sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Falecido, sem deixar vestígios

A memória tem a capacidade de misturar o passado ao espaço do presente. No trecho reproduzido abaixo de "A prisioneira", quinto volume do "Em busca do tempo perdido", de Proust, na tradução de Manuel Bandeira e Lourdes Sousa de Alencar, o narrador descreve os acontecimentos do final de um encontro social na casa dos Verdurin onde o ponto máximo da noite foi a apresentação do violinista Morel - jovem protegido do orgulhoso Sr. de Charlus - que executava obras do músico Vinteuin. Enquanto caminha por um dos compartimentos, o professor Brichot lembra-se de fatos de um passado distante e num chiaro-escuro da memória, o passado e o presente se confundem em lembranças arrebatadores. Nesse pequeno trecho uma frase de tirar o fôlego do leitor em outro grande momento de Marcel Proust.

"E por isso, sem dúvida, o salão da rua Montalivet desmerecia, aos olhos de Brichot, a residência atual dos Verdurin. Mas por outro lado acrescentava a esta, para o professor, uma beleza que ela não podia ter para as relações recentes. Alguns dos velhos móveis que tinham sido trazidos para ali, na mesma disposição, às vezes conservada e que eu próprio reconhecia, da Raspelière, integravam no salão atual partes do antigo que, por momentos, o evocavam até a alucinação, para em seguida parecerem quase irreais no seio da realidade ambiente, fragmentos de um mundo extinto que imaginávamos ver alhures. Um canapé surgido do sonho entre as poltronas novas e bem reais, cadeirinhas estofadas de seda cor-de-rosa, um pano de brocado para mesa de jogo, elevado à dignidade de pessoa, uma vez que, na sombra fria do Cais Conti o tisne das soalheiras que entravam pelas janelas da rua Montalivet (cuja hora ele conhecia tão bem quanto a própria sra. Verdurin) e pelos vãos das portas envidraças de Doville, aonde o tinham levado, e donde ele via o dia inteiro do outro lado do jardim florido o profundo vale, enquanto esperava a hora em que Cottard e o flautista jogariam a sua partida; o ramalhete de violetas e amores-perfeitos, pastel presenteado por um grande artista amigo, falecido, sem deixar vestígios, resumindo um grande talento e uma longa amizade, recordando-lhe o olhar atento e meigo, a bonita mão gorda e triste enquanto pintava; incoerente e artística desordem de presentes dos fiéis, que acompanharam por toda parte a dona da casa e acabaram adquirindo o cunho e a fixidez de um traço de caráter, de uma linha do destino; profusão de ramalhetes de flores, de caixas de chocolates, que sistematizava aqui como lá o seu desabrochamento segundo um modo de floração idêntica; interpolação curiosa dos objetos singulares e supérfluos, que continuam dando a impressão de estarem saindo da caixa em que foram oferecidos e que permanecem toda a vida o que foram primeiramente, presentes de Ano-Bom; todos esses objetos enfim que não poderíamos isolar dos outros, mas que para Brichot, velho frequentador das festas dos Verdurin, tinham aquela pátina, aquele aveludado das coisas a que, dando-lhes uma espécie de profundidade, vem juntar-se o seu "duplo" espiritual; tudo isso espalhava, fazia soar diante dele como outras tantas teclas sonoras que lhe despertavam no coração semelhanças amadas, reminiscências confusas que, em pleno salão inteiramente atual por elas marchetado aqui e acolá, recortavam, delimitavam, como faz num bonito dia um quadro de sol seccionando a atmosfera, os móveis e os tapetes e perseguindo-a de uma almofada a um vaso, de um tamborete ao resíduo de um perfume, de um modo de iluminação a uma predominância de cores, esculpiam, evocavam, espiritualizavam, faziam viver uma forma que era como a figura ideal, imanente a seus domicílios sucessivos, do salão dos Verdurin."