quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Tempo de cavalos bêbados

Esse foi um ano verdadeiramente duro para os brasileiros. Teve a pandemia, teve a devastação da riqueza da biodiversidade, teve o sofrimento da legião de desempregados em filas quilométricas para receberem esmola do governo federal, teve a fome e teve o aumento da miséria. Na reunião presidencial do dia 22 de abril, o ministro Paulo Guedes, amigo dos banqueiros e do capital internacional, assim falou em relação aos funcionários públicos: "E é nessa confusão toda, todo mundo achando que estamos distraídos, abraçaram a gente, enrolaram com a gente, nós já botamos a granada no bolso do inimigo, dois anos sem aumento do salário". Um equino relinchando alegremente como se tivesse acabado de se fartar de grama. Vender carteiras de banco público subavaliadas para bancos privados terem lucros astronômicos é a face cruel da moeda; a outra face é acabar com os serviços públicos massacrando os funcionários e a população. É o governo que agiganta as consequências da reforma trabalhista, da reforma da previdência e da PEC dos gastos. A fome, a peste e a morte avançando como cavaleiros do Apocalípse ávidos por destruição, soldados frios e indiferentes, agentes do grande capital... 

Por coincidência, ontem assisti a um filme - o último do ano - que apresenta um enredo sobre sofrimento e superação. "Tempo de embebedar cavalos", (Irã, 2000) dirigido por Bahman Ghobadi, conta a história de cinco órfãos que moram numa vila miserável na fronteira entre o Irã e o Iraque. Os irmãos Ayoub (Ayoub Ahmadi) e Ameneh (Amaneh Ekhtiar-Dini) cuidam de um caçula doente, Madi (Madi Ekhtiar-Dini), enquanto trabalham numa cidade distante. Num dos retornos para casa, os três e mais outras crianças são barrados num posto de fiscalização e têm que vencer o gelo da montanha para chegarem às suas casas. Lá a irmã mais velha, Rojin (Rojin Younessi) cuida da irmãzinha caçula. A doença de Madi piora e para tentar salvar a criança será necessário que Rojin se submeta a um casamento com um iraquiano da fronteira e que Ayoub transporte mercadorias em trilhas com emboscadas entre os dois países. Nessa travessia perigosa, com caminhos repletos de gelo, para os cavalos suportarem o frio intenso, recebem bebida alcóolica. Mas eventualmente, os cavalos acabam ficando embriagados. Em uma das travessias, para fugir dos saqueadores, Ayoub conta apenas com o seu próprio cavalo bêbado. 

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Centenário de Eric Rohmer

Esse ano comemorou-se o centenário de nascimento de Eric Rohmer, nascido em 21 de março de 1920 como Jean-Marie Maurice Schérer, importante cineasta francês que foi um dos participantes do grupo denominado Nouvelle Vague e editor da influente revista Cahiers du Cinéma. Entre as várias obras do diretor destacam-se seis dirigidas por ele na década de 1980, que ele denominou de "Comédias e Provérbios". Os filmes dessa série são os seguintes: A mulher do aviador (1981), O casamento perfeito (1982), Pauline na praia (1983), As noites de lua cheia (1984), O raio verde (1986) e O amigo de minha amiga (1987). Abaixo, um breve resumo de cada um deles. 

O primeiro da série, A mulher do aviador, é um ótimo filme. Baseado no provérbio "É impossível não pensar em nada", trata de um dia na vida de um jovem apaixonado, que está sendo corroído pelo ciúme. Sobre esse filme já fizemos uma postagem para esse blog (12/10/2020). De certa forma, essa primeira película revisita uma obra de 1967 de Eric Rohmer, A Colecionadora, com Patrick Bouchou, Haydée Politoff e Daniel Pommereulle, na qual o enredo também gira em torno de um triângulo amoroso (tema que aparecerá novamente em Pauline na Praia).

O segundo filme da série, O casamento perfeito, está baseado em um provérbio de La Fontaine, "Quel esprit ne bat la campagne? Qui ne fait châteaux en Espagne?", ou "Qual o espírito que não divaga? Que não constrói castelos na Espanha?" É a história de uma jovem estudante de arte que sonha em realizar um bom casamento apesar das decepções amorosas que acumula ao longo do tempo. Sabine (Béatrice Romand) rompe com o seu amante e resolve se casar, mesmo que seja com alguém que ela não conheça bem. Obviamente, a chance de uma tal atitude dar certo não é muito grande, e com ela vêm novas decepções.

O terceiro filme, Pauline na Praia, é baseado no provérbio de Chr. de Troyes, "Qui trop, parole, il se mesfait", ou "Quem muito fala, prejudica a si mesmo". As atrizes principais são Amanda Langlet e Arielle Dombasle. Logo no início do filme destaca-se o enquadramento das duas moças de branco queconversam no jardim entre flores roxas, lembrando um quadro a óleo antigo. Também são de destaque as paisagens na cidade praiana. Mas o destaque é um acontecimento que é interpretado de diferentes maneiras pelas várias pessoas que têm a oportunidade de observá-lo. A história girará em torno de sentimentos baseados em interpretações diversas, às vezes contraditórias, da realidade.

O quarto filme, As noites de lua cheia, é baseado no provérbio "Quem tem duas mulheres perde a alma, quem tem duas casas perde a razão". É estrelado por Pascale Ogier, Tcheky Karyo e Fabrice Luchine. Como outros filme de Rohmer, os personagens fazem várias reflexões sobre o amor e a solidão. Louise é uma jovem que vive entre a sua casa em Paris e o apartamento do namorado no subúrbio, além de ter um amigo que está sempre próximo. Ela quer um certo sacrifício do namorado e pergunta: "Por que ele não pode fazer algo enorme por mim, se me ama tanto quanto diz?" A vida entre os dois apartamentos eventualmente trás problemas, que como em muitas ocasiões na vida, não estavam previstos.

O quinto filme, O raio verde, é baseado num poema de Rimbaud, "Que chegue o tempo quando os corações estão apaixonados". A película fala sobre uma féria de verão de Delphine (Marie Rivière) quando ela tem a expectativa de conhecer alguém ou mesmo se divertir com os seus amigos. Mas a realidade destrói os sonhos impiedosamente. Não se encontrando em nenhum dos locais por onde anda, Delphine tem a esperança de num dos últimos momentos do verão conseguir enxergar o raio verde, um fenômeno raro que pode acontecer eventualmente no final do pôr do sol em condições atmosféricas raras. Mas dizem os mais velhos que aquele que conseguir enxergar o raio verde, aquele último raio de sol com coloração excepcional, terá sorte. Assim, assistir a um pôr do sol será a maneira de Delphine descobrir se o seu verão terá sido irremediavelmente perdido ou não.

O amigo de minha amiga é o sexto filme da série "Comédias e Provérbios", nesse caso baseado no dito "Os amigos dos meus amigos são meus amigos". O filme é estrelado por Emmanuele Chaulet, Sophie Renoir, François-Eric Gendron, Eric Viellard e Anne-Laure Meury. Ele conta a história de duas amigas, uma das quais possui um namorado e um amigo que produz uma certa atração na outra. As circunstâncias diversas fazem com que os sentimentos fiquem mudando, intercalando-se paixões e amizades. Como os outros filmes da série, são reflexões sobre o amor na França durante a penúltima década do século XX.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Velho camarada


De "O tempo redescoberto", sétimo volume do "Em busca do tempo perdido", de Marcel Proust, na tradução de Lúcia Miguel Pereira. Ainda na matinée na casa da princesa de Guermantes, o narrador continua a encontrar pessoas completamente irreconhecíveis pelo passar do tempo. A partir do maior ou menor encanecimento, o narrador infere a quantidade de anos que se passaram. E se detém em detalhes que contam muito de uma vida, como os olhos fundos em olheiras da viscondessa de Saint-Fiacre, a face pálida de um triste fantasma que substitui o outrora garboso Sr. Legrandin. Com um antigo amigo, o narrador apresenta um momento de hesitação: a pessoa com quem tem a oportunidade de conversar, quase nada possui do colega que ele conhecera no passado. 

