sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Eurípedes: "pobres troianas"

A guerra de Tróia não produziu apenas a destruição das construções da cidade, como descrito muito bem na Ilíada. Vidas foram destroçadas: pessoas morreram, mães viram seus filhos serem mortos, mulheres foram escravizadas. Eurípedes, tentando captar o espírito da tragédia dos derrotados da guerra de Tróia escreveu a peça “As Troianas”, que gira em torno de Hécuba, rainha de Tróia, e dos acontecimentos do pós-guerra. Hécuba, esposa do rei Príamo, era mãe de dezenove filhos, entre eles Heitor – morto por Aquiles; Páris – que foi o estopim da guerra sequestrando a bela Helena; Cassandra, que tinha o dom da profecia, embora seus conterrâneos não acreditassem nela, e que acabou como escrava e concubina de Agamênon; Polixena, que foi sacrificada em honra de Aquiles, morto por Páris, entre outros. Num momento de extrema dor, Hécuba pronuncia as palavras abaixo, de acordo com a criatividade de Eurípedes:

"Vamos pobre coitada, ergue do chão a tua cabeça, o teu pescoço. Isso já não é mais Tróia, nem somos a família real de Tróia. A fortuna varia; sê brava. Navega com a corrente, navega com o vento do destino. Não enfrentes com o navio da vida os vagalhões do infortúnio. Ah! Eu choro. E por que não poderei chorar em minha desgraça? Perdi minha pátria, meus filhos, meu marido. Ó nobreza, com o teu orgulho espezinhado, nada queres dizer, afinal de contas.

O que poderei dizer que já não tenha sido dito? Que triste leito em que descanso os membros pesados e doloridos, estirada de costas em uma enxerga tão dura, tão dura! Oh! A minha cabeça, as minhas têmporas, minhas ilhargas! Oh! Que doçura em mudar a posição da espinha dorsal, deixar o corpo descansar de lado, com o ritmo de meus lamentos, de minhas lágrimas incessantes. Esta é a música do sofrimento, o canto fúnebre do sombrio destino.
Ó proas dos navios, à horrenda convocação das trombetas e à alta gritaria dos pífaros, viestes impelidas pelos remos velozes sobre a salina água arroxeada, atravessando os mares calmos de Hélade até a Ílion sagrada, e na baía de Tróia (ai de mim!) lançastes os vossos cabos, produto do Egito. Viestes em busca da desprezível esposa de Menelau, aquela afronta a Castor, aquele escândalo de Eurotas. Foi ela que assassinou o pai de cinquenta filhos e me lançou a estes tristes escolhos da desgraça.
Ai de mim! Aqui estou, ao lado das tendas de Agamênon. Levam-me para a escravidão, uma velha igual a mim, com a cabeça dilacerada pela afiada lâmina do sofrimento. É demais! Lastimosas viúvas dos guerreiros de Tróia e vós, virgens noivas da violência, Tróia está fumegante, choremos por Tróia. Como uma galinha que protege os pintinhos, eu dirigirei os vossos cantos, ah! Bem diferentes daqueles cantos que eu costumava dirigir em honra dos deuses, debruçada sobre o cetro de Príamo, enquanto os meus pés marcavam o ritmo, e começava a dança frígia.

Homero: um gigante passou pela Terra...

A Ilíada, do poeta grego Homero, conta a história da guerra de Tróia, que ocorreu entre gregos e troianos. A confusão, na verdade, começou numa festa no Olimpo, onde os deuses se divertiam. Por não ter sido convidada por razões óbvias, a deusa da discórdia, Éris, jogou uma maçã de ouro sobre a mesa dos convidados com a inscrição: “para a mais bela”. Como as deusas Hera, Atena e Afrodite eram muito vaidosas, imaginaram que a maçã fosse para cada uma delas e então começou uma confusão. Para descobrirem quem era a mais bela fizeram como juiz um simples pastor, Páris, que era filho do rei Príamo, de Tróia (apesar de ser príncipe fora deixado no bosque porque havia uma profecia que dizia que ele destruiria Tróia). Ao mesmo tempo, temendo perderem, as três deusas tentaram suborná-lo prometendo grandes tesouros se o veredito fosse favorável. Atena ofereceu a Páris a vitória numa guerra épica. Hera prometeu que ele seria o imperador de toda a Europa e Ásia. Finalmente, Afrodite prometeu o amor da mais bela mulher do mundo. Páris escolheu a última opção. Afrodite, então, ajudou Páris a fugir com Helena, que era casada com Menelau, para a cidade de Tróia. Entretanto, o marido traído, não ficou nem um pouco contente e convenceu o seu irmão, Agamenon, líder grego, a formar um exército e invadir Tróia. Nesse ponto começa o enredo da Ilíada. Acontecem várias batalhas, numa das quais o herói grego Aquiles mata o grande guerreiro troiano, Heitor, que era irmão de Páris e filho de Príamo. É nesse momento da história que Príamo, vendo o corpo de seu filho sem vida, diz a famosa frase: “Acho que vivi uma dia a mais do que deveria ter vivido.” A guerra é muito violenta, e longa, dura dez anos. Mas à medida que os atores vão aparecendo, Homero descreve com muita beleza a história dos personagens, que quase invariavelmente vão terminar com uma lança ou uma flecha atravessando os seus corpos. Quando a guerra caminhava para um final sem vencedor, Odisseu (ou Ulisses) planejou a construção de um imenso cavalo de madeira para dar aos troianos como felicitação pela vitória. Os troianos aceitaram o presente e o colocaram dentro das muralhas da cidade. Só que no interior do presente encontravam-se os soldados gregos que, durante a noite, enquanto os troianos dormiam, saíram do equino de madeira e dizimaram os troianos. Desta forma se cumpria a profecia de que Páris destruiria Tróia. Mas neste embate final Páris ainda conseguiu acertar uma flecha no calcanhar de Aquiles, o seu único ponto vulnerável, matando-o e se vingando do irmão. De Tróia, então, ficaram apenas as ruínas, mas da guerra ficou o relato memorável de Homero. Aqui vale a pena citar o comentário de Haroldo de Campos, um dos tradutores do poema grego para o português do Brasil: “Homero não decai; a Ilíada não tem recheio. Oscila entre o Pico das Agulhas Negras e o Himalaia.” Talvez Haroldo de Campos pretendesse dizer que nos momentos menos inspirados, o gigante Homero ainda encontra-se nas alturas, quase inatingível pelos pobres mortais. Abaixo, a reprodução de um pequeno trecho da obra, que está disponível na grande rede.

