segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

Juliana e o dia dos mil mortos

Hoje, dia de Natal, lembrei-me da pequena Juliana, uma criança de sete anos que morreu em dezembro de 1999 esmagada por um caminhão enquanto atravessa uma avenida para apanhar um pãozinho jogado por pessoas de um carro no outro lado da via. Faltavam dois dias para o Natal (A notícia do milênio: crianças sonham, no Longarinas em 06/02/2014). Juliana agora teria vinte e cinco anos. Teria apenas mendigado num sinal qualquer da cidade? Teria a pequena estudado muito com o programa de governo a ser instalado quatro anos depois? Teria conseguido entrar em uma universidade e se tornado uma historiadora, uma questionadora do sistema? Uma matemática, uma cientista, uma médica ou uma enfermeira? Teria se tornado uma mãe zelosa?

Na sociedade de castas em que se vive no Brasil, há pouco espaço para se pensar sobre o destino da Juliana. A mãe de Juliana, se conseguiu ajuda do governo após 2003, certamente foi chamada de vagabunda por ter recebido um subsídio para não morrer de fome. Não importa e não vem ao caso se quem a rotula negativamente é da casta que sonega imposto e que explora os seus funcionários acima do limite do indecorosamente permitido; da casta que gosta de dar lição de moral mas que recebendo salário público acima do constitucionalmente permitido, compra casas populares para especular futuramente; da casta que é contra a corrupção mas que conta vantagem por ter burlado o seguro; da casta que sempre vence na justiça e, quando flagrado no crime, ainda possui a carreira elogiada pelos tribunais superiores. Claro, estes aspectos pitorescos da classe dominante são características particulares de uma sociedade na qual se espera (pelo menos por alguns de nós) que em um determinado tempo futuro os operários se transformem em cidadãos de pleno direito, para usar a ideia de certos sociólogos.

Conectado à morte da Juliana através de um fio transparente estão centenas de fatos do nosso passado de pessoas sofridas e de oligarquias sorridentes. O estado miserável secular alimentou e enriqueceu a elite que nunca sentiu os efeitos dos fenômenos da natureza, como a seca que periodicamente assola a região e traz consigo efeitos devastadores. Seca que já matou milhares de pessoas ao longo dos séculos, por fome, por peste, por miséria. 
      
No próximo ano, por exemplo, terão se passado 140 anos da grande peste de varíola que assolou a cidade de Fortaleza, fruto da pobreza e reunião de 110.000 retirantes famintos que vieram para a capital com a esperança de não morrerem de fome com a grande seca. Retirantes famintos que se encontraram com o vírus da varíola, tendo como consequência um resultado devastador. Abaixo reproduzimos pequeno texto do escritor Lira Neto na sua obra “O poder e a peste – a vida de Rodolfo Teófilo”, no qual são descritos detalhes sobre a peste de varíola, no meio da grande seca de 1877 a 1879, que dizimou num único dia em Fortaleza, mais de mil pessoas. Esse dia ficou conhecido como o dia dos mil mortos.

"Não havia quem os convencesse do contrário. Nem que o diabo tocasse rabeca . . . . [Os retirantes] não iam deixar ninguém lhes espetar no braço, assim sem mais nem menos, uma mentira de remédio [vacina], que diziam ser preparado com o próprio veneno da Peste . . . . Não adiantava chamar a polícia, escorraça-los em praça pública, ameaça-los de prisão. Nada, nem ninguém, os dobraria.

Desgraça só quer mesmo princípio. De fato, a Peste não demorou muito a mostrar toda a força que tinha.

Do balcão da farmácia ...  Rodolfo observava aqueles cortejos com horror e reprovação. Os cadáveres dos variolosos, decompostos pelas feridas da doença, eram conduzidos a céu aberto. Muitos corpos, em que a varíola havia separado a carne dos ossos, eram socados em sacos de estopa, que depois se amarravam a um pau para facilitar o transporte.

Os defuntos mais inteiros, aqueles que podiam ser transportados amarrando-lhes mãos e pés a uma vara, iam cobertos por ligeiros trapos, que mal lhe escondiam as vergonhas.

Foi no dia 10 de dezembro [de 1878], quinzena antes do Natal. Aquele seria o dia do cão. Ninguém nunca mais poderia esquecer. O dia inteiro, não houve único minuto em que não chegasse pelo menos um defunto para ser enterrado na Lagoa Funda. Os carregadores precisavam fazer filas para despejar os corpos.


A confusão era total. Enquanto aguardavam a vez, bêbados de não se aguentar em pé, os carregadores deitavam no chão os cadáveres, que já começavam a apodrecer. No final da tarde, os registros oficiais indicavam que o cemitério recebera, só naquele dia, nada menos de 1.004 cadáveres. Nunca se tinha visto, em tempo algum, morrer tanta gente junta. Talvez Deus tivesse fechado de vez os olhos para aquela gente. Ou então era o Dia do Juízo Final. O Dia dos Mil Mortos.”

sábado, 23 de dezembro de 2017

Parafuso de cabo de serrote

Há regiões de um Brasil distante, profundo, em que caminham Severinos e Conselheiros, onde se mata a fome à cartucheira, onde se ara na pedreira e se dá água de mandacaru para os bichos. Ali a vida é austera, as dificuldades são imensas e o sofrimento é parte do cotidiano. Durante toda a história do país os governos foram na sua esmagadora maioria excludentes e cegos, mudos e surdos às necessidades desses locais (as poucas exceções estão aí para dar um tabefe na cara da regra). Mas nesse mar de dificuldades e indiferenças existem as pequenas ilhas de resistência – poetas, cantadores e cancioneiros populares – que tentam resgatar e manter a cultura e a memória desse povo, como se fossem contra-molas ao ataque permanente da elite egocêntrica, criminosa e ignorante.

Para lembrar essa resistência, dos cantadores de longa tradição no interior nordestino, reproduzimos o poema “Parafuso de Cabo de Serrote” do poeta paraibano Jessier Quirino:


Tem uma placa de Fanta encardida
A bodega da rua enladeirada
Meia dúzia de portas arqueadas
E uma grande ingazeira na esquina
A ladeira pra frente se declina
E a calçada vai reta nivelada
Forma palmos de altura de calçada
Que nos dias de feira o bodegueiro
Faz comércio rasteiro e barateiro
Num assoalho de lona amarelada.

