quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Duzentos anos na casa dos mortos

Há exatamente 200 anos, em 11 de novembro de 1821, nascia em São Petersburgo, na Rússia, um dos grandes escritores da literatura russa, Fiódor Dostoiévski. Para comemorar, vou fazer um brevíssimo comentário, pequeno resumo na verdade, de sete das primeiras obras do romancista russo.

"Pobre gente" é a história de um velho funcionário público, Makar Alieksiéievith, solteiro, que vive numa pensão miserável e é apaixonado (ou teria uma grande preocupação paternal, não é muito claro) por uma pobre moça, Varvara Aliekséievna. Em cartas trocadas percebe-se a vida dura que eles e os seus conhecidos levam: "também nele [no quarto] se respira um ar um pouco úmido; quero dizer: não pretendo dar a entender que cheira mal nos quartos, mas que... enfim, que exalam um cheiro putrefato (...)". Também são relatadas as tarefas sem sentido que executam: "Sentia-me tão feliz! Ansioso por gastar energias, atirei-me ao trabalho sobre a papelada. E em que acabou afinal tudo isso? Aconteceu que ao relancear a vista à minha volta, tornei a encontrar tudo como dantes... cinzento e insípido". Makar tem saudade da antiga pensão em que morara por vinte anos. Apesar do amor que sente, Makar fala que se sente como um pai para Varvara. Já essa conta por carta e também através de um caderno onde fizera anotações, a sua vida presente e pregressa. Na leitura do caderno descobre-se a grande admiração da moça por um colega de pensão que morrera muito jovem, Pietienhka, um leitor voraz e um amante do grande poeta Púchkin. As trocas de cartas e a sucessão de frustrações por causa da miséria de Makar e de Varvara acaba quando essa última recebe uma proposta de casamento e se muda com o marido para o interior. E nunca mais haverá troca de correspondência. Um triste final.

"O duplo" é outra obra muito gostosa de se ler. Conta a história de um funcionário público, esquizofrênico e com outras alterações psicológicas. Logo o primeiro parágrafo suscitaria uma longa discussão. Em primeiro lugar ele mostra um embate entre a realidade do mundo quando alguém está acordado e o mundo dos sonhos. "(...) Durante dois minutos continuou deitado sem fazer um movimento, como alguém que não sabe bem se ainda dorme ou se já está acordado, se já está rodeado do mundo real ou se continuava a sonhar. Em breve, porém, o senhor Goliádkin sentiu claramente que lhe voltavam as impressões habituais. As paredes do pequeno quarto cobertas de pó (...)" Aqui claramente há uma ambiguidade, pois o que significaria 'impressões habituais'? Em segundo lugar ele se relaciona com o início de "Aurélia", de Geràrd de Nerval, obra que relata as impressões de um esquizofrênico. Logo no começo da obra de Nerval aparece uma frase paradigmática: "O sonho é uma segunda vida". Aqui também a questão do que á a realidade dominará toda a história de "Aurélia", em forte correspondência com a obra de Dostoiévski. Enquanto esse último tenha escrito "O duplo" em 1845 e Nervàl tenha publicado a sua obra em 1855, é bem provável que o francês não conhecesse a obra do colega russo. Em terceiro lugar, o parágrafo inicial relata um despertar como também é um despertar o começo do romance "Em busca do tempo perdido", de Proust. Ainda em relação à obra de Proust podemos notar uma semelhança com as incertezas que se dissipam com o acordar, e esse seria o quarto ponto de destaque no parágrafo original de "O duplo". Proust nos fala: "Sem dúvida que eu estava agora bem desperto, meu corpo dera uma última volta e o bom anjo da certeza imobilizara tudo ao redor de mim, deitara-me sob minhas cobertas, em meu quarto, e pusera aproximadamente em seu lugar, no escuro, minha cômoda, minha mesa de trabalho, minha lareira, a janela da rua e as duas portas". Pois bem. O romance "O duplo" é uma sucessão de fatos num período da vida de Iákov Petróvitch Goliádkin, fatos esses caracterizados por uma clara perseguição realizada a ele por um novo funcionário do seu trabalho que tem exatamente a mesma fisionomia, é oriundo da mesma região de Goliádkin e tem exatamente o seu nome. Esse duplo o persegue e o coloca sempre em situações delicadas. Na tentativa de denunciar as vilanias do seu sósia aos seus superiores, o Sr. Goliádkin vai se enrolando numa teia de estranhos acontecimentos que ele não consegue mais sair. Certamente, todos devem tê-lo como um louco e o final de sua história é morar num local isolado, longe da sociedade de São Petersburgo.

