domingo, 19 de julho de 2015

Vista de Delft

"Vista de Delft" é uma obra-prima do pintor holandês Johannes Vermeer, que viveu no século XVII. Considerado um dos primeiros pintores impressionistas, Vermeer teve vários admiradores ao longo do tempo. O escritor francês Marcel Proust, por exemplo, considerava a "Vista de Delft" como a obra prima da pintura universal. 



Massacre dos inocentes

A obra "Massacre dos inocentes" foi concluída em 1611 pelo pintor barroco holandês Peter Paul Rubens (1577 - 1640). A pintura retrata uma cena chocante do assassinato de crianças, massacre esse ocorrido no século I. É assustador que o mundo muda, a tecnologia avança, mas muitas práticas humanas permanecem inalteradas. Talvez se a obra quisesse retratar os dias de hoje veríamos caças bombardeando casas em Gaza ou alguma aldeia miserável do Iêmen...


Lutando contra a sombra

"...lutando contra a sombra, a claridade do lampião abaçanava um pedaço de couro, nigelava um punhal de fulgurantes lantejoulas, em quadros que não eram mais que cópias medíocres, depositava uma douragem preciosa como a pátina do passado ou o verniz de um mestre, e fazia enfim daquel tugúrio, onde só havia imitações e insignificâncias, um inestimável Rembrandt." Marcel Proust

Abaixo encontra-se a obra do pintor holandês Rembrandt van Rijn, que viveu no século XVII, intitulada 'Ronda Noturna", concluída em 1642. Como é característico nas obras de Rembrandt há muitas sombras e penumbras. Os personagens que aparecem em primeiro plano são inspirados em pessoas reais. Um destaque especial é a personagem feminina - uma criança - que está iluminada de uma forma bastante particular, como se um feixe de luz quisesse destacá-la das demais personagens. Segundo alguns críticos a menina representaria Saskia van Uylenburgh, sua primeira esposa, que morreu prematuramente no ano de conclusão da obra.



segunda-feira, 13 de julho de 2015

Sobre as secas

Especula-se que a existência de extensos períodos secos na região onde hoje é o Nordeste brasileiro possa ter sido originado há milhões de anos. De fato, análise preliminar de alguns fósseis da Formação Crato do Período Cretáceo sugere a ocorrência de grandes períodos secos nesta região [1]. Isso não significa que o referido período de estiagem tenha sido uma constante ao longo de mais de 100 milhões de anos desde o Cretáceo; para comprovar tal hipótese seria necessária a análise de diversos materiais fósseis ou de origem geológica pertencentes a esta centena de milhões de anos. Tal estudo nunca foi feito até o momento e, portanto, dizer que os períodos de seca ocorram há milhões de anos é uma mera suposição, ainda sem uma base científica. O que se sabe é que, pelo menos em alguma época do Cretáceo, parece ter havido um período de seca [1]. Então, deixando as suposições de difíceis comprovações para trás, avancemos até as épocas históricas.

Um pouco de história. Os registros sobre as secas na região Nordeste que chegaram até nós são todos posteriores à chegada dos europeus ao Brasil. Isso se deve principalmente ao fato de que não havia um registro escrito da história por parte dos habitantes da região onde hoje é o Brasil e por conta disso e do extermínio da população nativa, a sua história foi perdida. 

No século XVI há registro de secas na Bahia e em Pernambuco nos anos de 1559, 1564, 1587 e 1592, acreditando-se que as mesmas tenham se estendido para os outros estados, embora os mesmos fossem muito menos populosos. Já no século XVII os registros apontam secas ocorrendo no Nordeste em 1603, 1609, 1614, 1645, 1652 e 1692 [3].

No século XVIII ocorreram secas em 1710 - 1711, em 1722 - 1728, em 1744 - 1746, em 1766, em 1777 - 1778 (que segundo o engenheiro Arrojado Lisboa, destruiu sete oitavos do gado [3]) e no período 1790 - 1793, denominada de "Seca Grande". 