"Encontrei ali um antigo camarada que, durante dez anos, eu vira quase diariamente. Alguém nos quis apresentar de novo. Encaminhei-me então para ele, e ouvi-o dizer, numa voz que logo reconheci: "É para mim um grande prazer, depois de tantos anos". Mas que surpresa a minha! A voz parecia emitida por um fonógrafo aperfeiçoado, porque, se era a de meu amigo, provinha de um sujeito corpulento e grisalho, para mim desconhecido, dando portanto a impressão de ter sido alojada artificialmente, por engenho mecâncio, nesse velho gordo igual a tantos outros. (...) Decididamente, parecia-me outro, quando, de súbito, ouvi, provocada por palavras minhas, sua risada, sua risada solta de antigamente, a que correspondia à perene mobilidade do olhar."

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Pálpebras cerradas

Na última parte do "Em busca do tempo perdido", O tempo redescoberto, de Marcel Proust, na tradução de Lúcia Miguel Pereira, há uma longa reflexão acerca do passar do tempo e do seu efeito inexorável sobre as pessoas que conseguem resistir ao açoite da morte, o envelhecimento. Nessa passagem, numa matinée na casa da princesa de Guermantes, o narrador relata o encontro com várias pessoas da sociedade que ele frequentava quando moço, só os reconhecendo através de alguns traços remanentes ou pelos harmônicos característicos das vozes que permanecem praticamente imutáveis com o passar do tempo. Um nobre orgulhoso que não apresentava mais tanta soberba, vaidade e arrogância, um velho irreconhecível que ainda possuía vivacidade apesar da fisionomia modificada, uma velha bruxa com o seu cabelo branco e miríades de pessoas com as faces deformadas, os abdômens arredondados, os antigos esbeltos corpos curvados. São páginas chocantes que mostram ao narrador, e ao leitor, as consequências do passar dos anos.

"Logo se verificava não ser devido a nenhum acidente de carro, mas a um ataque, o coxear de alguns homens que já tinham, como se diz, um pé na sepultura. Da sua, entreaberta, certas mulheres meio paralíticas, como a sra. de Franquetot, pareciam não poder soltar inteiramente os vestidos presos na lápide, e, incapazes de aprumar-se, infletidas, de cabeça baixa, descreviam uma curva que era de fato sua posição atual entre a vida e a morte, à espera da queda final. Nada impediria o movimento da parábola que as arrebatava, elas tremiam se tentavam erguer-se, e seus dedos já não conseguiam segurar coisa alguma.

Embuçados nas cãs, alguns semblantes já tinham a rigidez, as pálpebras cerradas dos moribundos, e os lábios, agitados por perpétuo tremor, pareciam murmurar as orações dos agonizantes."


segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Personagens reais?

Na obra Em busca do tempo perdido, Proust consegue algumas vezes separar o personagem principal do autor da obra. Parece que você está enxergando o movimento de um personagem e, de repente, da figura ficcional se separa o autor, ou um pseudo-autor, como se os dois estivessem amalgamados e de repente eles se destacassem um do outro. Como já comentado anteriormente, há duas passagens em que o autor se confunde com o escritor e ele explica que o seu nome é Marcel. No sétimo e último volume da obra, O tempo redescoberto, na tradução de Lúcia Miguel Pereira, o autor novamente se separa do personagem. Este último está falando sobre alguns parentes de Françoise, quando de repente, afirma:

"Neste livro, onde não há um fato que não seja fictício, nem uma só personagem real, onde tudo foi inventado por mim segundo as necessidades do que pretendia demonstrar, devo declarar, em louvor de minha terra, que só os parentes milionários de Françoise, renunciando à aposentadoria para auxiliar a sobrinha desamparada, só eles são pessoas verdadeiras, só eles de fato existem."

terça-feira, 10 de novembro de 2020

Uma velha história

Uma velha história contada como se tivesse uma mensagem. Mas, não! É apenas uma velha história. 

Um homem ia por um caminho e foi assaltado. Levaram os seus bens, deram-lhe uma surra e o deixaram caído na margem da estrada. 

Por ali passou um legislador, o homem que fazia as leis da cidade e tinha um belo discurso de homem correto e amante do direito. Ele participava anualmente de todas as convenções e sempre brindava o público com ideias fabulosas de como melhorar a vida dos cidadãos. Era atencioso e tinha inclusive um programa de televisão para ajudar semanalmente alguns miseráveis. Mas o legislador olhou para o lado, viu o homem caído e simplesmente o ignorou.

Depois passou um homem religioso. Ele conhecia em detalhes o livro de sua religião e todos os seus amigos sabiam que ele gostava de fazer caridade. Ao ver o pobre infeliz jogado no caminho pensou em ajudar. Entretanto, lembrou-se que se o fizesse, a sua vida sairia da rotina, ele teria despesas adicionais e durante a recuperação, sendo um desconhecido, poderia ser bastante impertinente. Com a mente repleta desses pensamentos, o homem religioso também passou adiante.

Por fim passou um homem que dizia que não acreditava em Deus. Ao ver a pessoa caída e sangrando, apiedou-se. Deu-lhe água, o ajudou a se levantar e o levou para casa. Lá chegando, chamou um médico, alimentou o pobre homem e, junto à sua esposa, ficou ao pé da cama durante a lenta recuperação, escutando com paciência os lamentos do convalescente. 

O que podemos dizer a mais? Hoje, o homem do caminho está recuperado, o ateu continua com a sua descrença, o homem religioso fazendo caridade, o legislador fazendo belos discursos e do bando de assaltantes um foi morto, outro está preso e o último continua prescrutando o caminho. Dizem que também havia um quarto assaltante, mas que voltou para o interior e hoje trabalha com o seu pai num pequeno roçado; mas isso não foi confirmado pelo rapaz que encontra-se preso. 

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

A Minha Cantiga

O poema a seguir, A Minha Cantiga, de Rabindranath Tagore, é dedicado àquelas antigas crianças que subiam no barco que iria partir, que dormiam com o balanço da rede ouvindo a história da Chapeuzinho Vermelho repetida centenas deliciosas vezes, que assistiam ao desenho animado da Branca de Neve, que esperavam o pai para tirar uma dúvida em qualquer matéria que ele dizia invariavelmente que era a sua especialidade, que arrodeavam o estacionamento do prédio ouvindo uma história dos 'dois irmãos' e suas capas de invisibilidade. É dedicado às crianças que se divertiram tomando banho numa piscina armada no meio de um quarto e que contavam o resumo das histórias das primeiras leituras. Eis o poema:

Esta minha cantiga estende a sua música em torno de ti, meu filho, como afetuosos abraços de amor.

Esta minha cantiga passa pelo teu rosto como um beijo de bênção.