Se espalha uma colcha de mangalho:
É cabestro, é cangalha e é peixeira
Urupema, pilão, desnatadeira
Candeeiro, cabaço e armador
Enxadeco, fueiro, e amolador
Alpercata, chicote e landuá
Arataca, bisaco e alguidar
Pé de cabra, chocalho e dobradiça
Se olhar duma vez dá uma doidiça
Que é capaz do matuto se endoidar.

É bodega pequena cor de gis
Sortimento surtindo grande efeito
Meia dúzia de frascos de confeito
Carrossel de açúcar dos guris
Querosene se encontra nos barris
Onde a gata amamenta a gataiada
Sacaria de boca arregaçada
Gargarejo de milhos e farelos
Dois ou três tamboretes em flagelo
Pro conforto de toda freguesada.

No balcão de madeira descascada
Duas torres de vidro são vitrines
A de cá mais parece um magazine
Com perfume e cartelas de Gillete
Brilhantina safada, canivete
Sabonete, batom... tudo entrempado
Filizolla balança bem ao lado
Seus dois pratos com pesos reluzentes
Dá justeza de peso a toda gente
Convencendo o freguês desconfiado.

A Segunda vitrine é de pão doce
É tareco, siquilho e cocorote
Broa, solda, bolacha de pacote
Bolo fofo e jaú esfarofado
Um porrete serrado e lapidado
Faz o peso prum março de papel
Se embrulha de tudo a granel
E por dentro se encontra uma gaveta
Donde desembainha-se a caderneta
Do freguês pagador e mais fiel.

Prateleiras são tábuas enjanbradas
Com um caibro servindo de escora
Tem também não sei qual Nossa Senhora
Com um jarrinho de louça bem do lado
Um trapézio de flandres areados
Um jirau com manteiga de latão
Encostado ao lado do balcão
Um caneiro embicando uma lapada
Passa as costas da mão pelas beiçadas
Se apruma e sai dando trupicão.

Tem cabides de copos pendurados
E um curral de cachaça e de conhaque
Logo ao lado se vê carne de charque
Tira gosto dos goles caneados
Pelotões de garrafas bem fardados
Nas paredes e dentro dos caixotes
Uma rodilha de fumo dando um bote
E um trinchete enfiado num sabão
E o bodegueiro despacha ao artesão

Um parafuso de cabo de serrote.

quarta-feira, 21 de junho de 2017

A justiça dos bochechas rosadas

Após o golpe de estado de 2016, que segundo muitos analistas como o jornalista Amir Sader, foi dado por uma gangue para assaltar o estado e o colocar a seu serviço, os direitos da maioria da população estão sendo cotidianamente atacados. Isso acontece através do aumento do desemprego e da concentração de direitos – seja através das reformas trabalhistas e previdenciárias – que fortalecem e aumentam o poder das elites, representadas pelo grande capital. Dentro desse contexto encontra-se também a desnacionalização para o capital estrangeiro de reservas minerais diversas, como o pré-sal [que poderá se configurar num crime de lesa-pátria mais terrível do que a entrega da Vale do Rio Doce pelo governo FHC], e a entrega de grandes áreas de terras agricultáveis ou de extração mineral para estrangeiros. Fechando o ciclo, permitindo de uma forma legal que crimes diversos sejam perpetrados, encontra-se a justiça, que é praticada, de uma forma geral, por e para pessoas longilíneas, de bochechas rosadas, cabelo bem aparado e óculos de aro fino. Claro que há críticas e exceções à regra nesses tristes dias que vivemos no trópico. Abaixo reproduzimos uma voz dissonante, a do ex-ministro Eugênio Aragão, num texto de muita clareza.
 

Sobre palestras e a apropriação do público pelo privado
por Eugênio José Guilherme de Aragão, no site GGN em 18/06/2017.

Credores têm melhor memória do que devedores (Benjamin Franklin).

Prezado ex-colega Deltan Dallagnol,

Primeiramente digo “ex”, porque apesar de dizerem ser vitalício, o cargo de membro do ministério público, aposentei-me para não ter que manter relação de coleguismo atual com quem reputo ser uma catástrofe para o Brasil e sobretudo para o sofrido povo brasileiro. Sim, aposentado, considero-me “ex-membro” e só me interessam os assuntos domésticos do MPF na justa medida em que interferem com a política nacional. Pode deixar que não votarei no rol de malfeitores da república que vocês pretendem indicar, no lugar de quem deveria ser eleito para tanto (Temer não o foi), para o cargo de PGR.

Mas, vamos ao que interessa: seu mais recente vexame como menino-propaganda da entidade para-constitucional “Lava Jato”. Coisa feia, hein? Se oferecer a dar palestras por cachês! Essa para mim é novíssima. Você, então, se apropriou de objeto de seu trabalho funcional, esse monstrengo conhecido por “Operação Lava Jato”, uma novela sem fim que já vai para seu infinitésimo capítulo, para dele fazer dinheiro? É o que se diz num sítio eletrônico de venda de conferencistas. Se não for verdade, é bom processar os responsáveis pelo anúncio, porque a notícia, se não beira a calúnia é, no mínimo, difamatória. Como funcionário público que você é, reputação é um ativo imprescindível, sobretudo para quem fica jogando lama “circunstancializada” nos outros, pois, em suas acusações, quase sempre as circunstâncias parecem mais fortes que os fatos. E, aqui, as circunstâncias, o conjunto da obra, não lhe é nada favorável.

Sempre achei isso muito curioso. Muitos membros do Ministério Público não se medem com o mesmo rigor com que medem os outros. Quando fui corregedor-geral só havia absolvições no Conselho Superior. Nunca punições. E os conselheiros ou as conselheiras mais lenientes com os colegas eram implacáveis com os estranhos à corporação, daquele tipo que acha que parecer favorável ao paciente em habeas corpus não é de bom tom para um procurador. Ferrabrás para fora e generosos para dentro.

Você também se mostra assim. Além de comprar imóvel do programa "Minha Casa Minha Vida" para especular, agora vende seu conhecimento de insider para um público de voyeurs moralistas da desgraça alheia. É claro que seu sucesso no show business se dá porque é membro do Ministério Público, promovendo sua atuação como se mercadoria fosse. Um detalhe parece que lhe passou talvez desapercebido: como funcionário público, lhe é vedada atividade de comércio, a prática de atos de mercancia de forma regular para auferir lucro. A venda de palestras é atividade típica de comerciante. Você poderia até, para lhe facilitar a tributação, abrir uma M.E., não fosse a proibição categórica.