Curiosamente, o fenômeno da seca no Nordeste, em particular no Ceará, fez com que diversas vilas e cidades fossem criadas. Joaquim Alves, em sua obra História das Secas (Séculos XVII a XIX) [3], afirma o seguinte: 

"No ano de 1766 houve uma seca comum ao Ceará e ao Rio Grande do Norte. As populações atingidas pelo flagelo não permaneceram em suas terras. Aliás, desde a crise de 1723 que a emigração das populações praieiras e sertanejas para as serras se tornou uma norma. Nas que se lhes seguiram, o movimento emigratório foi mais intenso, em virtude do crescimento da população, dando origem, assim, à formação de bandos dispersos pelos sertões, à procura de alimento. Entre nós esses bandos tiveram maior desenvolvimento, sendo necessário que o governo de Pernambuco, a quem estava afeto o do Ceará, tomasses medidas especiais para impedir as depredações que ocasionavam.

Assim é que, logo que apareceram os grupos resultantes da seca de 1766, ordenava o Governo que fossem reunidos em povoações, e os que não se submetessem às ordens seriam considerados fora da lei e punidos como alteadores e assassinos. A esse tempo foi 'expedida ao Governo de Pernambuco uma Ordem Regia para que os vadios e facínoras que viviam a vagabundear pela Capitania, se ajuntassem em povoações por mais de 50 fogos, repartindo entre eles com justa proporção as terras adjascentes, sob pena dos refratários serem considerados salteadores e inimigos comuns e como tais punidos severamente.' Em consequência da Ordem Régia, foram criadas as vilas de Sobral, São Bernardo das Russas (atual Russas), São João do Príncipe (atual Tauá) e Quixeramobim".   

No século XIX também foram registradas diversas secas. No Ceará e na Paraíba foram registradas uma seca em 1803-1804 e no Rio Grande do Norte e no Ceará uma em 1808-1810. Em 1814 foi registrada uma seca no Rio Grande do Norte e em 1817 uma no Ceará. Em 1824-1825 ocorreu uma grande seca que castigou o Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco. Em 1833 a seca castigou principalmente o Rio Grande do Norte e Pernambuco (é possível que também tenha afetado outros estados). De 1844 a 1846 houve uma grande seca no Ceará, produzindo um grande número de pessoas, principalmente nas viagens migratórias à procura de melhores condições de vida. Em 1860 houve uma seca no Rio Grande do Norte e na Bahia; em 1869 teve uma seca no Rio Grande do Norte que não se estendeu a outros estados. E a maior seca do século ocorreu no período 1877 - 1879. Durante o primeiro ano da seca a população de Mossoró, no Rio Grande do Norte passou de 4.000 para 25.000 habitantes, muitas das quais morreriam de miséria ou peste [2]. Segundo Rodolfo Teófilo morreram em Fortaleza de 1877 a 1879, 65.163 pessoas, sendo que a população desta cidade se elevou, no pico da seca, a cerca de 150 mil pessoas. Ocorreram ainda secas menores, em 1888 - 1889 e em 1898. 

Há cem anos uma grande seca castigou o Nordeste do Brasil, acarretando a morte de milhares de pessoas. Este acontecimento serviu como pano de fundo para uma obra publicada pela escritora Rachel de Queiroz em 1930, O quinze. Posteriormente, em 1938, o escritor alagoano Graciliano Ramos - um dos grandes romancistas brasileiros do século XX - publicou uma belíssima obra que visitava o mesmo tema, Vidas Secas, embora a época em que se desenrola a história não seja bem definida. Os dois romances relatam fases tristes da história do Brasil.



