domingo, 22 de janeiro de 2017

Segunda carta

Reproduzo outra carta de H.S.S.P. Voce cuja história apresentei em uma postagem antiga. A verdade é que através de uma longa pesquisa, e nos últimos anos com a ajuda da internet, descobri fatos novos que podem ser acrescentados àqueles anteriormente relatados. Trata-se, acredito com quase toda a certeza, de uma pessoa que é descendente - neto ou bisneto - de um antigo nobre português que veio com D. João VI quando esse fugia do exército de Napoleão. Claro, como muitos dos seus compatriotas, ganhou muito dinheiro com o suor dos escravos; as palavras do Pe. Antonio Vieira e suas críticas contumazes à escravidão não encontraram eco nos antepassados do nosso personagem. O nobre, participante de uma sociedade secreta, alguns dos seus membros se intitulando Sábios de Sião no dizer de um pesquisador conhecido, parece ter tido uma vida tranquila, herdando aos seus descendentes algumas obras de arte. O neto (ou bisneto, não é claro) casou-se com uma certa Maria Filomena e, após alguns anos de casamento, tudo leva a crer que teve que viajar. A carta reproduzida é datada de 31 de maio de 1914, escrita da cidade P. Infelizmente, a ausência de envelope impede de precisar o local exato de onde ela foi escrita.
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Querida Maria, o exílio é insuportável. Todos os dias penso em você e nas crianças. Leio o jornal pela manhã na ilusão de encontrar notícias da terra. Trabalho muito. Canso. Certas noites, mesmo cansado, não consigo dormir. Nas três últimas, tive três sonhos. Permita-me contá-los, pois como sabes, sempre me preocupam sonhos que, acredito, tenham alguma mensagem cifrada.

No primeiro, eu passeava por uma cidade. Havia uma praia e eu a olhava num momento em que era maré baixxa. O mar encontrava-se quase na linha do horizonte. Quando passava por uma viela no centro da cidade, eu ouvia o barulho de ondas como se de repente a maré tivesse subido, demasiadamente até, de modo que a água avançava cidade a dentro. Eu estava me dirigindo a uma casa, mas fugíamos para um lugar mais seguro: a casa para onde nos dirigíamos era inundada pelo mar.

Na segunda, encontrava-me numa casa perto da praia. Pela janela eu via algo assustador: uma onda lavava a calçada em frente à referida casa e subia a rua, que era um pouco inclinada em relação à praia. Enquanto esta onda subia e retornava ao mar, eu pegava os objetos mais importantes que podia na casa, os colocava num local mais alto e dizia às outras pessoas que lá se encontravam: vamos embora pois a próxima onda alagará tudo aqui. E a onda gigantesca que eu avistava parecia uma vaga quebrando violentamente nos rochedos da Bretanha, tal qual conhecidos me descreveram.

No terceiro sonho eu estava num local com muitas pessoas e resolvia caminhar um pouco com uma moça que talvez fosse minha amiga. Dávamos uns passos e ao longe víamos um bar com gente ocupando três mesas e mais algumas pessoas no balcão. A moça dizia-me: 'olha o professor H. bebendo no bar.' Eu olhava e não conseguia ver o tal professor; dizia à moça: 'estás enganada, o professor H. não se encontra no bar'. Ela insistia que sim. Eu apostava com ela que não e ia ao bar. Ao chegar, entretanto, não havia mais nenhuma pessoa e o bar encontrava-se na beira da praia. Eu caminhava em direção ao oceano na procura dos clientes do bar, pisando na areia molhada característica da maré baixa, até que chegava a um local onde havia três altos muros perpendiculares entre si. O que se encontrava atrás do muro era invisível aos olhos. Eu imaginava também que se caminhasse em direção ao canto formado por duas paredes, elas se afastariam concomitantemente e eu caminharia até encontrar os desaparecidos, numa outra terra, talvez.

Sonhos. Fatos muito pessoais. Desculpe-me. Hoje senti saudade do cheiro do mormaço da chuva molhando a areia quente. Uma fumaça quase onírica subindo da terra como se fosse uma legião de espíritos que subisse alegremente para a liberdade da atmosfera. Certas vezes vejo pesadas nuvens, baixas, aproximando-se de todas as direções e o repentino escurecimento do mundo me deixa surpreso e hipnotizado, de uma hipnose como se fosse uma peça em três atos: no primeiro, a aproximação; no segundo, o aumento contínuo do rumor da chuva e no último, a inelutável queda da água sobre a nossa cabeça.

Há poucos dias fiz um passeio a uma cidade relativamente distante. Quando passei de madrugada por cidadezinhas ao longo do caminho e vi as luzes acesas, sabendo que os seus moradores dormiam, senti uma estranha sensação de tranquilidade, uma sensação transmitida pelo conjunto das poucas luzes dos lampiões e do silêncio. As viagens noturnas, embora raras, são momentos de reflexão, como quando durante toda a noite as constelações, o escorpião ou o cruzeiro, acompanham o viajante e ele lembra que elas foram vistas pelos homens há três ou quatro mil anos atrás. Dá um certo conforto saber que ninguém está completamente perdido. Olhando para um lado e vendo o cruzeiro, pensa-se, "estamos andando em direção ao oeste", ou se ao contrário seja o escorpião, pensa-se, "agora para o norte".

Não tenho certeza, mas quando se trata de felicidade a vida é curtíssima, mas quando se trata de angústia, a vida é uma eternidade.

Despeço-me. Que o tempo nos seja breve.

O seu H.S.S.P. Voce.