E onde estão os órgãos disciplinares? Não venha com esse papo de que está criando um fundo privado para custear a atividade pública de repressão à corrupção. Li a respeito dessa versão a si atribuída na coluna do Nassif. A desculpa parece tão abstrusa quanto àquela do Clinton, de que fumou maconha mas não tragou. Desde quando a um funcionário é lícita a atividade lucrativa para custear a administração? Coisa de doido! É típica de quem não separa o público do privado. Um agente patrimonialista par excellence, foi nisso que você se converteu. E o mais cômico é que você é o acusador-mor daqueles a quem atribui a apropriação privada da coisa pública. No caso deles, é corrupção; no seu, é virtude. É difícil entender essa equação.

Todo cuidado com os moralistas é pouco. Em geral são aqueles que adoram falar do rabo alheio, mas não enxergam o próprio. Para Lula, não interessa que nunca foi dono do triplex que você qualifica como peita. Mas a propaganda, em seu nome, de que se vende regularmente, como procurador responsável pela "Lava Jato", por trinta a quarenta mil reais por palestra, foi feita de forma desautorizada e o din-din que por ventura rolou foi para as boas causas. Aham!

Que batom na cueca, Deltan! Talvez você crie um pouco de vergonha na cara e se dê por impedido nessa operação arrasa a jato. Afinal, por muito menos uma jurada ("Schöffin") foi recentemente excluída de um julgamento de um crime praticado pelo búlgaro Swetoslaw S. em Frankfurt, porque opinara negativamente sobre crimes de imigrantes no seu perfil de Facebook (http://m.spiegel.de/panorama/justiz/a-1152317.html). Imagine se a tal jurada vendesse palestras para falar disso! O céu viria abaixo!

Mas é assim que as coisas se dão em democracias civilizadas. Aqui, em Pindorama, um procuradorzinho de piso não vê nada de mais em tuitar, feicebucar, palestrar e dar entrevistas sobre suas opiniões nos casos sob sua atribuição. E ainda ganha dinheiro com isso, dizendo que é para reforçar o orçamento de seu órgão. Que a mercadoria vendida, na verdade, é a reputação daqueles que gozam da garantia de presunção de inocência é irrelevante, não é? Afinal, já estão condenados por força de PowerPoint transitado em julgado. Durma-se com um barulho desses!


quinta-feira, 4 de maio de 2017

O caos institucional


O país há um certo tempo vive um caos institucional. Um juiz de primeira instância que divulga áudio da presidenta da República e em vez de ser preso é alçado à condição de herói; um estrangeiro que assume a presidência da Câmara dos Deputados; um golpe parlamentar autorizado pelo Supremo Tribunal; um senador que não aceita convocação da justiça; um juiz do Supremo Tribunal que se confraterniza com réus; pessoas presas preventivamente por mais de dois anos; sonegação legalizada de bancos e grandes empresas; programas sociais destruídos e o aumento avassalador da miséria... São várias facetas de uma mesma realidade triste, criada à força por uma elite corrupta e egoísta. Como se chegou a esse ponto? No futuro talvez seja até fácil se compreender. Mas enquanto não se chega lá, a leitura de alguns textos poderá lançar luz no problema. Antes de conseguirmos fazer uma descrição precisa do todo, a luz vai nos permitindo enxergar detalhes assustadores do monstro que foi criado. E Luis Nassif foi bastante feliz no seu texto 'Xadrez da subversão do Supremo Tribunal Federal', escrito no seu sítio GGN em 04/05/2017.  Uma leitura fundamental.



terça-feira, 2 de maio de 2017

O passado nunca mais

"E isso é passado. Quando o sol se põe à tarde, quem poderá chamá-lo de volta para viver o mesmo dia novamente? Não existe retorno; nenhum momento pode ser recuperado. Afaste seu coração para longe do que se foi." Mahabharata

Caminhando por uma pequena vereda fria com o vento da montanha soprando em latitude temperada. Solitário, pensativo, recordando das falas dos boçais que preparam armadilhas sucessivas para o povo que procura no máximo um emprego miserável, semiescravidão com as reformas das leis trabalhistas que deixarão o miserável mais vulnerável e o capitalista  com mais mecanismos para acumução. Caminhando com o pensamento em América Latina, unidade latinoamericana, alucinações, angústias e um sol tropical. Caminhando por uma vereda trilhada por Belchior, cujos passos ficaram no passado.

Viva Belchior! Belchior, que não se adaptou à engrenagem da grande mídia - representada por grandes empresas cujo objetivo principal é a exacerbação dos processos de acumulação do capital e que trava uma guerra contra a democracia, atacando o direito da maioria da população, apoiando a desnacionalização da economia e a transferência da riqueza do país para os capitalistas internacionais através de corruptos contumazes - deu uma lição de vida com o seu silêncio dos últimos anos. Como homenagem a este grande poeta, que não se deixou seduzir pela facilidade da adaptação ao sistema, deixamos a sua reflexão sobre os 500 anos da chegada dos europeus ao continente americano. Uma questão de injustiça que quando pensamos que está sendo solucionada, vem a covardia e a traição para regredirmos décadas de humildes avanços. Então: Quinhentos anos de que?

"Eram três as caravelas que chegaram d`alem mar. e a terra chamou-se América por ventura? por azar?

Não sabia o que fazia, não, D. Cristóvão, capitão. Trazia, em vão, Cristo em seu nome e, em nome d`Ele, o canhão.

Pois vindo a mando do Senhor e de outros reis que, juntos, reinam mais... bombas, velas não são asas brancas da pomba da paz.

Eram só três caravelas... e valeram mais que um mar. Quanto aos índios que mataram... ah! ninguém pôde contar.

Quando esses homem fizeram o mundo novo e bem maior por onde andavam nossos deuses com seus Andes, seu condor ?

Que tal a civilização cristã e ocidental... Deploro essa herança na língua que me deram eles, afinal.

Diz, América que és nossa só porque hoje assim se crê. Há motivos para festa? Quinhentos anos de que?"