Quando estás sozinho, ela está perto de ti e murmura ao teu ouvido. Quando estás na multidão, ela te protege.

A minha canção é como as asas do teu sonho e transporta teu coração aos limites do desconhecido.

Enquanto a noite escura envolve a estrada, ela brilha sobre tua cabeça como estrela fiel.

A minha canção está na pupila dos teus olhos e leva-te longe, revelando-te o coração das coisas. E quando a minha voz estiver muda na morte, a minha cantiga ainda viverá em teu coração. 

domingo, 18 de outubro de 2020

Antiga mostra de cinema

Em 1990 tive a oportunidade de assistir a uma interessantíssima Mostra de Cinema Cearense. Lembro-me que me marcaram bastante "A Trama da Rede" de José Inácio Parente - belíssimo, uma obra prima - e "Um Cotidiano Perdido no Tempo", de Nirton Venâncio. A Trama da Rede, em particular, é entrecortada por um belo poema de Carlos Rodrigues Brandão. "Essa é a trama da rede. O tecido das trocas que fabricam o pano da rede de dormir enreda o corpo do homem na tarefa de criar na máquina a rede com a mão. (...) A armadilha do trabalho em casa alheia engole o homem e enovela o corpo inteiro no fio, no fuso, na roda, no tear do maquinário da manufatura e que produz o seu produto, a rede, que reduz o corpo-operário à produção." Aliás, todos os filmes apresentados, esses dois e os demais, eram muito bons. A Trama e Um Cotidiano já estão no YouTube; consegui assisti-los no dia de hoje. Mas nem todas as películas da Mostra encontram-se no YouTube, por exemplo, não encontrei a "Rede de Dormir" de João Maria Siqueira. Talvez fosse interessante que muitos desses filmes mais antigos pudessem ser disponibilizados no YouTube para que mais pessoas tenham a oportunidade de conhecê-los, alguns deles, verdadeiras jóias. Deixo abaixo imagens do folheto distribuído na Mostra com a relação dos filmes apresentados. 





segunda-feira, 12 de outubro de 2020

A mulher do aviador

A mulher do aviador... é um filme que assisti sem ter muita expectativa, mas que tive uma boa surpresa. Dirigido por Eric Rhomer, La femme de l´aviateur..., França, 1981, teve como atores principais Philippe Marlaud, Marie Riviere e Anne-Laure Meurey. É um filme sobre suposições, sobre ciúme e sobre dilemas. A película relata a história de um jovem apaixonado, François, que vai à casa de sua namorada, Anne, para lhe deixar um bilhete e a encontra saindo com um antigo amante, um aviador de quem ela já havia falado. François não sabe que o aviador foi à casa de Anne apenas para dizer que não vai mais vê-la pois sua esposa está grávida e ele vai ficar com ela. Mais tarde o jovem encontra por acaso o antigo amante da namorada e o segue pela cidade. Ele percebe que o aviador está acompanhado de uma senhora, possivelmente sua esposa. O jovem o segue num café, num ônibus, num parque, por ruas diversas até chegar a um prédio onde o casal desaparece em algum apartamento. Nessa perseguição, François conhece a jovem Lucie, que o ajuda na empreitada. Enquanto aguardam algum movimento do aviador e de sua mulher, François e Lucie falam sobre várias facetas da vida. Lucie, deixando o seu endereço, se despede de François e pede que ele lhe faça um relato do que venha a descobrir. François volta para o apartamento da namorada e conversando com ela descobre que a mulher que acompanha o aviador, possivelmente venha a ser a sua irmã. François conversa com Anne sobre a hipótese de viverem juntos, mas Anne afirma que jamais se casará e que prefere morar sozinha. No final da jornada, já à noite, François faz um relato das descobertas à Lucie num cartão postal. Deixa o postal numa caixa de correios e desaparece no meio da multidão.



François (Philippe Marlaud) e Lucie (Anne-Laure Meurey) conversam num parque em Paris.


Algumas curiosidades: Eric Rohmer foi um famoso diretor francês, integrante do movimento de renovação do cinema francês Nouvelle Vague, que está fazendo agora 60 anos. Consagrado a partir do final da década de 50 do século passado, o movimento teve François Truffaut, Jean-Luc Godard, Claude Chabrol, Eric Rohmer, Alain Resnais e Jacques Rivette como alguns dos seus principais representantes. La femme de l´aviateur é o primeiro filme da série denominada por Rohmer de "Comédias e Provérbios"; aqui o provérbio que ele faz referência é "On ne saurait penser à rien", que numa tradução aproximada seria: "É impossível não pensar em nada". No que diz respeito ao ator protagonista do La femme de l´aviateur..., Philippe Marlaud, ele faleceu pouco depois da conclusão do filme. Quando François desaparece no final da história no meio da multidão, Philippe sai de cena para sempre.

domingo, 13 de setembro de 2020

Dez anos sem Chabrol

Ontem, 12 de setembro de 2020, há dez anos, morria Claude Chabrol. Chabrol é um dos fundadores da Nouvele Vague, um estilo e estética de cinema novo surgido na França no começo da década de 60 do século passado e que teve como outros participantes os diretores François Truffaut, Jean-Luc Godard, Eric Rohmer, Jacques Rivette e Alain Resnois, entre outros. Nesses dias assisti o filme de Chabrol Les Bonnes Femmes (França, 1960), com as atrizes Bernadette Lafont, Clotilde Jouno, Stéphane Audran e Lucile Saint-Simon. O filme conta a história de quatro moças, balconistas de uma loja de eletrodomésticos em Paris, com as suas diversas expectativas sobre o amor, vivendo entre a expectativa, o tédio e o perigo. Em particular, são bastante interessantes a cena inicial da movimentada Paris noturna, repleta de carros, luzes e sons do início dos anos 60, e a cena do subúrbio, escuro e sombrio, onde moram as jovens trabalhadoras cheias de sonhos.


Mulheres com os seus sonhos em Les Bonnes Femmes.


Trinta e quatro anos após Les Bonnes Femmes, Chabrol apresentará o L'enfer (França, 1994), película que conta a história de um jovem casal que mora numa pequena localidade cuidando de um hotel onde turistas passam as jornadas de verão. Os dias são de uma claridade indescritível. Tudo corria muito bem na vida tranquila do casal até que o jovem marido passa a ter ciúmes da esposa, sentimento esse que vai aumentando e tomando contornos de loucura. O marido passa a acreditar que todos os homens conhecidos, incluindo os vários hóspedes, têm algum caso com sua esposa e para evitar qualquer perigo começa a restringir a liberdade da mulher. Num determinado dia ele a impede de sair do quarto e amarra os seus braços à cama do casal. Ao fazer a barba para uma pequena viagem o marido se corta com a navalha e o sangue na sua roupa poderia ser inclusive de sua esposa. Ele pensa que já é manhã e a esposa já está pronta para sair, mas quando olha novamente ela continua amarrada. Ele não sabe mais o que é a realidade e o que são alucinações. Assim como no Les Bonnes Femmes, o belo futuro sonhado pela mulher pode ser apenas uma ilusão. E a dor pode ser inevitável quando não se pode controlar o destino. E nunca é possível, na verdade.


Emmanuelle Béart, como Nelly, em L'enfer.


segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Em Higashi Honganji

Higashi Honganji é um templo Shin Budista localizado na cidade de Kyoto, no Japão, e composto por vários prédios. O prédio principal é denominado de "Salão do Fundador", que se constitui numa das maiores estruturas de madeira do mundo, medindo 76 m de comprimento, 58 m de largura e 38 m de altura. Foi construído ao longo de vários séculos, tendo o último prédio sido concluído em 1911.