Década de 40: uma obra prima de Josué de Castro

Permeando os livros O quinze e Vidas Secas está a questão da fome. A fome pode ser considerada uma das principais características de uma sociedade excludente. Claro que discutir a fome num país como o Brasil exigiria a avaliação de diversos livros e dezenas de teses. Apesar da complexidade, algumas obras como Geografia da Fome, do médico e escritor Josué de Castro, analisaram importantes aspectos do problema, como o fato de que excesso populacional e baixa produtividade de alimentos, de modo algum, justificam a sua existência. A seguir reproduzimos o início de Geografia da Fome [5] escrito pelo próprio autor no prefácio de 1960: 

"O assunto deste livro é bastante delicado e perigoso. A tal ponto delicado e perigoso que se constituiu num dos tabus de nossa civilização. É realmente estranho, chocante, o fato de que, num mundo como o nosso, caracterizado por tão excessiva capacidade de escrever-se e de publicar-se, haja até hoje tão pouca coisa escrita acerca do fenômeno da fome, em suas diferentes manifestações. Consultando a bibliografia mundial sobre o assunto, verifica-se a sua extrema exigüidade. Extrema quando a pomos em contraste com a minuciosa abundância de trabalhos sobre temas outros de muito menor significação. Tal pobreza bibliográfica se apresenta ainda mais estranha e mais chocante quando meditamos acerca do conteúdo do tema da fome — de sua transcendental importância e de sua categórica finalidade orgânica. 

Já outros estudiosos se tinham espantado diante deste inexplicável vazio bibliográfico: não há muito, Gregorio Marañon, recolhendo material para a elaboração de um trabalho sobre a regulação hormonal da fome,1 se surpreendeu com o número insignificante de fichas que conseguiu reunir acerca deste problema fundamental. Registrando o fato, o escritor espanhol, interessado no momento noutra ordem de idéias, não se deu ao trabalho de buscar as razões ocultas que determinaram esta quase que abstenção de nossa cultura em abordar o tema da fome. Em examiná-lo mais a fundo, não só em seu aspecto estrito de sensação — impulso e instinto que tem servido de força motriz a evolução da humanidade (Espinosa) — como em seu aspecto mais amplo da calamidade universal. Sob este último aspecto, se fizermos um estudo comparativo da fome com as outras grandes calamidades que costumam assolar o mundo — a guerra e as pestes ou epidemias — verificaremos, mais uma vez, que a menos debatida, a menos conhecida em suas causas e efeitos, é exatamente a fome. Para cada mil publicações referentes aos problemas da guerra, pode-se contar com um trabalho acerca da fome. No entanto, os estragos produzidos por esta última calamidade são maiores do que os das guerras e das epidemias juntas, conforme é possível apurar, mesmo contando com as poucas referências existentes sobre o assunto. E há mais, a favor deste triste primado da fome sobre as outras calamidades, o fato universalmente comprovado de que ela constitui a causa mais constante e efetiva das guerras e a fase preparatória do terreno, quase que obrigatória, para a eclosão das grandes epidemias. 

Quais são os fatores ocultos desta verdadeira conspiração de silêncio em torno da fome? Será por simples obra do acaso que o tema não tem atraído devidamente o interesse dos espíritos especulativos e criadores dos nossos tempos? Não cremos. O fenômeno é tão marcante e se apresenta com tal regularidade que, longe de traduzir obra do acaso, parece condicionado às mesmas leis gerais que regulam as outras manifestações sociais de nossa cultura. Trata-se de um silêncio premeditado pela própria alma da cultura: foram os interesses e os preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica de nossa chamada civilização ocidental que tornaram a fome um tema proibido, ou pelo menos pouco aconselhável de ser abordado publicamente. O fundamento moral que deu origem a esta espécie de interdição baseia-se no fato de que o fenômeno da fome, tanto a fome de alimentos como a fome sexual, é um instinto primário e por isso um tanto chocante para uma cultura racionalista como a nossa, que procura por todos os meios impor o predomínio da razão sobre o dos instintos na conduta humana. Considerando o instinto como o animal e só a razão como o social, a nossa civilização, em sua fase decadente, vem procurando negar sistematicamente o poder criador dos instintos, tidos como forças desprezíveis. (...) 

Quanto à fome, foram necessárias duas terríveis guerras mundiais e uma tremenda revolução social — a revolução russa — nas quais pereceram dezessete milhões de criaturas, dos quais doze milhões de fome, para que a civilização ocidental acordasse do seu cômodo sonho e se apercebesse de que a fome é uma realidade demasiado gritante e extensa, para ser tapada com uma peneira aos olhos do mundo." 

