sexta-feira, 23 de abril de 2021

O artista de Chauvet

Werner Herzog é um cineasta alemão conhecido por diversos documentários como Fata Morgana (1970) e filmes com personagens marcantes, como "Aguirre, a ira de Deus" (1972) e "Fitzcarraldo" (1982). Um de seus últimos filmes é a "A caverna dos sonhos esquecidos" (2010), um belo documentário sobre a caverna Chauvet, no sul da França, que apresenta as mais antigas pinturas rupestres descobertas até hoje. De fato, como se mostra no documentário, datação por intermédio da técnica de carbono 14 indicam que as pinturas na parede da caverna têm cerca de 32.000 anos. Esse tempo representa cerca de sete vezes o tempo entre a construção das grandes pirâmides e os dias de hoje.

Num momento do documentário o diretor nos lembra que nós somos prisioneiros da história, enquanto que o artista do paleolítico era livre, estando além dos parâmetros que definem a nossa civilização. Imaginei, então, que o artista do passado é como se fosse um deus ex-machina do antigo teatro grego, que introduz a sua obra na nossa história como se fosse um elemento completamente extemporâneo. O artista desenhou, aproveitando-se das anfractuosidades e relevos da rocha, belíssimos cavalos, bisões, rinocerontes, leões e outros animais nas paredes da caverna. Certos cavalos estão correndo, a imagem das patas em duplicatas parece nos mostrar o movimento que ficará claro para nós apenas com o advento do cinema. Ele deixou também a pintura de sua mão, que tinha o dedo mínimo ligeiramente torto. É a assinatura de um artista trezentos séculos antes de surgirem e perecerem quase que instantaneamente nessa escala temporal estranha, Michelângelo, Leonardo, Caravaggio e outros grandes pintores da cultura ocidental. Vindo diretamente do passado através de sua obra, o artista afirma a magia da arte, a magia no sentido de que embora nós, humanos, sejamos absolutamente passageiros, a obra de arte é eterna.



À respeito das pinturas, o escritor Roger Lombardot, que escreveu duas peças inspiradas na caverna Chauvet, asseverou: "Chego ao painel do cavalo ... E lá estou eu diante do improvável. Tanto a precisão da linha como o realismo da expressão ... Sem dúvida! ... Os artistas que ali criaram eram gênios ... No sentido de que tinham visão admirável. Como os pintores do Renascimento ... sei que estou diante da arte universal. Isso que o verdadeiro pintor, o verdadeiro artista, sempre pode fazer. Isso ele sempre fará. Encontramos pessoas capazes disso o tempo todo. Mas encontrá-los lá, já! ... Que bofetada para os nossos preconceitos ... o clichê do homem das cavernas limitado à pele de um animal e de um porrete. Como fica claro, à luz dessas pinturas, que quem as pintou possuía uma sensibilidade que os homens mais evoluídos da atualidade não negariam. Eu me sinto esmagado novamente. Minúsculo. Eu, de quem está excluído que algum dia possa sair de um desenho a ideia de vida… E então… que história fabulosa!… Imagens que passaram milênios para chegar intactas até nós… Melhor! Instantâneo… Porque, repito, tudo pode levar a crer que os artistas acabaram de desistir do pincel… Olha!… As partículas evacuadas pelo arranhão continuam em suspensão… É como se tivéssemos acabado de enviar estas imagens por telecomunicação desde o passado ... Além dos milênios ... Imagine o choque temporal! Vertigem! ... E o seguinte choque ... A consciência de estar diante da mais antiga manifestação conhecida do pensamento humano ..." (La Rose, Les Cahiers de l’Égaré, 2003).