Vista externa dos prédios de Higashi Honganji (foto de 1997).


Vista do prédio principal de Higashi Honganji (foto de 1997).

Em um dos vários locais do templo existe uma pequena placa com os dizeres: "What rare it is: to be born a human". É uma frase escrita em inglês tentando representar a tradução de um pensamento original em japonês, talvez de algum sábio budista. Numa tradução aproximada: "Quão raro é isso: ter nascido, e ser um humano". Uma bela reflexão sobre a condição excepcional que representa cada pessoa que passa pela Terra, com suas virtudes, seus sonhos, suas lutas, suas idiossincrasias e mais o peso do conjunto de vicissitudes que todas as vidas encerram.  


terça-feira, 21 de abril de 2020

Outro pesadelo

Acordei após um pesadelo e lembrei-me de Gerard de Nerval: "O Sonho é uma segunda vida". E pensei, tentando encontrar uma simetria: a vida pode ser um outro pesadelo. No centro, uma crise política e de saúde pública.

Bolsonaro apresenta um contumaz desprezo pelos mais humildes e uma arrebatadora admiração pelos poderosos, em particular por banqueiros e empresários. É um herói para maus caráteres, para medíocres, para fracassados e para ignorantes. Antes da eleição presidencial de 2018, Bolsonaro mostrara em diversas ocasiões quem ele era. Racista, debochou e fez piada com negros em uma Associação Israelita no Rio de Janeiro. Xenófobo-regionalista, achincalhou a população do Nordeste. Homofóbico, declarou com todo o orgulho que preferia ter um filho morto a homossexual. Misógino, por várias ocasiões foi extremamente agressivo e deselegante com repórteres mulheres. Incentivou a violência contra a mulher, ao afirmar que não estupraria uma deputada porque ela não mereceria. Foi anti-democrático, ao homenagear torturadores e considerar como herói o maior assassino do regime militar brasileiro. Foi anti-patriota, ao bater continência à bandeira dos Estados Unidos. Amante de assassinos, ao comentar que o regime militar deveria ter matado mais pessoas. Fascista, quando gritou em comício que deveriam fuzilar os adversários políticos. Agora, com a pandemia da covid-19 e o desprezo descarado pela vida dos cidadãos, vemos que também lhe caberia bem um outro adjetivo: nazista. Em resumo, não vale uma cibazol!

segunda-feira, 20 de abril de 2020

srta. Swann

Gilberte, a filha querida do sr. Charles Swann e paixão de infância/adolescência do Narrador de Em busca do tempo perdido, desaparece do segundo ao quinto volumes da obra, reaparecendo novamente apenas na segunda metade do sexto volume, A Fugitiva. Entretanto, nesse reaparecimento a srta. de Swann agora é chamada de srta. de Forcheville, que recebera esse título pelo fato de sua mãe ter desposado após a viuvez um nobre, o sr. de Forcheville. Gilberte, também, por um golpe de sorte do destino, recebeu uma grande herança de um tio de Swann que morreu sem deixar descendentes, se tornando assim uma das mais ricas herdeiras da França. O Narrador, nos primeiros momentos do reencontro, não reconhece o seu antigo amor, mas quando toma consciência de quem é a moça loura com um ar um pouco mais delicado, 'quase sofredor', ele recorda dos tempos em que passeava pelos Campos Elíseos com o coração transbordando de esperança e sofrimento; mas agora, a antiga filha da sra. Odette não representa mais nada. Gilberte se casará com o nobre Saint-Loup e passará de uma pequena criança burguesa, para uma interessante moça burguesa rica e finalmente uma nobre das mais requisitadas do faubourg Saint-Germain. Eis uma rápida descrição da Gilberte nobre na tradução do poeta Carlos Drummond de Andrade:

Participando, numa palavra, da opinião dessa personagem de opereta que declara: "Meu nome me dispensa, creio eu, de dizer mais nada", Gilbert pôs-se a ostentar desprezo pelo que desejara tanto, a declarar que todos os moradores do faubourg Saint-Germain eram idiotas e infrequentáveis, e, passando da palavra à ação, deixou de frequentá-los. Pessoas que só a conheceram depois dessa época, tendo-a ouvido, nos primeiros contatos, convertida em duquesa de Guermantes, zombar alegremente da sociedade que lhe seria tão fácil ver, e, como não a vissem receber uma só pessoa dessa sociedade, pois se a mais brilhante de todas se aventurasse a ir visitá-la, seria recebida de cara com um bocejo, envergonham-se retrospectivamente de terem podido achar algum encantamento na alta-roda, e nunca ousariam revelar esse segredo humilhante de suas fraquezas passadas a uma senhora que, por uma elevação essencial de sua natureza, se lhes afigura jamais seria capaz de compreendê-las. Ouvem-na zombar com tanto espírito dos duques e vêem-na, coisa ainda mais significativa, harmonizar inteiramente sua conduta com essas zombarias! Sem dúvida, não cogitam de apurar as causas do acidente que transformou a srta. Swann em srta. de Forcheville, e a srta. de Forcheville em marquesa de Saint-Loup, e depois em duquesa de Guermantes. Talvez não lhes ocorra também que esse acidente serviria, menos pelos seus efeitos do que pelas suas causas, para explicar a atitude ulterior de Gilberte, pois o convívio com plebeus não é concebido da mesma maneira como o faria a srta. Swann por uma dama a quem todo mundo chama de "senhora duquesa", e as duquesas, que a aborrecem, de "minha prima". Desdenhamos de bom grado um objetivo que não logramos atingir ou que atingimos definitivamente.

domingo, 19 de abril de 2020

A morte de Albertine

Outra morte que marcará indelevelmente o Narrador do Em busca do tempo perdido refere-se a de sua amada Albertine. Na verdade, essa morte é o que suscitará ao Narrador o maior período de tempo de reflexão a respeito desse fato definitivo de nossas vidas. Depois de praticamente ser expulsa da casa do Narrador por causa de um ciúme exagerado, Albertine vai para o interior, para a casa de uma parente, mas ainda escreve para Marcel com a intenção de reatar os laços e voltar para a casa. Entretanto, antes que o Narrador possa tomar alguma atitude, ele recebe um bilhete da sra. Bontemps com uma notícia arrasadora:

"Meu pobre amigo, nossa Albertine já não existe. Perdoe-me dizer essa coisa horrível a quem gostava tanto dela. Foi jogada contra uma árvore pelo cavalo, durante o passeio. Apesar de todos os nossos esforços, não escapou. Antes tivesse eu morrido em seu lugar!"

Depois desse bilhete, o Narrador se confrontará com a inexorabilidade da morte e esse pensamento o guiará durante muito tempo. Abaixo várias referências à tristeza e ao sentimento de culpa, tal como descrito por Marcel Proust no sexto volume da obra, A Fugitiva, na tradução de Carlos Drummond de Andrade.

Amanhã, depois de amanhã, era um futuro de vida comum, talvez para sempre, que começava; meu coração atirou-se a ele, mas já não estava mais ali, Albertine morrera.

Ligada que estava a todas as estações a lembrança de Albertine, par que eu a perdesse seria preciso que as esquecesse todas, prestes a conhecê-las de nov, como um velho atacado de hemiplegia e que reaprende a ler; seria preciso que eu renunciasse a todo o universo.