Um caso escandaloso: a seca de 1979 - 1983

Apesar da análise profunda de Josué de Castro, o seu estudo e alerta não serviu para evitar uma tragédia cerca de 33 anos depois. De fato, uma seca que se estendeu entre os anos de 1979 e 1983 ceifou a vida de milhares de nordestinos. Não existindo, à época, um programa governamental que garantisse uma renda decente para mitigar o problema da fome, não houve muita escapatória para os pequenos agricultores que perderam toda a lavoura e animais. O descaso foi denunciado por várias entidades. Por exemplo, a Comissão Pastoral da Terra produziu uma interessante obra, intitulada O Genocídio do Nordeste 1979 - 1983. O livro [6] começa com o seguinte texto:

"A seca que assolou o Nordeste de 1979 a 1983 deixou milhares de mortos. Talvez mais de um milhão. (...) Foi a pior seca do século, dizem os mais velhos. Nunca se viu tanto sofrimento, miséria e injustiça em cima da terra sem verde. E nunca se tinha visto o povo se movimentar e refletir sobre a seca como desta vez. Por isso, a última seca não foi mais entendida por todos como uma desgraça natural, nem as mortes encaradas como uma fatalidade. Ampliou-se a compreensão de como os latifundiários e o governo se aproveitam do acontecimento natural para aumentar seu poder. Não foi exatamente a seca quem matou os nordestinos. Houve um genocídio intencionado na região, naqueles anos. É o que este livro pretende mostrar."

Foi a partir de 1982, o quarto ano sem chuvas, que trabalhadores rurais, líderes sindicais, agentes de pastoral representantes diversos do movimento popular, bispos e assessores começaram a reunir-se para discutir grande seca. Num seminário sobre Reforma Agrária realizado em junho de 1984, em Canindé, Ceará, surgiu a ideia de se fazer um levantamento dos mortos, superando-se as dificuldades metodológicas com o apoio do Ibase. Como distinguir se a morte de uma criança aconteceu por causa da seca ou se deveu a outro fator? Como conseguir que as famílias declarassem que seus filhos morreram de fome, o que normalmente é tão humilhante?"

Análises expressas no Genocídio do Nordeste 1979 - 1983 e em várias outras obras sobre o tema mostram que as causas das mortes envolveram e se correlacionaram diretamente à concentração de terras por partes dos latifundiários. Como asseverou Daniel Rech, assessor jurídico da CPT Nacional na referida obra:

"Apenas 44,3 % da área aproveitável dos latifúndios era explorada. Destes, somente 11 % eram aproveitados para culturas e extração vegetal, incluindo aí a grande agricultura de exportação. O dado mais chocante, contudo, é a percentagem de áreas não aproveitadas: 55,7 % das áreas rentáveis do latifúndio são conservadas para especulação. Considerando como os dados doINCRA costumam ser complacentes quando se trata do aproveitamento agrícola dos latifúndios, podemos supor que a percentagem de terras não aproveitadas deve ser superior a estes 55,7 %.

Mas não é só isso. A concentração da terra, corresponde a concentração da água, do crédito e da alocação de recursos do governo em tempo de calamidade. Principalmente no semi-árido, a concentração fundiária, por si só, não resulta em riqueza, mas é o meio através do qual o senhor de terras capta para dentro de suas cercas a construção de açudes, aguadas, etc. Enfim,concentração é muito mais do que uma categoria espacial: corresponde a um processo político no qual uma classe assalta a outra com as bênçãos do Estado e de seus aparelhos.

Essa situação de morte, agravada pela longa estiagem, não era desconhecida pelas autoridades públicas que - também pela omissão - consentiram no Genocídio.

(...)

Se atentarmos para o salário de Cr$ 15.300,00 pago aos alistados nas frentes de emergência, podemos dizer que foram organizados para morrer de fome. numa situação de calamidade pública reconhecida, tudo se torna mais difícil, sobretudo prover os alimentos. Como sobreviver com um terço do salário mínimo regional? Isto não é submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial, como se lê no texto da Lei?

