sábado, 4 de março de 2017

As esfirras podres do Habib's

O nome da criança era João Victor Souza de Carvalho, 13 anos. Uma criança raquítica e subnutrida cujo nome, quase certamente, será esquecido antes de entrar o próximo mês. Na filmagem de uma câmera de segurança, dois funcionários da rede de lanches Habib's aparecem arrastando o garoto desmaiado pelos braços como se tratasse de um animal qualquer que acabara de ser atropelado e tivesse que ser retirado para não atrapalhar o movimento dos carros. Ele apresenta a calça arreada, os sapatos e sua dignidade vão ficando ao longo do asfalto, e depois é largando quase sem vida na calçada molhada. Alguns minutos após essa cena, João Victor morrerá. Em nota, a rede afirmou que o garoto estava ameaçando o patrimônio dos clientes e da loja, como se isso fosse uma justificativa ou diminuísse um pouco a monstruosidade do crime.

O resultado final da investigação poderá ser qualquer um: o garoto correu, escorregou e bateu a cabeça no chão; a criança teve um mal súbito; ou tinha uma doença congênita. Talvez, no máximo, os dois brutamontes que espancaram e arrastaram o João Victor sejam acusados de homicídio culposo. Já sobre o Habib's não recairá nenhuma culpa. A rede é tão inocente quanto um senador que descobriram possuir milhões numa conta na Suíça, ou que foi delatado diversas vezes por receber propina de empreiteiras, ou ter tido o seu helicóptero preso com centenas de quilos de pasta base de cocaína, ou ter uma fortuna que gosta de fazer viagens às Ilhas Virgens Britânicas... Num país desigual como o Brasil, a justiça e a mídia estão invariavelmente ao lado de banqueiros, latifundiários, empresários. O crime - roubo, sonegação, tráfico de drogas, contrabando, espancamento, assassinato - é sempre relativizado e a sua barbaridade dependerá de quem o cometeu.

No século XIX, um negro que fugia para tentar uma vida melhor longe da fazenda onde vivia como escravo era caçado como uma fera até ser trazido de volta, vivo ou morto, para deleite do senhor de engenho. Quando os dois funcionários da rede de sanduíches saíram à caça do pequeno João Victor eles estavam reproduzindo a cena dos capitães do mato do Brasil Império. O Zumbi Preto Pio de hoje tentava fugir da escravidão imposta pela fome. Ao trazerem a criança indolente semimorta que pedia esmola, arrastada como um escravo irascível, os dois covardes estavam mostrando serviço aos novos ricos da velha sociedade escravocrata dos tempos modernos. A única diferença entre os dois séculos é que agora, em vez de iguarias nas baixelas, os senhores e capatazes se contentam em se empanturrar com coxinhas e esfirras podres contaminadas com ódio e indiferença.