(...) tudo isto modificava o caráter de minha tristeza retrospectiva tanto quanto as impressões de luz ou de perfume que lhe  estavam associadas, e completava cada um dos anos solares que eu tinha vivido - e que, só pelas suas primaveras, suas árvores, suas brisas, já eram tão tristes por causa da lembrança inseparável dela -, duplicando-o com uma espécie de ano sentimental, em que as horas não eram definidas pela posição do sol, mas pela espera de um encontro, em que o comprimento dos dias ou os progressos da temperatura eram medidos pelo voo de minhas esperanças, pelo progresso de nossa intimidade, pela transformação progressiva do seu rosto, pelas viagens que ela fizera, pela frequência e pelo estilo das cartas que escrevera durante certa ausência, pela sua maior ou menor precipitação em me ver de volta.

Então, ao pensar no vazio que eu sentiria agora voltando para casa, que não mais veria cá de baixo o quarto de Albertine, cuja luz se apagara para sempre, compreendi o quanto, naquela noite em que, deixando Brichot, eu imaginara sentir tédio e pesar por não poder ir passear e amar por aí afora, compreendi o quanto me enganara, e era somente porque julgava inteiramente segura a posse daquele tesouro cujos reflexos vinham lá do alto até mim, que eu me descuidara de apreciar-lhe o valor, e que fazia com que me parecesse forçosamente inferior a outros prazeres, por pequenos que fossem, mas que, procurando imaginá-los, eu avaliava. 

A ideia de que temos de morrer é mais cruel do que a morte, porém menos que a ideia de que alguém morreu, e que, aplanando-se depois de haver engolfado a criatura, estende, sem um redemoinho sequer naquele ponto, uma realidade de onde essa criatura está excluída, onde não existe mais nenhuma vontade, nenhum conhecimento, e da qual é tão difícil remontar à ideia de que essa criatura viveu, quanto é difícil, no que toca à lembrança recentíssima de sua vida, pensar que seja assimilável às imagens sem consistência, às lembranças deixadas pelas personagens do romance que lemos.

Agora não estava mais em parte alguma, ainda que percorresse a terra de um polo a outro não encontraria mais Albertine. A realidade que se havia fechado sobre ela voltara a tornar-se compacta, apagara até o rastro do ser que nela submergira. Não era mais que um nome, como aquela sra. de Charlus, de quem diziam com indiferença os que a tinham conhecido: "Era encantadora".

(...) o que me causava espanto não era, como nos primeiros dias, que Albertine, tão viva em mim, pudesse não existir mais sobre a face da terra, pudesse estar morta, mas que Albertine que não existia mais sobre a terra, e morrera, houvesse permanecido tão viva em mim.

sábado, 18 de abril de 2020

O incipit da Recherche.

        Na postagem passada fizemos várias referências ao excelente trabalho da Profa. Sheila Santos, da Universidade Federal de Santa Catarina, que realizou uma análise primorosa da primeira tradução brasileira da obra Em busca do tempo perdido, tal como publicado pela editora Globo [1]; o intuito da investigação, entre outros, foi o de identificar a uniformidade linguística da tradução coletiva. A professora utiliza diversas páginas para fazer a análise das frases iniciais, o incipit, do livro de Marcel Proust. Aqui vou fazer uns poucos comentários sobre a longa discussão que existe a respeito dessa temática.

        Antes de ir ao incipit do Em busca do tempo perdido, no caso, o início do primeiro volume da obra No caminho de Swann, acho que é interessante relembrar uma lição popular de Umberto Eco, "Seis Passeios Pelos Bosques da Ficcção" [2]. Eco era um fã de Gérard de Nerval, mais particularmente da obra Sylvie, sobre a qual ele ministrou uma disciplina de pós-graduação na Universidade de Columbia. No Seis Passeios Eco faz uma análise de diversos aspectos da obra, mas começa discutindo a frase inicial de Sylvie: Je sortais d'un théâtre où tous les soirs je paraissais aux avant-scènes en grande tenue de soupirant. Segundo Eco, essa é uma frase difícil de ser traduzida para o inglês porque o tempo verbal utilizado é o pretérito imperfeito, mas na língua saxônica não existe esse tempo. Isso impõe uma dificuldade para o tradutor, mas Eco propõe duas possíveis traduções: I came out of a theater, where I appeared every evening in the full dress of a sighing lover e I came out of a theater, where I used to spend every evening in the proscenium boxes in the role of an ardent wooer. Eco lembra que o pretérito imperfeito é interessante porque ele tem caráter simultâneo de duração e de interação. No primeiro aspecto o verbo mostra algo que estava acontecendo no passado mas não fornece informação sobre o início e o fim da ação. Quando dizemos, 'eu estava lendo', há uma imprecisão quanto ao tempo preciso em que isso ocorreu. No segundo aspecto, de interação, Eco afirma que na ação representada pelo imperfeito a ação se repetia. Empregado na primeira frase de Sylvie, o imperfeito fornece uma imprecisão temporal que será importante no desenvolvimento do romance. Eco ainda discute outros aspectos da obra, mas o importante para essa postagem é o tempo verbal utilizado por Nerval.

        Retornemos ao incipit do livro principal de Marcel Proust. Segundo a professora Sheila Santos, "comumente, considera-se constitutivo do incipit apenas a primeira frase da obra, que no caso da Recherche seria “Longtemps, je me suis couché de bonne heure”. Porém, ele pode estender-se além desse limite, abarcando uma sequência textual mais longa, como, por exemplo, as primeiras frases ou o primeiro parágrafo." Assim, de acordo com a professora, pode-se considerar o incipit da obra as duas primeiras frases:

Longtemps, je me suis couché de bonne heure. Parfois, à peine ma bougie éteinte, mes yeux se fermaient si vite que je n'avais pas le temps de me dire: “Je m'endors”.”

        Muitos artigos já foram escritos tentando decifrar esse início da obra de Proust. Em relação às versões brasileiras, a professora da UFSC fornece uma interpretação para "as transformações linguísticas operadas pelos tradutores brasileiros da Recherche". Antes de ver as explicações, vejamos as duas versões brasileiras para as frases iniciais de No Caminho de Swann:, respectivamente devidas a Mario Quintana e a Fernando Py:

Durante muito tempo, costumava deitar-me cedo. Às vezes, mal apagava a vela, meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar: “Adormeço”.”

Durante muito tempo, deitava-me cedo. Às vezes, mal apagada a vela, meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar: “Vou dormir”.”

A tradução italiana de 1952, assinada por Natalia Ginzburg para a editora Einaudi de Turim, é a seguinte:

“Per molto tempo, mi sono coricato presto la sera. A volte, non appena spenta la candela, mi si chiudevan gli occhi così subito che neppure potevo dire a me stesso: “M'addormento.”

Por seu turno, a primeira tradução inglesa, devida a C.K. Scott Moncrieff, aparece da seguinte maneira:

“For a long time I would go to bed early. Sometimes, the candle barely out, my eyes closed so quickly that I did not have time to tell myself: “I'm falling asleep.”

Já na tradução inglesa mais moderna, de Lydia Davis, encontramos o seguinte texto:

For a long time, I went to bed early. Sometimes, my candle scarcely out, my eyes would close so quickly that I did not have time to say to myself: “I'm falling asleep.”