'Um pai de família ganhar por dia de serviço no sol, dando duro, Cr$ 136,00 sujeito a sustentar sua família de 8 a 10 pessoas. Para se alimentar e comprar tudo o que uma família precisa com este dinheiro. Quando um prato de comida numa banca, das piores comidas, é mais deste dinheiro (Este pagamento correspondia a menos de Cr$ 4.000,00 por mês, quando o salário mínimo oficial - que todos sabem que é de fome - estava em Cr$ 6.700,00). Eu não entendo nunca o que eles pensam, quando estipulam um salário destes. Só pode ser uma espécie de zombaria, caçoando do povo' [Depoimento de um lavrador in As secas: exploração de um Povo, Feira de Santana, Bahia, 1982].

O crime é evidente. Milhares de pessoas morreram de fome no Nordeste porque lhes faltou socorro. E havia no país autoridades que detinham o controle das providências, em condições de socorrer os famintos, que poderiam ter evitado a morte de tantos. Estes indivíduos são os autores do genocídio. São assassinos aqueles que podiam impedir estas mortes e não se mobilizaram para isto.


O certo é que a obra Genocídio do Nordeste 1979 - 1983 conseguiu reunir, para ficar na memória das pessoas, o nome de cerca de 4000 crianças que morreram em várias comunidades do interior do Nordeste no período referido. Como parte da conclusão, encontra-se:

"Conhecemos as causas reais de tanta dor e sofrimento, sempre ligados à concentração da água e da terra, à omissão e inoperância dos órgãos do governo e à perversidade do políticos que ocupam seus cargos de direção. Diante do que foi colocado, não podemos não dizer que houve um crime de genocídio. A visão de homens esqueléticos, mulheres carcomidas pela fome, crianças esvaídas por diarréias sem conteúdo, flagelados quebrando pedras sob um sol causticante nas frentes de serviço... é um clamor de justiça e um apelo à consciência de todos os brasileiros.

Os nomes relacionados neste livro são um documento irrecorrível. Diante da memória das crianças que morreram de fome e sede, aparece como revoltante a postura daqueles que, de seus gabinetes luxuosos, nada fizeram para sequer amenizar a agonia do povo. Estes indivíduos são culpados de pelo menos 700.000 mortes."

Quase duas décadas depois isso não mudou muito. A exclusão marcava a sociedade brasileira como um todo. Em 2001 o Brasil - não apenas o Nordeste - tinha cerca de 50 milhões de indigentes. Isto significa que naquela época quase 25 % da população vivia com uma renda inferior a oitenta reais por mês [7,8]. Ou seja, o Brasil entrou o século XXI tendo um quarto de sua população vivendo miseravelmente. Em outra postagem, continuaremos refletindo sobre este tema.

Referências:

[1] J.H. da Silva, P.T.C. Freire, B.T.O. Abagaro et al., Spectroch. Acta A 68, 251 (2013).
[2] I. de Souza, J. Medeiros Filho, Os degredados filhos da Seca: Uma análise sócio-política das secas do Nordeste, Ed. Vozes: Petrópolis, 1983.
[3] Joaquim Alves, História das Secas (Séculos XVII a XIX), Coleção Mossoroense, volume CCXXV, 1982.
[4] Thomaz Pompeu Sobrinho, História das Secas (Século XX), Coleção Mossoroense, volume CCXXVI, 1982.
[5] Josué de Castro, Geografia da Fome: o dilema brasileiro: pão ou aço, 10 a. edição revista, Ed. Antares: Rio de Janeiro, 1984.
[6] O genocídio do Nordeste 1979 - 1983, CPT-CEPAC-IBASE, Co-edição: Edições Mandacaru Ltda, São Paulo, s/d.
[7] http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u32604.shtml Visitado em 10/07/2015.
[8] http://www.educacional.com.br/noticiacomentada/020627_not01.asp Visitado em 10/07/2015.