"O senhor Prokhártin" é um romance/conto escrito em 1846, que foi todo destroçado pelas tesouras dos censores, de acordo com os estudiosos da obra de Dostoiévski. Segundo o próprio autor, o conto ficou irreconhecível. A censura se deveu ao fato de Dostoiévski tratar dos dias finais da vida de um miserável, enlouquecido e também avarento funcionário público. A pobreza de um funcionário público já havia sido explorada no seu primeiro romance Pobre Gente (1844-46) enquanto que a loucura, também relacionada a um funcionário público (esquizofrênico), fora explorado pelo mestre em O Duplo (1845-46). A edição brasileira preparada por Natália Nunes e Oscar Mendes para a Nova Aguilar, mostra que o senhor Siemion Ivânovitch Prokhártchin, mora no mais sombrio e humilde canto de uma pensão e vive com poucos recursos por causa de seu baixo salário. Ao morrer deixa uns poucos objetos num velho baú e algum dinheiro no interior de um colchão. No leito fúnebre, parece que as preocupações abandonam definitivamente o velho funcionário. "Ali estava, muito tranquilo, como quem tem a consciência em paz, como se não tivesse sido o autor de todas aquelas partidas para enganar as pessoas de bem da maneira mais ignóbil. Já não ouvia o pranto de sua desamparada hospedeira (...). Parecia ter ganho muito em inteligência e conservava o olho direito meio fechado, como se tivesse querido agarrar à pressa alguma ideia muito importante que não tivera tempo de desembrulhar..."

Na "A dona da casa" Dostoiévski apresenta uma bela história de um jovem apaixonado. Vassíli Ordínov é o jovem que se apaixona pela bela Ekatierina, esposa do velho Iliá Murin. Ekatierina foi raptada pelo velho Murin quando seus pais estavam morrendo, numa noite verdadeiramente tenebrosa. "O coração me dizia que algum acontecimento grave se ia dar em nossa casa. Por isso não nos deitamos. A noite passou devagar. De novo na escuridão se levantou um temporal e a minha alma encheu-se de inquietação. Abri a janela... tinha o rosto em fogo e o meu coração não podia achar sossego". Murin leva Ekatierina para a cidade e lá a mantém sob o seu domínio como se ela estivesse presa por algum sortilégio. Na cidade, muito tempo depois, Ordínov encontrará Ekatierina mas será afastado contundentemente por Murin. O estudante irá morar num quarto na casa do casal e lá terá a oportunidade de ver que Ekatierina carrega uma culpa e chora e reza frequentemente em frente às imagens para expiá-la. A fixação de Ordínov por Ekatierina o levará para muito próximo da loucura. Assim, Ordínov abandonará a sua paixão pela ciência, a sua obstinação pela leitura sistemática, o seu desejo de organizar as suas ideias num livro. "Quem sabe se ele teria podido dar ao mundo qualquer ideia grande, original e nova! Talvez estivesse destinado a evidenciar-se na ciência. Pelo menos tinha chegado a pensar nisso, noutro tempo. E uma fé sincera torna-se por si uma garantia para o futuro. Agora, porém, ria-se daquela sua confiança e... não avançava um passo". Ordínov perderá, sem chegar a conquistá-la, Ekatierina. Para sempre. 

"Um romance em nove cartas" é uma brevíssima história apreendida entre nove cartas trocadas por dois amigos que vão se agredindo por um mal entendido até se tornarem inimigos: Piotr Ivânovitch e Ivan Pietóvitch. O nome dos amigos parece já uma pilhéria. A partir das cartas eles marcam encontros para se explicarem um ao outro, mas por motivos variados eles nunca acontecem. Parece ser um treinamento de escrita do grande escritor que está aprendendo com a lida.

"Polzunkov" é um conto bem curto no qual é relatada a história, pelo próprio personagem Polzunkov, que ganhava a vida fazendo palhaçadas na rua, como el quase conseguira se casar e o porquê de não ter dado certo o seu casamento. O fracasso nessa tentativa, a demissão do emprego e a vida de quase mendigo que levava eram aspectos distintos de uma mesma realidade: "Naquela cara podia observar-se tudo: vergonha, descaramento, cólera, o abatimento do fracasso, súplicas de perdão, a consciência do próprio valor e, ao mesmo tempo, a plena consciência da própria insignificância... Tudo isso passava em relâmpagos por aquele semblante."

"Coração Frágil" se refere à história de um pobre funcionário, Vássia Chumkov, e de seu amigo, também funcionário, Arkádi Ivânovitch. Se um leitor aprecia a obra de Dostoiévski e a explora na ordem cronológica de sua escritura percebe que o tema 'funcionário modesto', que aparece nessa obra, revisita os personagens Makar Alieksiéievitch (Pobre Gente), o senhor Goliádkin (O dublo) e Prokhártchin (O senhor Prokhártchin). Vássia ganha um dinheirinho extra copiando documentos em sua casa à noite ou nos finais de semana, o que permite que ele fique noivo de uma moça muito bondosa, Lisanhka. Este representa um momento de grande felicidade, mas o medo imenso de não conseguir finalizar um trabalho e ele perder os recursos extras faz com que ele enlouqueça. Levado para um abrigo para doentes mentais, o casamento jamais acontecerá. Lisa casará com outra pessoa, apesar do amor que ela sentia por Vássia, e Arkádi perderá para sempre o amigo. "Um sentimento estranho se apoderou do desventurado amigo do pobre Vássia (...) Compreendeu de repente o sentido de tudo o que acontecera, compreendeu por que é que Vássia não tinha podido resistir à felicidade e perdera a razão. Tremiam-lhe os lábios, brilhavam-lhe os olhos, empalidecia perante aquela novidade que se revelava".

Uma saudação, então, ao grande Dostoiévski, eterno sobrevivente da casa dos mortos!