      De acordo com a Ref. [1], o advérbio de abertura da obra, "longtemps", vai fazer eco com as palavras finais do romance, três mil páginas mais a frente: "dans le Temps", que se constitui no encerramento do Le temps retrouvé. Para traduzir esse advérbio que carrega consigo muito significado, os tradutores brasileiros utilizaram a locução verbal "durante muito tempo". Observe-se que as traduções italiana e inglesas também escolheram expressões com significado similar. Já o tempo verbal da primeira frase é o passé composé, que é um tempo verbal com pouca utilização por parte do autor, segundo a Ref. [1]. Talvez se Proust tivesse utilizado o pretérito imperfeito no começo da obra - como destacado por Umberto Eco com referência à obra de Nerval - isso tivesse sugerido um caráter de sonho ou de irrealidade ao texto da Recherche, mas ao contrário, os fatos e lembranças rememorados eram bastante reais para o Narrador, e assim tal tempo verbal não poderia ser utilizado. Destaca-se que o imperfeito, apesar desse início, é bastante utilizado por Proust ao longo da obra, para destacar principalmente a interconexão entre o passado e o presente. De qualquer forma, há uma ambiguidade temporal na primeira frase da Recherche com a utilização do passé composé que será seguido por uma série de imparfaits nas restantes frases do parágrafo. É interessante também destacar que a expressão no presente “je m'endors” ganha uma tradução de Mario Quintana no mesmo tempo verbal, assim como a tradução italiana de Ginzburg. Fernando Py, por sua vez, prefere traduzir para uma expressão no tempo futuro, enquanto as duas versões inglesas utilizam um present continuous. Essas são apenas algumas das sutilezas das primeiras frases do romance, na verdade, a análise que pode ser realizada relativa a elas é muito mais complexa. Para os que quiserem se aprofundar nesse tema podem se dirigir à Ref. [1] e respectivos títulos citados na bibliografia da tese.


[1] Sheila Maria dos Santos, (Des)aparecer no texto: o escritor-tradutor na tradução coletiva de A La Recherche Du Temps Perdu de Marcel Proust, Tese de Doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis: 2018.

[2] Umberto Eco, Seis Passeios Pelo Bosque da Ficção, Tradução de Hildegard Feist, editora Companhia das Letras, São Paulo: 2004.

sexta-feira, 17 de abril de 2020

A tradução da Recherche

Não trabalho com tradução nem pertenço à área da literatura, mas acredito que quando a pessoa se dispõe a traduzir Proust é como começar a penetrar numa floresta da infância que se sabe repleta de monstros, os quais estão prestes a devorar o intruso. Ou então, como um homem que se voluntaria para ir à guerra e quando embarca para a primeira batalha, não sabe se será possível retornar. A tradução de Em busca do tempo perdido, pela sua extensão, contendo mais de um milhão de palavras e repleta de longas orações, constitui-se num trabalho de fôlego. A primeira tradução total da obra realizada por uma única pessoa é devida a Eva Rechel-Mertens, que verteu para o alemão a Recherche em apenas incríveis quatro anos, de 1953 a 1957 [1]. Outra tradução total realizada por uma única pessoa foi realizada pelo poeta italiano Giovanni Raboni, que traduziu a obra para a sua língua materna a partir de 1983 sob a égide da editora Arnoldo Mondadori, de Milão [2,3]. No Brasil, o poeta carioca Fernando Py também conseguiu a façanha de verter para o português toda La Recherche, que foi publicada pela editora Nova Fronteira, do Rio de Janeiro, em 2016. De acordo com o próprio Fernando Py "não é tarefa tranquila traduzir uma obra de vulto como a de Proust. Ainda mais quando já existem outras em português. Mas não há dúvida de que é uma aventura intelectual largamente compensadora, um trabalho altamente gratificante" [4]. Houve uma tentativa de tradução para o inglês feita por Charles K. Scott Moncrieff, que conseguiu traduzir os seis primeiros volumes, mas a sua morte em 1930 o impediu de trabalhar no último volume e concluir o projeto.

Assim, a maioria das traduções é realizada por um grupo de tradutores. A versão inglesa moderna foi realizada pela escritora-tradutora americana Lydia Davis (Swann's Way), pelo escritor-tradutor australiano James Grieve (The Shadow of Young Girls in Flower), pelo escritor-tradutor australiano Mark Treharne (The Guermantes Way), pelo escritor-tradutor inglês John Sturrock (Sodom and Gomorrha), pela escritora-tradutora inglesa e professora universitária Carol Clark (the Prisoner), pelo escritor-tradutor inglês Peter Collier (The Fugitive) e pelo escritor-tradutor inglês Ian Patterson (Finding Time Again) [1]. Essa tradução multinacional foi capitaneada pela editora inglesa Penguin Press, que permitiu que o trabalho fosse levado a cabo em pouco tempo, a expensas de não formar um todo homogêneo. De acordo com o blogueiro Allan Ray Jasa [5], que fez a leitura de um fôlego, Davis, Sturrock e de certa forma Patterson, escolheram uma tradução que conservou muitas palavras próximas do francês, ocasionando certas sintaxes estranhas no inglês. Por outro lado, traduções nas quais o texto ficou com um inglês mais moderno foram conseguidas por Grieve, Treharne, Clark e Collier. Isso representa uma das dificuldades na tradução da obra. No Brasil, além da tradução recente assinada pelo poeta Fernando Py como já comentado, existe uma tradução mais antiga realizada por vários escritores para a editora Globo de Porto Alegre. Essa tradução brasileira, que utilizo em várias postagens desse blog, foi realizada pelo poeta Mario Quintana (os quatro primeiros volumes [6-9]), pelo poeta Manuel Bandeira e Lourdes Sousa de Alencar (A Prisioneira) [10], pelo poeta Carlos Drummond de Andrade (A Fugitiva) [11] e pela escritora e ensaísta Lúcia Miguel Pereira (O Tempo Redescoberto) [12]. O problema da coerência nessa tradução brasileira assinada por diversas pessoas e ainda por cima ser baseada na versão não definitiva da obra francesa é discutido minuciosamente na tese de doutorado da Profa. Sheila Santos [1]. Espero conseguir ler mais sobre o assunto.


Referências:

[1]Sheila Maria dos Santos, (Des)aparecer no texto: o escritor-tradutor na tradução coletiva de A La Recherche Du Temps Perdu de Marcel Proust, Tese de Doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis: 2018.

[2] Marcel Proust, Alla Ricerca del tempo perduto, La Prigioniera, Traduzione di Giovanni Raboni, Arnoldo Mondadori Editore, Milano: 1989.

[3] A contracapa da edição de bolso Oscar Mondadori afirma que "è d'essere stata tradotta interamente (per la prima volta nel mondo) da una sola persona, il poeta Giovani Raboni". Contudo, de acordo com a Ref. [1], "Agostini Ouafi assinala que Rabani não trabalhou só, tendo recebido a colaboração editorial, linguística e literária de Marco Beck, Giorgio Coroyi e Jean-Louis Provoyer".

[4] Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido, Tradução de Fernando Py, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro: 2016.

[5] https://medium.com/@allanrayjasa/on-reading-the-entire-in-search-of-lost-time-by-marcel-proust-9be5279f822a

[6] Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido: No Caminho de Swann, Tradução de Mario Quintana para Du cotê de chez Swann, 12a. ed., Editora Globo, São Paulo: 1990.