quinta-feira, 9 de julho de 2015

O campanário de Santo Hilário


No seu passeio pela memória o narrador da Research se detém por uns bons momentos na velha Combray de sua infância. Combray, que será recuperada mais a frente, por exemplo, quando ele sentir o sabor da madalena molhada no chá numa tarde fria de Paris, é reconstruída pedaço a pedaço com suas casas, suas ruas com nomes de santos, suas personagens comuns e estranhas ao mesmo tempo, seus jardins e sua igreja com o belo campanário. Essa estrutura da igreja de Combray, em particular, irá preencher diversas páginas de No caminho de Swann. Como será revelado pelo narrador, apesar de no futuro ele vir a conhecer variados campanários de diversas igrejas, nenhum terá a beleza daquele que dominava a vida dos habitantes da pequena cidade; e que dominará parte de suas lembranças pelo resto da vida. Outros excertos da obra máxima de Marcel Proust na tradução de Mário Quintana:

Combray, de longe, por dez léguas em redor, vista do trem, quando chegávamos na semana anterior à Páscoa, não era mais que uma igreja que resumia a cidade, representava-a, falava dela e por ela às distâncias, e, quando nos aproximávamos, mantinha aconchegados em torno de sua grande capa sombria, em pleno campo, contra o vento, como uma pastora a suas ovelhas, os lombos lanosos e cinzentos das casas reunidas que um resto de muralhas da Idade Média cingia aqui e ali num traço tão perfeitamente circular como uma cidadezinha em um quadro de primitivos. Para morar, Combray era um pouco triste, como eram tristes suas ruas, cujas casas, edificadas com as pedras escuras da região, precedidas de degraus exteriores e com seus telhados de beirais salientes que faziam sombra, eram tão escuras que, mal começava a declinar o dia, já era preciso erguer as cortinas nas “salas” (…)

Desde muito longe já se reconhecia a torre de Santo Hilário, que imprimia seu vulto inesquecível no horizonte onde ainda não assomava Combray; na semana da Páscoa, quando meu pai avistava, do trem que nos trazia de Paris, aquela torre que deslizava por todos os campos do céu, fazendo correr em todos os sentidos seu pequeno galo de ferro, logo ia nos dizendo: ‘Andem, recolham as capas, que já chegamos’. E em um dos maiores passeios que dávamos em Combray, havia um trecho em que o estreito caminho desembocava de súbito em um imenso planalto delimitado no horizonte pelo recorte irregular de uns bosques, atrás do quais somente emergia a fina agulha da torre de Santo Hilário (...)

Muitas vezes, na praça, de volta do passeio, minha avó me fazia parar para olhar o campanário. Das janelas de sua torre, colocadas de duas em duas, umas acima das outras, com esta justa e original proporção das distâncias que não só aos rostos humanos empresta beleza e dignidade, o campanário soltava, deixava tombar, a intervalos regulares, revoadas de corvos que, durante um momento, voejavam grasnando, como se as velhas pedras que os deixavam à vontade sem dar mostras de vê-los, tornando-se de súbito inabitá- veis e descarregando um elemento de agitação infinita, os tivessem batido e escorregado. (...)

Sem saber bem por que, minha avó apreciava na torre de Santo Hilário essa ausência de vulgaridade, de pretensão, de mesquinharia que a levava a estimar, e considerar pródigas de benéfica influência, tanto a natureza, sempre que a mão do homem não a tivesse apoucado, como fazia o jardineiro de minha tia-avó, como as obras de gênio. E, sem dúvida, qualquer parte da igreja a distinguia de qualquer outro edifício por uma espécie de pensamento que lhe era infuso, mas no campanário é que ela parecia tomar consciência de si mesma, afirmar uma existência individual e responsável. Ele é que falava por ela. Creio que, confusamente, minha avó achava no campanário de Combray aquilo que tinha mais valor no mundo para ela: naturalidade e distinção. (...)