Referência:
[1] A citação inicial é da obra Mahabharata, na versão de Ramesh Menon. Nela, a deusa Ganga fala para o príncipe Shantanu: "And that is past. When the sun sets on one day, who can call him back so you can live the same day again? There is no returning; not a moment may we retrieve. Turn your heart away from what is over".

quinta-feira, 20 de abril de 2017

O Prof. Josué e as seis propostas

Faleceu no último dia 11/04 o Prof. Josué Mendes Filho, Professor Emérito da Universidade Federal do Ceará. Ele fez a Graduação em Física nessa universidade, o Mestrado na Universidade de Brasília e o Doutorado na Universidade Estadual de Campinas. Como foi um colega e amigo, vou usar um pequeno espaço para pontuar alguns aspectos da personalidade do Prof. Josué, para que fiquem como lembrança. 

Em primeiro lugar há que se destacarem os aspectos relacionados ao docente e ao pesquisador, que nele caminhavam juntos. O Prof. Josué ministrou diversas disciplinas do curso de Física. Particularmente, fui seu aluno no curso de Mecânica Teórica I e acredito que tenha me divertido muito com as equações diferenciais do Symon. No que diz respeito às teorias físicas, acho que o Prof. Josué era um Newtoniano inveterado. Ele acreditava demasiadamente na realidade das "forças". Os modelos que ele criava para interpretar os resultados obtidos no laboratório mostravam isso. Eles eram cheios de "ganchos" - representados pelos dedos e as mãos em movimento - que mantinham os átomos e moléculas conectados por forças poderosas, ou então, quando era possível, o mundo se enchia de osciladores harmônicos simples, no máximo, com acoplamento entre eles. Com isso não quero dizer que o nosso mestre tivesse uma visão simplória do mundo físico. Pelo contrário, com modelos simples ele conseguia modelar diversos fatos experimentais. Um belo exemplo do uso destes modelos foi aquele desenvolvido em sua tese de Professor Titular, onde conseguiu explicar as várias transições de fase do sulfato de lítio e potássio através de triângulos com diversas orientações (representando íons sulfetos), que se encaixavam em losangos maiores, que representavam a célula unitária do cristal.

Para manter um bom clima de trabalho no Departamento de Física, o Prof. Josué ajudou vários estudantes e professores ao longo dos anos de variadas formas. E também se esforçou para ajudar a criar boas condições de pesquisa. No que diz respeito ao Laboratório de Espalhamento de Luz, hoje ele pode ser considerado um dos mais importantes do país na sua área de atuação, contando com oito pesquisadores que desenvolvem pesquisas em diversos tipos de materiais. Tal laboratório foi erguido com muito esforço pelo Prof. Josué, em parceria com o Prof. Erivan Melo, que herdaram bastante conhecimento e habilidades diversas do velho Prof. Sergio Porto. Lembro-me que inicialmente, lá pela década de 80, o laboratório ficava localizado numa sala no piso superior do bloco 929, onde era necessária, periodicamente, a subida de alguém com uma barra de gelo até a caixa d'água para se conseguir refrigerar o tubo do laser de argônio. Está também na lembrança a mudança do laboratório para o andar térreo, no qual foi utilizada a força de aproximadamente uns 16 homens para descer a pedra de mármore que servia de base para o espectrômetro. Esses aspectos de força bruta - ilustrando que muito suor foi derramado literalmente - obviamente caminhavam com a sagacidade e a competência para se conseguir recursos em uma época em que o financiamento para a ciência era bem menor do que é (foi) nos últimos anos.

Às vezes, o Prof. Josué exagerava um pouco no relato dos seus feitos e, para alguns, parecia ser um defeito. Exagerado ou não, tinha a qualidade de falar o que o desgostava diretamente na frente da outra pessoa, o que de certa forma o fazia parecer, às vezes, rude. O importante é que as suas ações eram claras, mesmo no delicado palco do jogo político que se joga normalmente dentro de uma universidade.

O Prof. Josué se orgulhava de sua memória. Certa vez, quando saíamos do laboratório, lá pelas sete horas da noite (o ano era 1999 ou 2000), conversei com ele sobre o livro do Ítalo Calvino "Seis propostas para o próximo milênio", que eu acabara de ler. Falei-lhe do que Calvino considerava serem os valores que o século XX deixaria de legado para o século XXI: a leveza, a rapidez, a exatidão, a visibilidade, a multiplicidade e a consistência. Em cada ponto do legado sugerido pelo escritor italiano, o Prof. Josué tinha uma observação interessante a fazer e o papo, no estacionamento do bloco 928, se estendeu por mais de uma hora. Terminamos a conversa e cada um foi para o seu destino; a discussão, aparentemente, ficara no passado. Umas duas ou três semanas depois ocorreu uma cerimônia no Departamento de Física e, para minha surpresa, o Prof. Josué fez um belo discurso no qual a linha mestra da fala eram exatamente os seis pontos sugeridos por Ítalo Calvino, que ele lembrava com grandes detalhes. 

Vou encerrar por aqui porque a ideia era apenas deixar uns "flashes" de lembranças. Aliás, vou deixar o próprio Calvino encerrar; esperando que sirva de homenagem ao professor: "quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis".

