domingo, 31 de janeiro de 2021

Tempo de cajus

 "Fatos são pedras duras. Não há como fugir. Fatos são palavras ditas pelo mundo."  Clarice Lispector, in "A hora da estrela".


Por esses dias caiu-me às mãos o comunicado da morte de uma importante figura da sociedade, muito conhecido por sua grande exposição nos meios de comunicação. Era um homem cristão, caridoso, um verdadeiro cidadão de bem, como diria o senso comum. Jamais seria visto em algum programa policial sendo humilhado pelo apresentador. Comparecia semanalmente à igreja acompanhado de sua esposa, muito educado, um tanto reservado, embora não dispensasse uma posição de destaque em qualquer oportunidade. Antigo leitor de jornais e agora de grandes portais de notícias, se indignava bastante com reportagens que versassem sobre a política e a corrupção. Tinha lá os seus caprichos, como ter preferência em frequentar ambientes selecionados, como ele chamava. Se se atrevesse a aparecer um esfarrapado perto dele, ele exorcizava a imagem falando categoricamente: 'isso é um comunista'.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

O tempo recuperado

O vício da preguiça, uma alegada falta de tempo, a incapacidade de superar obstáculos, há toda uma série de desculpas para não se realizar uma tarefa. Refiro-me, especificamente nesse ponto, à leitura do "Em busca do tempo perdido", de Marcel Proust, que distribuído em sete volume, ou cerca de três mil páginas - da edição publicada pela Editora Globo - utilizei 29 anos para a conclusão de sua leitura (23/12/1991 - 03/01/2021). Na obra, desfilam e se entrelaçam as vidas de diversos personagens, como os artistas: o escritor Bergotte, o músico Sr. Vinteuil, o pintor Elstir, a atriz Berma, o pianista Dechambre, o violinista Morel; pessoas da classe média como o engenheiro Legrandin, dr. Cottard, o professor Brichót, da Sorbonne, o Sr. de Bontemps, Diretor do Gabinete do Ministro, além de uma figura importantíssima na trama - Charles Swann - conhecido vendedor de obras de arte que trafegava com desenvoltura entre a burguesia e a aristocracia parisiense; muitos trabalhadores, como o ascensorista e os garçons do hotel de Balbec, a florista, o entregador de alimentos na casa de Combray, os mordomos das grandes mansões, os vários mensageiros, a vendedora de café numa estação de trens,  os criados, os cobradores, os jardineiros, Jupien, Françoise; Marcel (o narrador), sua mãe, seu pai e sua avó; Gilberte e sua mãe Odette, Albertine, Andrée, Gisèle, Miss Rosemond, Sr. e Sra. Verdurin; Robert de Saint-Loup e Bloch; e os aristocratas: o duque e a duquesa de Guermantes, Princesa Marie-Gilbert Guermantes, princesa de Parma, marquesa Sra. de Villeparisis, conde de Crécy, condessa de Molé, viscondessa de Saint-Fiacre, Barão de Charlus e dezenas, talvez centenas de outros tipos. "Em busca do tempo perdido" é a história de um escritor que quer começar a sua obra, mas nunca tem força suficiente para realizá-la, consumindo o seu tempo em conversas com amigos, em reuniões nos salões chiques da alta aristocracia ou, movido pelo ciúme, em perseguição à mulher amada. Três lugares, localizados no espaço, no tempo e na memória - voluntária e involuntária - servirão de cenários principais para os acontecimentos do romance: Combray, Balbec e Paris. Quando pequeno, em Combray, o narrador acreditava que o caminho que levava à terra dos Guermantes era inconciliável com o caminho que levava à Méséglise, o caminho de Swann, uma vez que estavam localizados em direções opostas. De fato, pelos campos ao redor da cidade poderiam ser feitos dois passeios a partir da casa da família do narrador: saindo pelo portão principal percorria-se o caminho que passava pela propriedade do Sr. Swann; saindo pelo portão dos fundos ia-se por um alameda que passava pela propriedade dos Guermantes, ricos aristocratas de longa tradição. O caminho de Guermantes representava algo inacessível, abstrato, ideal, enquanto que o caminho de Swann, margeando casas de pessoas conhecidas e repleto de cores e aromas de flores, representava  objetivos acessíveis e concretos. Muitos anos depois, Gilberte, o amor da infância do narrador, mostrou-lhe que era possível numa tarde, fazer o passeio pelos dois caminhos; a incompatibilidade, ao final, era pura ilusão. A burguesia e a aristocracia - que também poderiam ser simbolizadas pelos dois caminhos - convergiriam mais adiante na filha de Gilberte Swann e Robert de Saint-Loup. Na cidade praiana de Balbec, o narrador encontrará as moças em flor e se apaixonará por Albertine, com quem terá uma relação doentia de amor e ciúme até a morte trágica da mulher. Também encontrará o pintor que destruía a realidade em um segundo e criava uma nova em seu lugar para satisfazer apenas o seu ideal de beleza, um resumo do artista e de sua obra. Em Paris, as relações hipócritas, superficiais e de conveniência da aristocracia serão registradas pelo narrador como se ele possuísse o dom de fotografar e congelar a alma e os mais secretos desejos dos personagens. Na tentativa de apreender todos os acontecimentos do passado e resignificar o tempo que se foi, o narrador encontra na literatura a maneira de fazê-lo. Através de elementos retirados da memória, ele consegue construir um quadro onde o tempo é o senhor soberano da vida e da sociedade, levando orgulhosos senhores ao esquecimento, elevando figuras degradadas às mais altas posições, destruindo fortunas, nobrezas e os pormenores das genealogias, permitindo que os erros sejam transformados em poeira imperceptível, e que homens e mulheres outrora insuportáveis percam os seus defeitos como fruto de conquistas ou frustrações. Na obra que deixaria para as gerações futuras, o narrador redescobriria a realidade esquecida, amalgamando sensações e lembranças, recuperando, de certa forma, o tempo perdido.