Após o golpe de 2016, três acontecimentos marcaram de forma mais contundente a perda de direitos dos cidadãos, entre várias outros que continuam a ocorrer: a PEC do teto de gastos, a reforma trabalhista e a reforma previdenciária. O capital teve bastantes motivos para sorrir - e aqui a gente humaniza o desumanizador apenas para usar a linguagem dos economistas neoliberais e da mídia hegemônica financiada por ele - como se pode atestar num único exemplo, o lucro apenas do Banco Bradesco em 2019, que foi de R$ 25 bilhões. O desmatamento recorde da Amazônia, as queimadas gigantescas dessa mesma floresta, a invasão das terras e assassinatos de indígenas, o derramamento de petróleo nas praias do Nordeste, a 'venda' da Embraer para a Boeing, a entrega da Base de Foguetes de Alcântara para os Estados Unidos, a venda da Petrobrás Distribuidora, a entrega de vários poços de petróleo do Pré-Sal para empresas internacionais, a privatização da Casa da Moeda, a privatização dos Correios, da Caixa Econômica e do Banco do Brasil, a liberação para a exploração mineral em terras indígenas e o seu consequente extermínio, as notas inacreditavelmente erradas do ENEM, o apagão no INSS, o aumento dos assassinatos pelas Polícias Militares, são facetas perversas de uma mesma realidade. Ao mesmo tempo, pessoas como vários membros da família do presidente da República são poupados de investigação pela justiça e pelos órgãos de fiscalização comandados pelo ex-juiz Sérgio Moro, os ministros do Turismo e do Meio Ambiente são acusados de vários crimes e a Damares e o Araújo ficam falando bobagem, servindo de bobos da corte.
Uma análise bastante primorosa do primeiro ano de governo de Jair Bolsonaro foi fornecido pela Profa. Emérita da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Céli Regina Jardim Pinto, no texto reproduzido abaixo denominado "O governo Bolsonaro: um projeto vitorioso?". Trata-se do sexto ensaio de uma série sobre o primeiro ano de Jair Bolsonaro na Presidência, constituindo parte de uma parceria entre o 'Nexo" e a Associação Brasileira de Ciência Política.
O governo Bolsonaro: um projeto vitorioso?
Interpretar o governo Bolsonaro
como um fracasso é um equívoco perigoso. Ao mesmo tempo, anunciá-lo como a
vitória definitiva de um projeto autoritário-fascista é igualmente equivocado.
O projeto do governo é inserir o Brasil no neoliberalismo profundo,
riscando do mapa a presença do Estado na economia e nas políticas públicas
sociais.
Bolsonaro tem importância relativa nesse projeto. É uma figura
caricata, violenta, inculta, mas que interpela com êxito largas parcelas da
população. A Presidência caiu no seu colo como um prêmio de loteria. É
transparente que ele não tem ideia do que é ser presidente da república, mas
isso tem pouca importância para o projeto. Certamente é foco de chacota em
encontros internacionais, mas há cinismo nisso. Ao mesmo tempo que deve ser
desconfortável para o sofisticado Macron, a cientista Merkel ou o milionário
Trump conviver com Bolsonaro, eles sabem que o ex-tenente é um peão importante
no xadrez do imperialismo capitalista do século 21.
O governo se organiza com muita esperteza para cumprir esse papel.
Enganam-se os que imaginam que estamos frente a dois governos paralelos, um
competentemente neoliberal e técnico, outro culturalmente obscuro e ideológico.
Essa divisão é falsa e serve a muitos interesses.
A equipe econômica aparece como respeitável para todos os setores
conservadores do país: os empresários de diferentes plumagens e a grande mídia,
mesmo as que Bolsonaro “detesta”, como a Globo e a Folha. Na última, colunas de
opinião dão chances a críticas, já na Globo, mesmo em sua versão mais
sofisticada, a Globonews, as reformas propostas pelo governo são anunciadas por
todos os seus jornalistas como necessárias e bem-vindas. Nisso a mídia é uma
aliada importante do Poder Legislativo, liderado pelo hábil Rodrigo Maia na
Câmara dos Deputados, que articula a aprovação de reformas ultraconservadoras.