segunda-feira, 17 de abril de 2017

Comitê de negócios

Mais de um século depois, Marx continua ajudando a interpretar os fatos históricos. Após um golpe de estado, a destruição dos direitos sociais e trabalhistas, o perdão das dívidas de grandes empresas e de grandes bancos e o estranho comportamento dos poderes da República mostram que o capital – que se beneficia da mais valia, da sonegação, da ciranda financeira e da corrupção – consegue penetrar todas as cidadelas, inclusive aquelas aparentemente intransponíveis. Abaixo reproduzimos um interessante texto de Márcio Sotelo Felipe, que joga um pouco de luz sobre a situação política e econômica do país há exatamente um ano em que a Câmara dos Deputados no Congresso Nacional realizou a mais patética sessão de sua história.
ODEBRECHT, O COMITÊ PARA GERIR OS NEGÓCIOS DA BURGUESIA. 
Márcio Sotelo Felipe
Um comitê para gerir os negócios da burguesia. É assim que Marx, no Manifesto Comunista, se refere ao Estado. A frase de Marx, um tanto quanto retórica, expressa uma condição estrutural sempre oculta pela ideologia que faz ver a aparência como essência.
A lista Fachin é um raro momento em que as sombras se dissolvem. Um raro momento em que se vê as entranhas do capitalismo. Raro demais para ser desperdiçado em análises que se esgotem na moralidade dos indivíduos ou em críticas ao sistema eleitoral e reivindicações por sua reforma, ainda que isto tudo seja pertinente. 
A Odebrecht conseguiu livrar-se de 8 bilhões de impostos graças a algumas encomendas de Medidas Provisórias. Em meio a denúncias que atingem todo o sistema político, o detalhe escabroso é pinçado em sua crueza para chocar e atingir o partido que a mídia adora odiar.
Mas nisto onde termina o “Departamento de Operações Estruturadas” da Odebrecht (e outros departamentos congêneres das grandes empresas) e onde começa o Estado?
Desde 1995, governo Fernando Henrique, dividendos de empresas estão isentos de Imposto de Renda. No entanto, o trabalhador às voltas neste momento com a sua declaração está pagando uma alíquota de 27,5% caso ganhe por mês a fabulosa quantia de 4.660 reais.
E ganhando essa fantástica quantia dependerá mais e mais de serviços públicos vitais – saúde e educação – que serão catastróficos daqui a pouco tempo porque os gastos públicos estão congelados por 20 anos; mas não para pagar os rentistas parasitários que abocanham 40% do orçamento da União.
Fundos privados de previdência esfregam as mãos na iminência de abocanhar uma parte de salários de 4.660 reais graças à destruição do sistema de previdência pública. O “déficit” da Previdência é um caso de pós-verdade. A seguridade social, que inclui a previdência, tem, por força da Constituição, receitas que não entram no cálculo do governo.
Há uma crise fiscal, mas desonerações, sonegação e juros nominais da dívida pública tomaram 8% do PIB em 2015. Os jornais desta semana noticiam que o CARF (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) isentou o Itaú do pagamento de 25 bilhões de Imposto de Renda e Contribuição Social sobre Lucro Líquido devidos por ganho de capital no processo de fusão com o Unibanco.
O que é isto tudo se não um comitê para gerir os negócios da burguesia? O Estado do bem-estar social que parecia desfigurar ou atenuar o conceito de Marx desaparece. Construído em grande parte como resposta às lutas sociais, vai sendo aniquilado sob o influxo de uma tremenda ofensiva de um projeto e de uma visão ideológica a que se deu o nome de neoliberalismo.
Essa visão ideológica inclui meritocracia, individualismo, egoísmo social e a crença no mercado como um fato da ordem natural das coisas, conceitos que, narcotizando as massas, responde pelo refluxo das lutas populares. No capitalismo do século XIX crianças de 8 anos faziam jornadas de 14 horas. No do século XXI idosos terão sua força de trabalho exaurida até a morte porque não poderão pagar previdência privada e não haverá uma pública.
Há um terremoto político quando se descobre que o comitê dos negócios da burguesia está funcionando sob propina. Mas não é a propina que explica a operação desse comitê. Ele funciona sempre, estruturalmente, no capitalismo, mesmo que políticos nunca ponham no bolso nada a não ser o próprio soldo.
A lista que abala o país não é, pois, uma questão que deva ser tratada no plano restrito da moralidade das pessoas ou de uma reforma política que resolva nossos problemas. A lista é a ponta do iceberg de algo que é estrutural. Agora estamos vendo a promiscuidade entre sistema político e as classes dominantes e aquele a serviço destas; o Estado como instrumento de acumulação do capital e de expropriação da riqueza produzida pelos trabalhadores.
Hoje, findo o ciclo da social-democracia, já não temos o direito de duvidar da natureza do escorpião ou de suspeitar da retórica de Marx. Não se transforma a sociedade no interior de um aparelho – a política institucional – cuja natureza é exatamente impedir a transformação da sociedade. Isto retoma uma antiga questão da esquerda: o que estamos fazendo quando estamos no aparelho do Estado?
A experiência do PT termina com a tragédia pessoal de seus quadros. Preferiu o governo em vez do poder. Renunciou definitivamente, ao contrário do que nos permitia supor o discurso de seus primórdios, à organização das massas, à conquista do poder político de baixo para cima, nas ruas, nos sindicatos, nas organizações de base.
Governou com políticas de compromisso com as classes dominantes e sequer formulou – porque precisava ser confiável nessa política de compromisso e conciliação – o que a social-democracia europeia conseguiu no pós-guerra: bens sociais, saúde, educação, habitação, etc. Em um cenário econômico internacional favorável, limitou-se a aumentar o poder de consumo dos miseráveis, capital político que se esgotou rapidamente. E os trabalhadores não foram ao enterro de sua última quimera. Ah, a “ingratidão”, essa pantera… enquanto isso a classe média zumbi tomou as ruas.
A esquerda que supõe possa haver uma luz no fim do túnel apenas apostando nas eleições de 2018 persiste no erro de ignorar a natureza do escorpião. Pode-se imaginar que o candidato mais à esquerda, se ganhar, reverterá sem mais a barbárie social do capitalismo brasileiro hoje? Irá com canetadas, projetos de leis ou emendas à Constituição restaurar a CLT, construir uma previdência social digna, investir em saúde, educação, recuperar o pré-sal para o patrimônio nacional? Com que força política?
Ao entregar-se de corpo inteiro à política institucional, renunciando ao poder que pode ser construído nas ruas e nas organizações populares, nada mais faz do que compor a engrenagem do sistema, mantê-la e reproduzi-la porque o poder não comporta vácuo. Ou é o deles ou é o nosso. Se não disputamos, é somente o deles.
E não o disputamos elegendo a política institucional como o único instrumento de ação política. Nela, só há lugar hoje para o poder da elite predadora que não vê limites em sua sanha de acumulação e promove sem qualquer pudor a barbárie social.
Temos uma greve geral pela frente. Ou construímos um poder alternativo com a força social dos excluídos ou afundaremos cada vez mais no lodo da política institucional. Apostar apenas em eleições é jogar água no moinho da barbárie social que está, quase que literalmente, reduzindo a pó a existência dos brasileiros.

sábado, 4 de março de 2017

As esfirras podres do Habib's

O nome da criança era João Victor Souza de Carvalho, 13 anos. Uma criança raquítica e subnutrida cujo nome, quase certamente, será esquecido antes de entrar o próximo mês. Na filmagem de uma câmera de segurança, dois funcionários da rede de lanches Habib's aparecem arrastando o garoto desmaiado pelos braços como se tratasse de um animal qualquer que acabara de ser atropelado e tivesse que ser retirado para não atrapalhar o movimento dos carros. Ele apresenta a calça arreada, os sapatos e sua dignidade vão ficando ao longo do asfalto, e depois é largando quase sem vida na calçada molhada. Alguns minutos após essa cena, João Victor morrerá. Em nota, a rede afirmou que o garoto estava ameaçando o patrimônio dos clientes e da loja, como se isso fosse uma justificativa ou diminuísse um pouco a monstruosidade do crime.