“E ainda hoje, em alguma grande cidade da província ou em algum bairro de Paris que não conheço bem, quando um transeunte ‘que me mostra o caminho’ me indica ao longe, como ponto de referência, uma torre de hospital, um campanário de convento a erguer a ponta de sua torre eclesiástica na esquina de uma rua que eu devo tomar, por pouco que minha memória lhe possa obscuramente encontrar algum traço de semelhança com a figura amada e desaparecida, se acaso o transeunte se volta para ver se não me perco, há de espantar-se ao me surpreender, esquecido do passeio ou da obrigação, ali parado diante da torre, horas e horas, imóvel, procurando lembrar-me, sentindo, no fundo de mim, terras reconquistadas ao esquecimento, que vão secando e delineando seu perfil, e nesse instante, e mais ansiosamente do que ainda há pouco quando lhe pedia que me informasse, continuo a procurar o caminho, dobro uma rua... mas em meu coração...”

quarta-feira, 8 de julho de 2015

O sabor do chá com a madalena

Um dos pontos mais marcantes do primeiro volume de Em busca do tempo perdido (No caminho de Swann) é aquele no qual o narrador, depois de muito tempo que visitara Combray, é invadido por uma lembrança avassaladora dos momentos em que passara na cidade interiorana durante a sua infância. O aspecto mais impressionante do evento é o fato daquelas lembranças e de antigos sentimentos terem sido despertados pelo sabor de um pequeno bolo - uma madalena - molhada com chá e que estas lembranças trouxeram ao narrador um prazer surpreendente e inexplicável. Mais um momento de grande arte de Marcel Proust na tradução preciosa de Mário Quintana:

"Muitos anos fazia que, de Combray, tudo quanto não fosse o teatro e o drama do meu deitar não mais existia para mim, quando, por um dia de inverno, ao voltar para casa, vendo minha mãe que eu tinha frio, ofereceu-me chá, coisa que era contra meus hábitos. A princípio recusei, mas, não sei por que, terminei aceitando. Ela mandou buscar um desses bolinhos pequenos e cheios chamados madalenas e que parecem moldados na valva estriada de uma concha de São Tiago. Em breve, maquinalmente, acabrunhado com aquele triste dia e a perspectiva de mais um dia tão sombrio como o primeiro, levei aos lábios uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço de madalena. Mas no mesmo instante em que aquele gole, de envolta com as migalhas do bolo, tocou meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noção de sua causa. Esse prazer logo me tornara indiferente às vicissitudes da vida, inofensivos seus desastres, ilusória sua brevidade, tal como o faz o amor, enchendo-me de uma preciosa essência: ou, antes, essa essência não estava em mim, era eu mesmo. Cessava de me sentir medíocre, contingente, mortal. De onde me teria vindo aquela poderosa alegria? Senti que estava ligada ao gosto do chá e do bolo, mas que o ultrapassava infinitamente e não devia ser da mesma natureza. (...)

E mal reconheci o gosto do pedaço de madalena molhado em chá que minha tia me dava (embora ainda não soubesse, e tivesse de deixar para muito mais tarde tal averiguação por que motivo aquela lembrança me tornava tão feliz), eis que a velha casa cinzenta, de fachada para a rua, onde estava seu quarto, veio aplicar-se, como um cenário de teatro, ao pequeno pavilhão que dava para o jardim e que fora construído para meus pais aos fundos da mesma (esse truncado trecho da casa que era só o que eu recordava até então); e, com a casa, a cidade toda, desde a manhã à noite, por qualquer tempo, a praça para onde me mandavam antes do almoço, as ruas por onde eu passava e as estradas que seguíamos quando fazia bom tempo. E, como nesse divertimento japonês de mergulhar numa bacia de porcelana cheia d'água pedacinhos de papel, até então indistintos e que, depois de molhados, se estiram, se delineiam, se colorem, se diferenciam, tornam-se flores, casas, personagens consistentes e reconhecíveis, assim agora todas as flores de nosso jardim e as do parque do sr. Swann, e as ninféias do Vivonne, e a boa gente da aldeia e suas pequenas moradias e a igreja e toda a Combray e seus arredores, tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, da minha taça de chá."