O governo teve uma importante vitória com a aprovação da reforma da Previdência
e certamente outras virão.
Mas o projeto desestruturante necessita de uma sociedade desorganizada
e passiva, uma sociedade não demandante. Essa talvez seja a questão mais séria
que o neoliberalismo em geral enfrenta no século 21, pois há sociedades
mobilizadas que se espalham por diferentes partes do mundo, com organizações
diversas e demandas variadas. Seria uma imprudência analítica encontrar uma
causa comum para todas as manifestações que ocorrem desde 2011, mas seria
igualmente temeroso atribuí-las à mera coincidência.
O problema é que não se elimina a consciência crítica da sociedade em
um passe de mágica. No Brasil, o governo Bolsonaro faz dois ataques
estratégicos e simultâneos nesse sentido: o primeiro reduz ao mínimo, quando
não zera, recursos orçamentários para as áreas da cultura e da educação: faz
ameaça contra o cinema, o teatro, as artes visuais, a música, a educação em
todos os níveis e a ciência. O segundo ataque se dirige aos setores que
necessitam ser convencidos de que cultura, ciências, luta por direitos, por
liberdade e igualdade são farsas. Qualifica todas as áreas da cultura e da
educação como produtoras do marxismo cultural, da ideologia de gênero e de
riscos à família e à religião e assim dá sentido à farsa, central para
fragilizar as classes populares e minimizar suas possíveis demandas. Nesse
esforço, as igrejas evangélicas são aliadas fundamentais.
Não se pode satanizar as igrejas evangélicas e afirmar que elas só
existem para apoiar governos como o de Bolsonaro. O crescimento exponencial das
denominações pentecostais é um fenômeno complexo e não pode ser atribuído a
cenários momentosos. Mas o que se deve pontuar aqui é que essas igrejas formam
lideranças e congregações predispostas a se colocarem em antagonismo às
liberdades individuais, às ciências, à cultura, à luta por direitos.
As congregações são celeiros para teorias terraplanistas,
antiecológicas, antivacinação, antiborto, a favor da família tradicional, da
violência policial, do armamento e do encarceramento. Criam espaços
privilegiados para ministros que afirmam ter visões de entidades religiosas, ou
como o da educação, que trata de convencer a população de que nas universidades
há grandes plantações de maconha e que seus laboratórios de química produzem
anfetaminas. Nesse cenário, dirigir carros de aplicativos acaba parecendo muito
mais digno do que perder tempo em antros amorais como as universidades. Em um
país com índices muito baixos de leitura, a fala do presidente, ao dizer que os
livros didáticos têm texto demais, cai como uma luva.
O êxito do governo na desmobilização e/ou paralisia política da
sociedade pode ser medido, paradoxalmente, por dois eventos muito festejados
pelas forças de oposição: as revelações do Intercept Brasil, que mostraram as
formas não republicanas como foram montadas as provas contra Lula pelo então
juiz Moro na operação Lava Jato, e a soltura do próprio Lula, por consequência
da decisão do STF contra a prisão de condenados em segunda instância. Moro
continua sendo o ministro mais popular do governo, mais popular que o próprio
Bolsonaro. E Lula, solto, fez pouca diferença.
A questão mais séria em tudo isso,
que necessita ser pensada para além de justificativas ao sucesso de Bolsonaro
como consequência das fake news, é por que, após um ano de governo — que
precarizou a vida das camadas mais pobres da população; reduziu verbas para a
saúde; atacou a educação e, principalmente seu setor de maior êxito, as
universidades federais; matou pobres, principalmente crianças e jovens negros
nas comunidades; desqualificou a cultura; perseguiu movimentos sociais — não
está sendo produzida uma reação popular capaz de ameaçar esse projeto autoritário, obscurantista, no
limite do fascismo?
O sucesso do governo não pode ser medido pela melhoria das condições
de vida do brasileiro em qualquer aspecto, seja a saúde, a educação, o emprego.
Não foi a isso que veio, mas, sim, na confortável apatia da população frente a
quem está a destruir com precisão cirúrgica conquistas fundamentais para os
brasileiros, algumas inclusive garantidas na Constituição de 1988.
2020 é um ano eleitoral, portanto um ano muito imprevisível. É esperar
para ver.