O resultado final da investigação poderá ser qualquer um: o garoto correu, escorregou e bateu a cabeça no chão; a criança teve um mal súbito; ou tinha uma doença congênita. Talvez, no máximo, os dois brutamontes que espancaram e arrastaram o João Victor sejam acusados de homicídio culposo. Já sobre o Habib's não recairá nenhuma culpa. A rede é tão inocente quanto um senador que descobriram possuir milhões numa conta na Suíça, ou que foi delatado diversas vezes por receber propina de empreiteiras, ou ter tido o seu helicóptero preso com centenas de quilos de pasta base de cocaína, ou ter uma fortuna que gosta de fazer viagens às Ilhas Virgens Britânicas... Num país desigual como o Brasil, a justiça e a mídia estão invariavelmente ao lado de banqueiros, latifundiários, empresários. O crime - roubo, sonegação, tráfico de drogas, contrabando, espancamento, assassinato - é sempre relativizado e a sua barbaridade dependerá de quem o cometeu.

No século XIX, um negro que fugia para tentar uma vida melhor longe da fazenda onde vivia como escravo era caçado como uma fera até ser trazido de volta, vivo ou morto, para deleite do senhor de engenho. Quando os dois funcionários da rede de sanduíches saíram à caça do pequeno João Victor eles estavam reproduzindo a cena dos capitães do mato do Brasil Império. O Zumbi Preto Pio de hoje tentava fugir da escravidão imposta pela fome. Ao trazerem a criança indolente semimorta que pedia esmola, arrastada como um escravo irascível, os dois covardes estavam mostrando serviço aos novos ricos da velha sociedade escravocrata dos tempos modernos. A única diferença entre os dois séculos é que agora, em vez de iguarias nas baixelas, os senhores e capatazes se contentam em se empanturrar com coxinhas e esfirras podres contaminadas com ódio e indiferença.


segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

No país do carnaval

O Brasil é um país que parece que avança para o passado. Em 16/03/16 a presidenta Dilma Rousseff nomeou Lula da Silva como ministro-chefe da Casa Civil e um dia depois o juiz Sergio Moro, que comanda o julgamento da operação Lava-Jato, vazou áudios sobre a nomeação ao telejornal da Rede Globo, acusando-a de querer obstruir a operação. No outro dia o STF – através de Gilmar Mendes – decidiu pelo impedimento de posse de Lula. Menos de um ano depois, Temer nomeia Moreira Franco ministro, apesar de ter sido delatado pela Odebrecht como recebedor de propinas nas concessões de aeroportos e também em fraudes na CEF. Sob circunstâncias semelhantes ao caso de Lula, na verdade mais grave pois era claramente para blindar Franco com foro privilegiado, o STF através de Celso de Mello o mantém ministro e, obviamente, com foro privilegiado.

E, então, entra em cena o ministro Eliseu Padilha que diz que o Ministro da Saúde – que comprou terreno no valor de 28 milhões de reais em transação suspeitíssima – foi escolhido em troca de votos no Congresso Nacional.

Pouco antes do carnaval, o empresário José Yunes afirma a um jornalista que à pedido de Eliseu Padilha, Lucio Funaro financiara 140 deputados para garantir a eleição de Eduardo Cunha à presidência da Câmara dos Deputados. Além disso, Yunes afirmou que Michel Temer e Marcelo Odebrecht se reuniram em 2014 para acertarem uma propina de 11 milhões de reais.

Esses fatos estão em evidência agora, durante o carnaval de 2017. Muitas informações estão aparecendo, procurando dar sentido a várias informações (que estão sendo divulgadas por Anonymus) como o “Tabapuã Papers é subura com Temer e Globo” de Eduardo Guimarães no Blog da Cidadania, publicado em 26/02/2017 e “Xadrez do elo desconhecido entre Temer e Yunes” de Luis Nassif no Blog GGN, publicado em 27/02/2017. A seguir, reproduzo um texto do Professor Aldo Fornazieri publicado hoje, também no sítio GGN.

A Lava Jato e seus inimigos íntimos
Aldo Fornazieri
A grande frente que se formou para perpetrar o golpe do impeachment está se desfazendo aos poucos. O ponto de convergência desta frente foi a Operação Lava Jato. Ela era o estandarte, a bandeira tremulante, na qual estava estampada a cruz para liderar o expurgo dos corruptos que haviam se apossado do país. Sérgio Moro parecia ser uma espécie de São Bernardo de Clairvaux, cujos pareceres nos processos e nos mandatos eram verdadeiras chamadas à mobilização de cruzados. Ou, quem sabe, era o bispo Fulk um dos chefes da Cruzada Cátara para combater com violência os hereges porque, entre outras coisas, estes queriam uma maior igualdade.
Nas cruzadas do impeachment todos eram santos: os que foram às ruas, os integrantes do judiciário, os porta-vozes da grande mídia, os políticos contrários ao governo Dilma, os deputados do indescritível espetáculo do 17 de abril, os grupos que pregavam a volta dos militares etc. São Michel, com seu cortejo de anjos e arcanjos, haveria de purificar o Brasil com seu jeitinho manso, com sua habilidade de conversar, com sua capacidade de construir consensos. O Brasil, livre dos demônios vermelhos, seria unificado, num estalar de dedos a economia voltaria a crescer e o manto verde e amarelo da ordem e do progresso haveria de produzir paz, contentamento, empregos e opulência. 