[7] Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido: À Sombra das Raparigas em Flor, Tradução de Mario Quintana para À l'ombre des jeunes filles en fleur, 12a. ed., Editora Globo, São Paulo: 1995.

[8] Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido: O Caminho de Guermantes, Tradução de Mario Quintana para Le côté de Guermantes, 9a. ed., Editora Globo, São Paulo: 1989.

[9] Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido: Sodoma e Gomorra, Tradução de Mario Quintana para Sodome et gomorrhe, 9a. ed., Editora Globo, São Paulo: 1989.

[10] Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido: A Prisioneira, Tradução de Manuel Bandeira e Lourdes Sousa de Alencar para La prisonnière, 9a. ed., Editora Globo, São Paulo: 1989.

[11] Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido: A Fugitiva, Tradução de Carlos Drummond de Andrade para Albertine disparue, 9a. ed., Editora Globo, São Paulo: 1992.

[12] Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido: O Tempo Redescoberto, Tradução de Lúcia Miguel Pereira para Le temps retrouvé, 8a. ed., Editora Globo, São Paulo: 1988.


quinta-feira, 16 de abril de 2020

A morte de Swann

Durante a sua vida cheia de reflexões e observações minuciosas acerca das pessoas da sociedade francesa do final do século XIX e de seus sentimentos, o Narrador de Em busca do tempo perdido encarará a morte de vários conhecidos e de algumas pessoas amadas. A descrição dessas mortes é um dos pontos centrais na obra principal de Marcel Proust. Assim, o desaparecimento da avó do Narrador representa um momento sublime, de grande literatura (já apresentada em outra postagem), quando é possível descobrirmos, na tradução poética de Mário Quintana que "sobre aquele leito fúnebre, a morte, como o escultor da Idade Média, tinha-a deitado sob a aparência de menina e moça". O tempo passará e a intermitência do coração, segundo o próprio Narrador, fará com que a lembrança do ente querido seja conseguida apenas de tempos em tempos, até que finalmente o passar dos anos levará ao esquecimento total. 

Em relação ao escritor Bergotte, o aspecto mais importante deste acontecimento terminal é o fato de seus livros expostos nas livrarias se transformarem num símbolo de ressurreição, como se o grande artista, na verdade, continuasse a sobreviver nas suas obras de arte. No que diz respeito à Albertine - que viveu com o Narrador um romance complexo, denso e repleto de traições e desconfianças - a morte trouxe tristeza e angústia, até atingir, após muito tempo, a indiferença e o esquecimento. Poderíamos também lembrar aqui da existência e morte do pintor de mãos gordas e amigo, cuja única recordação de sua vida anônima será um quadro deixado, e que não se encontra mais no salão onde ele fora originalmente exposto. E também lemos sobre o triste final do velho Charles Swann - personagem central do volume inicial da obra, No caminho de Swann - que foi assim descrito pela tradução de Manuel Bandeira e Lourdes Sousa de Alencar no quinto volume da obra, A Prisioneira:

A morte de Swann impressionara-me na ocasião, profundamente. A morte de Swann! Swann não tem nesta frase o simples papel de um genitivo. Quero referir-me à morte particular, à morte enviada pelo destino ao serviço de Swann. Pois dizemos morte para simplificar, mas são tantas as mortes quantas as pessoas. Não possuímos sentido que nos permita ver, correndo a toda velocidade em todas as direções, as mortes, as mortes ativas dirigidas pelo destino a este ou àquele. Muitas vezes são mortes que só se desobrigarão inteiramente de sua tarefa dois ou três anos depois. Correm, vão pôr um câncer nas entranhas de um Swann, saem depois para outras tarefas, só voltando quando, feita a operação pelos cirurgiões, é necessário repor o câncer. Depois vem o momento em que se lê no Gaulois que a saúde de Swann inspirou cuidados, mas que a sua indisposição está em perfeita via de cura. Então, poucos minutos antes do último suspiro, a morte, como uma religiosa que nos tivesse assistido em vez de nos destruir, chega para acompanhar os nossos derradeiros instantes e coroa com uma auréola suprema a criatura para sempre enregelada cujo coração cessou de bater. E é essa diversidade das mortes, o mistério de seus circuitos, a cor de sua charpa fatal que dá um quê tão impressionante às linhas dos jornais: "Soubemos com vivo pesar que o sr. Charles Swann faleceu ontem em Paris, na sua residência, vítima de pertinaz moléstia (...)".


quarta-feira, 15 de abril de 2020

Marcel

O narrador do Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, discute sobre o sentido da vida, sobre os hábitos, as ambições, a inveja, o amor, a arte e a morte. Entretanto, em toda a longa obra, com mais de um milhão de palavras, o nome desse narrador só aparece duas vezes, ambas no quinto volume, A Prisioneira (La prisonnière). A primeira referência ao nome acontece quando a personagem Albertine desperta de um sono, e nessa parte do enredo, o personagem se revela e, aparentemente, se confunde com o autor. A segunda referência ocorre quando a mesma Albertine manda um bilhete para o narrador e este a fica aguardando com uma mistura de angústia e satisfação. Estes dois momentos foram traduzidos por Manuel Bandeira e Lourdes Sousa de Alencar para a editora Globo das maneiras descritas abaixo.

A hesitação do acordar revelada pelo seu silêncio não o era pelo seu olhar. Logo que recuperava a palavra, dizia: "Meu" ou "Meu querido", seguidos um ou outro do meu nome de batismo, o que, atribuindo ao narrador o mesmo nome que ao autor deste livro, daria: ''Meu Marcel", "Meu querido Marcel". Já eu não consentia desde então que em família os parentes, chamando-me também querido, tirassem às palavras deliciosas que me dizia Albertine o privilégio de serem únicas. Ao dizê-las, fazia um momo, que logo transformava num beijo. Tão depressa adormecera havia pouco, tão depressa acordava.

[...]

Senti um vivo movimento de gratidão por Albertine, que, era visível, não tinha ido ao Trocadero por causa das amigas de Léa e me mostrava , renunciando ao espetáculo e voltando a meu chamado, que me pertencia mais do que imaginava. Maior ainda foi ele quando um rápido me trouxe um bilhetinho dela recomendando-me paciência e onde havia daquelas expressões carinhosas que lhe eram familiares: "Meu querido, meu caro Marcel, chegarei menos depressa do que este rápido, de cuja bicicleta gostaria de me utilizar para me ver depressa junto de você. Como pode pensar que eu possa ficar zangada e que alguma coisa possa me entreter mais do que estar com você? Será gostoso sairmos juntos, seria ainda mais gostoso nunca sairmos senão juntos Que ideias são essas suas? Esse Marcel! Toda sua, Albertine".

sábado, 8 de fevereiro de 2020

Um ano de tragédia

Após o golpe de 2016, três acontecimentos marcaram de forma mais contundente a perda de direitos dos cidadãos, entre várias outros que continuam a ocorrer: a PEC do teto de gastos, a reforma trabalhista e a reforma previdenciária. O capital teve bastantes motivos para sorrir - e aqui a gente humaniza o desumanizador apenas para usar a linguagem dos economistas neoliberais e da mídia hegemônica financiada por ele - como se pode atestar num único exemplo, o lucro apenas do Banco Bradesco em 2019, que foi de R$ 25 bilhões. O desmatamento recorde da Amazônia, as queimadas gigantescas dessa mesma floresta, a invasão das terras e assassinatos de indígenas, o derramamento de petróleo nas praias do Nordeste, a 'venda' da Embraer para a Boeing, a entrega da Base de Foguetes de Alcântara para os Estados Unidos, a venda da Petrobrás Distribuidora, a entrega de vários poços de petróleo do Pré-Sal para empresas internacionais, a privatização da Casa da Moeda, a privatização dos Correios, da Caixa Econômica e do Banco do Brasil, a liberação para a exploração mineral em terras indígenas e o seu consequente extermínio, as notas inacreditavelmente erradas do ENEM, o apagão no INSS, o aumento dos assassinatos pelas Polícias Militares, são facetas perversas de uma mesma realidade. Ao mesmo tempo, pessoas como vários membros da família do presidente da República são poupados de investigação pela justiça e pelos órgãos de fiscalização comandados pelo ex-juiz Sérgio Moro, os ministros do Turismo e do Meio Ambiente são acusados de vários crimes e a Damares e o Araújo ficam falando bobagem, servindo de bobos da corte. 


