segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Os dragões da ponte

Em Ljubljana, sobre a ponte, dragões vigiam a cidade e observam sorrateiramente os transeuntes. Eles encontram-se petrificados mas sabe-se que de uma hora para outra poderão voltar à vida e queimar, com seus hálitos de fogo, as últimas lembranças do passado, que se seguram com forças sobre-humanas aos parapeitos da memória, numa tentativa final de não se precipitarem no abismo do esquecimento. No rio, pássaros voam e cantam como se tivessem a eternidade à disposição. E crianças também, ao lado, brincam com a mesma ilusão. Caleidoscópio, canetinha colorida, caderno de desenho, papel vegetal, pião. E as pessoas passam para ver a feira de antiguidade ao largo do rio: pinturas, selos, moedas, cédulas, medalhas, porta-jóias, cadeiras, mesinhas, colares, envelopes, cartões postais... uma carta da avó que veio de Sarajevo, um postal de Zagreb, uma pintura de Montenegro e uma lembrança do bisavô registrada numa fotografia amarelada. 

01/09/2013.

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Setenta anos de Hiroshima

Há 70 anos uma bomba, lançada de um avião norte americano, destruía Hiroshima. A loucura alcançava o seu mais alto grau de sofisticação. Um brinquedo, uma ponte, uma janela, um livro, uma balaustrada, um violino, uma mesinha, uma baqueta, um pedaço de pão, um cobertor, um sapato, uma caneta, um vaso, uma rosa, uma carta, uma criança no chão. O silêncio. O estrondoso e assustador silêncio.

E para a efeméride não passar em branco, segue um pequeno texto de Gérard de Nerval, em Aurélia, a realidade dentro da loucura:

"Como pintar o estranho desespero a que essas ideias aos poucos me reduziram? Um mau gênio tinha tomado o meu lugar no mundo das almas; para Aurélia, era eu mesmo, e o espírito desolado que vivificava meu corpo, enfraquecido, desdenhado, ignorado por ela, via-se para sempre destinado ao desespero ou ao nada. Empreguei todas as forças da minha vontade para penetrar ainda o mistério de que tinha tirado alguns véus. Só posso dar aqui uma ideia estranha do que resultou dessa contenção de espírito. Sentia-me deslizar por um fio estendido de comprimento infinito. A terra, atravessada de veias coloridas de metais em fusão, como já a tinha visto, se clareava aos poucos pela expansão do fogo central, cuja brancura se mesclava com a cor cereja dos flancos do orbe interior. Surpreendia-me encontrar às vezes vastas manchas de água, suspensas como são as nuvens no ar, e mesmo assim oferecendo uma tal densidade que se podiam destacar flocos. mas sem dúvida se tratava de um líquido diferente da água terrestre, e por certo a evaporação do que figurava o mar e os rios para o mundo dos espíritos."