Esta grande mentira, que embebedou boa parte da sociedade, hoje não passa de um espelho estilhaçado em mil pedaços, todos eles refletindo a face da maior quadrilha de corruptos que se apossou do poder. Todos eles refletindo as faces de um grupo indigesto de políticos que se acotovelam para participar da suruba do Foro Privilegiado. Todos eles refletindo as faces de antigos comparsas que agora querem queimar o sagrado estandarte no fogo cruzado que objetiva bloquear a marcha da libertação da terra santa. Até os santos, os chefes dos cavaleiros templários, o São Bernardo, são diariamente chamuscados pelas chamas que vêm das barricadas que tentam bloquear a justiça purificadora.
O PMDB, principal beneficiário, se tornou também o principal inimigo da Lava Jato. Já tentou várias manobras no Congresso para detê-la. Agora vêm os ataques públicos. Junto com alguns colunistas e blogueiros de direita, que se valeram de todas as ilegalidades da Lava Jato e do juiz Moro para derrubar o governo Dilma, desferem petardos contra os vazamentos seletivos, contra a criminalização da política, contra as conduções coercitivas, contra a manutenção de acusados na cadeia para que eles façam delações premiadas, contra o "lado obscuro" da operação e assim por diante. Investigar corruptos do PMDB e do PSDB virou sinônimo de "criminalização da política". Contra o PT se tratava de "limpeza moral". Mas a partir do governo Temer, a fetidez do ar bloqueou até mesmo a chuva nos céus de Brasília.
O PMDB está na linha de frente no combate à Lava Jato. Age como se fosse uma infantaria, uma espécie de bucha de canhão. Já, o PSDB, age como se fosse um grupo de comando de forças especiais. Usa a inteligência, tem infiltrados poderosos nas trincheiras "inimigas" como Rodrigo Janot, o próprio Moro, Gilmar Mendes, Dias Toffoli e o ministro plagiador. Entre os infiltrados, nem todos são amigos entre si. O único ponto de convergência consiste em proteger os caciques do tucanato.Uns torpedeiam a Lava Jato, citando, inclusive, ilegalidades contra petistas; outros,querem preservá-la no que lhes interessa.
As direitas que patrocinaram as mobilizações de rua agora estão divididas. De um lado estão aqueles que querem salvar Temer para salvar o PSDB em 2018. Além de atacarem a Lava Jato, acusam seus ex-colegas classificando-os de "direita xucra", de fazer o jogo da esquerda por querem continuar mobilizando contra a corrupção. Ocorre que as perspectivas de 2018 colocam as direitas em uma encruzilhada, em marchas para caminhos distintos. A "direita xucra" quer a continuidade das mobilizações por duas razões: 1) ficar com Temer poderá significar um naufrágio; 2) não quer uma alternativa tucana, pois está engajada na construção de um projeto mais à direita - talvez Bolsonaro, talvez um outro candidato a la Trump.  
Temer deveria renunciar e Moro se afastar.
Não é necessário muito esforço de lógica para perceber o que a "Operação Mula", que envolve José Yunes, Eliseu Padilha e Michel Temer quer esconder. O PMDB tinha três chefes que recebiam e distribuíam propinas: Michel Temer, Eduardo Cunha e Eliseu Padilha. Não se tratava atos fortuitos, ocasionais, mas de operações sistemáticas de corrupção tramadas, inclusive, em palácios da República.
A continuidade de Temer na presidência da República foi, é e será uma afronta à dignidade nacional, à moralidade social, aos conceitos fundantes da Constituição Federal. Se ainda restam alguns resquícios de comunidade política nacional, Temer precisa se afastar ou ser afastado. Aqui cabe uma cobrança às sumidas oposições: sem o afastamento de Temer, o futuro da dignidade da política, da sua moralidade, da responsabilidade, estará comprometido por anos seguidos. Sem a saída de Temer a herança que ficará serão os escombros da democracia e a percepção de que golpes valem a pena.
O juiz Moro, por seu turno, não  tem mais condições morais de permanecer à frente da Lava Jato. Em recente palestra proferida nos Estados Unidos ele afirmou que não contribuiu para derrubar Dilma. Ele não só contribuiu de forma decisiva como, agora se sabe, agiu deliberadamente para proteger os mal-feitos de Temer ao cancelar perguntas dirigidas pela defesa de Cunha ao presidente-usurpador. Ao barrar as perguntas de Cunha, o juiz Moro cometeu duas ilegalidades: 1) barrou o direito de defesa, algo que não cabe a nenhum juiz praticar; 2) prevaricou, pois o certo era permitir que se pudesse conhecer aquilo que as perguntas pretendiam revelar.
Vejam-se apenas duas das perguntas barradas por Moro dirigidas a Temer: "Qual a relação de Vossa Excelência com o Sr. José Yunes?" e "O Sr. José Yunes recebeu alguma contribuição de campanha para alguma eleição de Vossa Excelência ou do PMDB?". Moro classificou como "chantagem" e "provocações" as perguntas da defesa de Cunha. Está claro que ele agiu para proteger Temer, protegendo um esquema criminoso.
A cada dia que passa, as provas deixam mais evidente que quem destruiu a Petrobras pela corrupção foi o PMDB. A destruiu para agora entregar os seus ativos ao capital estrangeiro. Este governo foi instituído para liquidar as empresas brasileiras a preço de banana, para entregar os direitos dos trabalhadores ao capitalismo de predação, para vender as aposentadorias de pobres idosos ao capital financeiro, para destruir a educação e a saúde públicas.
Agora a mídia e setores de direita querem vender a seguinte equação: a política vai mal, mas a economia vai bem, pois os indicadores estariam melhorando. Proclamar a queda da inflação e dos juros como grande feito desse governo significa vender fumaça, pois os dois indicadores são consequência do efeito inercial da recessão. Na verdade, a política está podre e a economia vai mal. Uma economia que tem mais de 12% de desempregados não pode estar bem. Uma economia que produz novos pobres todos os dias não pode estar bem. Uma economia que destrói o pouco de seguridade social do seu povo vai muito mal.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

A Confraria de 1984

George Orwell, pseudônimo do britânico-indiano Eric Arthur Blair, abordou em várias de suas histórias o poder tal como ele conseguia vê-lo em sua época. Muitos dos escritos continuam atuais. Fazemos uma leitura e enxergarmos o Grande Irmão, um supra-poder que comanda o executivo, o legislativo e o judiciário, que dá prêmio a juízes, que convoca passeatas, que esconde grandes traficantes e criminaliza mendigos, que transforma cidadãos em bandidos e bandidos em santos, que domina, em resumo, todo o discurso no país, estando onipresente nas casas, clínicas, escritórios e fábricas. E a Confraria, uma humilde resistência que tenta se contrapor ao Grande Irmão, que é execrada pela mídia, pelo judiciário, pelos órgãos de repressão do Estado, pelo grande capital, vivendo escondida em ambientes virtuais, pelos becos escuros ou sob tortura nas celas úmidas das masmorras. A seguir, um pequeno trecho de 1984, uma das principais obras de Orwell.  