Uma análise bastante primorosa do primeiro ano de governo de Jair Bolsonaro foi fornecido pela Profa. Emérita da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Céli Regina Jardim Pinto, no texto reproduzido abaixo denominado "O governo Bolsonaro: um projeto vitorioso?". Trata-se do sexto ensaio de uma série sobre o primeiro ano de Jair Bolsonaro na Presidência, constituindo parte de uma parceria entre o 'Nexo" e a Associação Brasileira de Ciência Política. 

O governo Bolsonaro: um projeto vitorioso?
Interpretar o governo Bolsonaro como um fracasso é um equívoco perigoso. Ao mesmo tempo, anunciá-lo como a vitória definitiva de um projeto autoritário-fascista é igualmente equivocado.
O projeto do governo é inserir o Brasil no neoliberalismo profundo, riscando do mapa a presença do Estado na economia e nas políticas públicas sociais.
Bolsonaro tem importância relativa nesse projeto. É uma figura caricata, violenta, inculta, mas que interpela com êxito largas parcelas da população. A Presidência caiu no seu colo como um prêmio de loteria. É transparente que ele não tem ideia do que é ser presidente da república, mas isso tem pouca importância para o projeto. Certamente é foco de chacota em encontros internacionais, mas há cinismo nisso. Ao mesmo tempo que deve ser desconfortável para o sofisticado Macron, a cientista Merkel ou o milionário Trump conviver com Bolsonaro, eles sabem que o ex-tenente é um peão importante no xadrez do imperialismo capitalista do século 21.
O governo se organiza com muita esperteza para cumprir esse papel. Enganam-se os que imaginam que estamos frente a dois governos paralelos, um competentemente neoliberal e técnico, outro culturalmente obscuro e ideológico. Essa divisão é falsa e serve a muitos interesses.
A equipe econômica aparece como respeitável para todos os setores conservadores do país: os empresários de diferentes plumagens e a grande mídia, mesmo as que Bolsonaro “detesta”, como a Globo e a Folha. Na última, colunas de opinião dão chances a críticas, já na Globo, mesmo em sua versão mais sofisticada, a Globonews, as reformas propostas pelo governo são anunciadas por todos os seus jornalistas como necessárias e bem-vindas. Nisso a mídia é uma aliada importante do Poder Legislativo, liderado pelo hábil Rodrigo Maia na Câmara dos Deputados, que articula a aprovação de reformas ultraconservadoras. O governo teve uma importante vitória com a aprovação da reforma da Previdência e certamente outras virão.
Mas o projeto desestruturante necessita de uma sociedade desorganizada e passiva, uma sociedade não demandante. Essa talvez seja a questão mais séria que o neoliberalismo em geral enfrenta no século 21, pois há sociedades mobilizadas que se espalham por diferentes partes do mundo, com organizações diversas e demandas variadas. Seria uma imprudência analítica encontrar uma causa comum para todas as manifestações que ocorrem desde 2011, mas seria igualmente temeroso atribuí-las à mera coincidência.
O problema é que não se elimina a consciência crítica da sociedade em um passe de mágica. No Brasil, o governo Bolsonaro faz dois ataques estratégicos e simultâneos nesse sentido: o primeiro reduz ao mínimo, quando não zera, recursos orçamentários para as áreas da cultura e da educação: faz ameaça contra o cinema, o teatro, as artes visuais, a música, a educação em todos os níveis e a ciência. O segundo ataque se dirige aos setores que necessitam ser convencidos de que cultura, ciências, luta por direitos, por liberdade e igualdade são farsas. Qualifica todas as áreas da cultura e da educação como produtoras do marxismo cultural, da ideologia de gênero e de riscos à família e à religião e assim dá sentido à farsa, central para fragilizar as classes populares e minimizar suas possíveis demandas. Nesse esforço, as igrejas evangélicas são aliadas fundamentais.
Não se pode satanizar as igrejas evangélicas e afirmar que elas só existem para apoiar governos como o de Bolsonaro. O crescimento exponencial das denominações pentecostais é um fenômeno complexo e não pode ser atribuído a cenários momentosos. Mas o que se deve pontuar aqui é que essas igrejas formam lideranças e congregações predispostas a se colocarem em antagonismo às liberdades individuais, às ciências, à cultura, à luta por direitos.
As congregações são celeiros para teorias terraplanistas, antiecológicas, antivacinação, antiborto, a favor da família tradicional, da violência policial, do armamento e do encarceramento. Criam espaços privilegiados para ministros que afirmam ter visões de entidades religiosas, ou como o da educação, que trata de convencer a população de que nas universidades há grandes plantações de maconha e que seus laboratórios de química produzem anfetaminas. Nesse cenário, dirigir carros de aplicativos acaba parecendo muito mais digno do que perder tempo em antros amorais como as universidades. Em um país com índices muito baixos de leitura, a fala do presidente, ao dizer que os livros didáticos têm texto demais, cai como uma luva.
O êxito do governo na desmobilização e/ou paralisia política da sociedade pode ser medido, paradoxalmente, por dois eventos muito festejados pelas forças de oposição: as revelações do Intercept Brasil, que mostraram as formas não republicanas como foram montadas as provas contra Lula pelo então juiz Moro na operação Lava Jato, e a soltura do próprio Lula, por consequência da decisão do STF contra a prisão de condenados em segunda instância. Moro continua sendo o ministro mais popular do governo, mais popular que o próprio Bolsonaro. E Lula, solto, fez pouca diferença.
A questão mais séria em tudo isso, que necessita ser pensada para além de justificativas ao sucesso de Bolsonaro como consequência das fake news, é por que, após um ano de governo — que precarizou a vida das camadas mais pobres da população; reduziu verbas para a saúde; atacou a educação e, principalmente seu setor de maior êxito, as universidades federais; matou pobres, principalmente crianças e jovens negros nas comunidades; desqualificou a cultura; perseguiu movimentos sociais — não está sendo produzida uma reação popular capaz de ameaçar esse projeto autoritário, obscurantista, no limite do fascismo?
O sucesso do governo não pode ser medido pela melhoria das condições de vida do brasileiro em qualquer aspecto, seja a saúde, a educação, o emprego. Não foi a isso que veio, mas, sim, na confortável apatia da população frente a quem está a destruir com precisão cirúrgica conquistas fundamentais para os brasileiros, algumas inclusive garantidas na Constituição de 1988.
2020 é um ano eleitoral, portanto um ano muito imprevisível. É esperar para ver.