ar e de sol de um palazzo de Veneza, ou de uma simples casa à beira-mar. Enfim, chegou diante do Ver Meer, de que se lembrava como sendo mais luminoso, mais diferente de tudo o que conhecia, mas onde, graças ao artigo do crítico, reparou pela primeira vez numas figurinhas vestidas de azul, na tonalidade cor-de-rosa da areia e finalmente na preciosa matéria do pequenino pano de muro amarelo. As tonteiras aumentava; não tirava os olhos, como faz o menino com a borboleta amarela que quer pegar, do precioso panozinho de muro. ‘Assim é que eu deveria ter escrito’, dizia consigo. ‘Meus últimos  livros são demasiado secos, teria sido preciso passar várias camadas de tinta, tornar a minha frase preciosa em si mesma, como este panozinho de muro’. Não lhe passava, porém, despercebida a gravidade das tonteiras. Em celestial balança lhe aparecia; num prato a sua própria vida, no outro o panozinho de muro tão bem pintado de amarelo. Sentia Bergotte que imprudentemente arriscara o primeiro pelo segundo. ‘Não gostaria nada’, disse consigo, ‘de vir a ser para os jornais da tarde a nota sensacional desta exposição’.

Repetia para si mesmo: ‘Panozinho de muro amarelo com alpendre suspenso, panozinho de muro amarelo’. Nisso deixou-se cair subitamente, num canapé circular; subitamente também, cessou de pensar que estava em jogo a sua vida e, recobrando o otimismo, disse consigo: ‘É uma simples indigestão causada por aquelas batatas mal cozidas, não há de ser nada’. Nova crise prostou-o, ele rolou do canapé ao chão, acorreram todos os visitantes e guardas. Estava morto. Morto para sempre? Quem o poderá dizer? (...) não existe razão alguma em nossas condições de vida nesta terra para que nos julguemos obrigados a praticar o bem, a ser delicados, mesmo a ser corteses, nem tampouco para que o artista culto se julgue obrigado a recomeçar vinte vezes um trabalho, cuja admiração que suscitará pouco lhe há de importar ao corpo comido pelos vermes, como o panozinho de muro amarelo pintado com tanta ciência e requinte por um artista desconhecido para sempre apenas identificado pelo nome de Ver Meer. (...)

Enterraram-no, mas durante toda a noite fúnebre, nas vitrinas iluminadas, os seus livros, dispostos três a três, velavam como anjos de asas espalmadas e pareciam, para aquele que já não existia, o símbolo da sua ressurreição.”

sexta-feira, 6 de julho de 2018

Pesadelo

Vivemos um tempo sombrio, parece que estamos imersos em um pesadelo horroroso. O governo traidor e golpista, incompetente para resolver os problemas mais simples da população, destruiu os avanços que haviam sido conseguidos no período dos treze anos anteriores. Uma série de ações mostram a destruição do bem estar social como a reforma trabalhista, o fim do Programa Farmácia Popular, o fim do Programa Mais Médicos, o lucro imoral do Banco Itaú e o perdão de sua sonegação bilionária, a liberação de agrotóxicos que estão banidos há muito tempo da maioria dos países... Outras ações são claramente atos de lesa-pátria, que merecerão análises futuras: a dispensa de pagamento de impostos por petroleiras estrangeiras da ordem de 1 trilhão de reais nos vinte próximos anos, a entrega de boa parte dos campos de produção de petróleo do Pré-Sal a estas mesmas empresas, a tentativa de privatizar o sistema Eletrobrás, a entrega da base de lançamento de foguetes de Alcântara, a venda de 80 % da Embraer... São pesadelos que são acrescentados dia a dia por novas desagradáveis surpresas. Nesse ambiente de penumbra um dos poucos alentos é a literatura. Lembrei-me, então, de uma passagem de "A prisioneira" a quinta parte da obra Em busca do tempo perdido de Marcel Proust. Essa passagem refere-se aos dias que antecedem a morte do grande escritor Bergotte, quando insônias e pesadelos o assolam diariamente.

"Nos meses que lhe precederam a morte, sofria Bergotte de insônias, e o que é pior, logo que adormecia, de pesadelos, por causa dos quais despertava, fazia por não readormecer (...) Quando antes falava de pesadelos, entendia por isso coisas aborrecíveis que se passavam dentro de seu cérebro. Agora era como vindos de fora que sentia a mão munida de um esfregão molhado, a qual, passada na cara dele por uma mulher má, se empenhava em despertá-lo ou cócegas intoleráveis nos quadris ou a raiva de um cocheiro que, furioso por ter Bergotte murmurado no sono que ele guiava mal, investia contra o escritor e lhe mordia os dedos, os serrava. Enfim, logo que se lhe fazia no sono escuridão suficiente, procedia a natureza a uma espécie de ensaio, sem indumentária, do ataque de apoplexia que o havia de matar: Bergotte entrava de carro no pórtico da nova residência dos Swann, queria apear-se. Uma vertigem fulminante pregava-o ao banco, tentava o porteiro ajudá-lo a descer, mas ele permanecia sentado, incapaz de se levantar, de se aprumar nas pernas. Procurava agarrar-se ao pilar de pedra que havia perto, mas não encontrada nele apoio bastante para se pôr em pé."