"A confraria não pode ser liquidada porque não é uma organização no sentido usual do termo. Nada além da ideia de que é indestrutível a mantém ativa. Vocês jamais contarão com nenhum outro alento além dessa ideia. Não experimentarão camaradagem nem encorajamento. Quando por fim forem apanhados, não receberão nenhuma ajuda. Nunca ajudamos nossos membros. No máximo, quando é absolutamente necessário que alguém seja silenciado, às vezes conseguimos introduzir às escondidas uma navalha na cela do prisioneiro. Trabalharão por algum tempo, serão presos, confessarão e depois morrerão. São esses os únicos resultados que haverão de testemunhar. Não há a menor possibilidade de que ocorram mudanças perceptíveis em nossa geração. Nós somos os mortos. Nossa única vida genuína repousa no futuro. Participaremos dela na condição de pó e fragmentos ósseos. Não há, porém, como saber quanto tempo decorrerá até o advento desse futuro. Talvez mil anos. No momento, nada é possível, exceto ampliar pouco a pouco a área de sanidade. Não temos como agir coletivamente. Só podemos disseminar nosso conhecimento de indivíduo a indivíduo, geração após geração. Com a Polícia das Ideias, não há outra saída."

domingo, 22 de janeiro de 2017

Segunda carta

Reproduzo outra carta de H.S.S.P. Voce cuja história apresentei em uma postagem antiga. A verdade é que através de uma longa pesquisa, e nos últimos anos com a ajuda da internet, descobri fatos novos que podem ser acrescentados àqueles anteriormente relatados. Trata-se, acredito com quase toda a certeza, de uma pessoa que é descendente - neto ou bisneto - de um antigo nobre português que veio com D. João VI quando esse fugia do exército de Napoleão. Claro, como muitos dos seus compatriotas, ganhou muito dinheiro com o suor dos escravos; as palavras do Pe. Antonio Vieira e suas críticas contumazes à escravidão não encontraram eco nos antepassados do nosso personagem. O nobre, participante de uma sociedade secreta, alguns dos seus membros se intitulando Sábios de Sião no dizer de um pesquisador conhecido, parece ter tido uma vida tranquila, herdando aos seus descendentes algumas obras de arte. O neto (ou bisneto, não é claro) casou-se com uma certa Maria Filomena e, após alguns anos de casamento, tudo leva a crer que teve que viajar. A carta reproduzida é datada de 31 de maio de 1914, escrita da cidade P. Infelizmente, a ausência de envelope impede de precisar o local exato de onde ela foi escrita.
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Querida Maria, o exílio é insuportável. Todos os dias penso em você e nas crianças. Leio o jornal pela manhã na ilusão de encontrar notícias da terra. Trabalho muito. Canso. Certas noites, mesmo cansado, não consigo dormir. Nas três últimas, tive três sonhos. Permita-me contá-los, pois como sabes, sempre me preocupam sonhos que, acredito, tenham alguma mensagem cifrada.

No primeiro, eu passeava por uma cidade. Havia uma praia e eu a olhava num momento em que era maré baixxa. O mar encontrava-se quase na linha do horizonte. Quando passava por uma viela no centro da cidade, eu ouvia o barulho de ondas como se de repente a maré tivesse subido, demasiadamente até, de modo que a água avançava cidade a dentro. Eu estava me dirigindo a uma casa, mas fugíamos para um lugar mais seguro: a casa para onde nos dirigíamos era inundada pelo mar.

Na segunda, encontrava-me numa casa perto da praia. Pela janela eu via algo assustador: uma onda lavava a calçada em frente à referida casa e subia a rua, que era um pouco inclinada em relação à praia. Enquanto esta onda subia e retornava ao mar, eu pegava os objetos mais importantes que podia na casa, os colocava num local mais alto e dizia às outras pessoas que lá se encontravam: vamos embora pois a próxima onda alagará tudo aqui. E a onda gigantesca que eu avistava parecia uma vaga quebrando violentamente nos rochedos da Bretanha, tal qual conhecidos me descreveram.

No terceiro sonho eu estava num local com muitas pessoas e resolvia caminhar um pouco com uma moça que talvez fosse minha amiga. Dávamos uns passos e ao longe víamos um bar com gente ocupando três mesas e mais algumas pessoas no balcão. A moça dizia-me: 'olha o professor H. bebendo no bar.' Eu olhava e não conseguia ver o tal professor; dizia à moça: 'estás enganada, o professor H. não se encontra no bar'. Ela insistia que sim. Eu apostava com ela que não e ia ao bar. Ao chegar, entretanto, não havia mais nenhuma pessoa e o bar encontrava-se na beira da praia. Eu caminhava em direção ao oceano na procura dos clientes do bar, pisando na areia molhada característica da maré baixa, até que chegava a um local onde havia três altos muros perpendiculares entre si. O que se encontrava atrás do muro era invisível aos olhos. Eu imaginava também que se caminhasse em direção ao canto formado por duas paredes, elas se afastariam concomitantemente e eu caminharia até encontrar os desaparecidos, numa outra terra, talvez.

Sonhos. Fatos muito pessoais. Desculpe-me. Hoje senti saudade do cheiro do mormaço da chuva molhando a areia quente. Uma fumaça quase onírica subindo da terra como se fosse uma legião de espíritos que subisse alegremente para a liberdade da atmosfera. Certas vezes vejo pesadas nuvens, baixas, aproximando-se de todas as direções e o repentino escurecimento do mundo me deixa surpreso e hipnotizado, de uma hipnose como se fosse uma peça em três atos: no primeiro, a aproximação; no segundo, o aumento contínuo do rumor da chuva e no último, a inelutável queda da água sobre a nossa cabeça.

Há poucos dias fiz um passeio a uma cidade relativamente distante. Quando passei de madrugada por cidadezinhas ao longo do caminho e vi as luzes acesas, sabendo que os seus moradores dormiam, senti uma estranha sensação de tranquilidade, uma sensação transmitida pelo conjunto das poucas luzes dos lampiões e do silêncio. As viagens noturnas, embora raras, são momentos de reflexão, como quando durante toda a noite as constelações, o escorpião ou o cruzeiro, acompanham o viajante e ele lembra que elas foram vistas pelos homens há três ou quatro mil anos atrás. Dá um certo conforto saber que ninguém está completamente perdido. Olhando para um lado e vendo o cruzeiro, pensa-se, "estamos andando em direção ao oeste", ou se ao contrário seja o escorpião, pensa-se, "agora para o norte".

Não tenho certeza, mas quando se trata de felicidade a vida é curtíssima, mas quando se trata de angústia, a vida é uma eternidade.

Despeço-me. Que o tempo nos seja breve.

O seu H.S.S.P. Voce.