A ira, Deusa, celebra do Peleio Aquiles,
o irado desvario, que aos Aqueus tantas penas
trouxe, e incontáveis almas arrojou no Hades
de valentes, de heróis, espólio para os cães,
pasto de aves rapaces: fez-se a lei de Zeus;
desde que por primeiro a discórdia apartou
o Atreide, chefe de homens, e o divino Aquiles.
Que Deus, posto entre ambos, provocou a rixa?
O filho de Latona e Zeus. Irou-o o rei.
A peste então lavrou no exército: ruína
cai sobre o povo! A Crises ultrajara o Atreide,
ao sacerdote, o qual viera até as naus
velozes dos Aqueus remir com dons a filha,
nas mãos portando os nastros do certeiro Apolo
presos ao cetro de ouro e a todos implorava,
mormente aos dois Atreides, comandantes de homens:
"Atreides e outros mais Aqueus de belas cnêmides,
que a vós os deuses dêem, habitantes do Olimpo,
derruída a priâmea urbe, um bom retorno à casa;
mas a filha querida resgatai-me, e os dons
guardai, temendo Apolo, deus flechicerteiro"
Então, uniconcordes, os Aqueus clamaram:
"Se atenda o sacerdote e as galas do resgate
se aceitem!" nisse não, Agamêmnon, o Atreide.
Brutal, refuga o velho com palavras duras:
"Que eu nunca mais te aviste junto às naves côncavas,
agora demorando ou de volta, mais tarde.
Inúteis o teu cetro e esses nastros divinos,
nunca a libertarei, até que fique velha
em Argos, no meu paço, além, longe da pátria,
nos trabalhos do tear, ou servindo-me ao leito.
Foge da minha ira, vai-te, põe-te a salvo".
Findou a fala e o ancião retrocedeu medroso,
mudo, ao longo do mar de políssonas praias.
Depois, já muito longe, ao senhorio de Apolo
orou, ao filho de Latona, belas tranças:
"Ouve-me, Arcoargênteo, protetor de Crisa
e de Cila sagrada, Esmínteo, rei de Tênedos.
Se o templo que te ergui merece teu favor,
se coxas gordurosas te queimei de touros
e de gordas ovelhas, cumpre meu desejo:
faze os Dânaos pagar meu pranto com tuas flechas!"
súplice assim falou. Ouviu-o Febo Apolo.
Baixou do alto do Olimpo, coração colérico,
levando aos ombros o arco e a aljava bem fechada.
À espádua do Iracundo retiniam flechas,
enquanto o deus movia-se, ícone da noite.
Sentou longe das naus: então dispara a flecha.
Horríssono clangor irrompe do arco argênteo.
Fere os mulos; depois, rápida prata, os cães;
então mira nos homens, setas pontiagudas
lançando: e ardem sem pausa densas piras fúnebres.
Nove dias sibilam flechas pelo exército;
no décimo o Aquileu convoca o povo à ágora,
inspiração de Hera, a deusa, braços brancos,
aflita ao contemplar os Dânaos que morriam.
Depois que estavam juntos, reunidos, todos,
ergueu-se e lhes falou Aquiles, pés-velozes:
"Atreide, agora - penso - o descaminho oblíquo
nos frustra e força o passo atrás, se à morte salvos:
que, simultâneas, guerra e peste aos Aqueus domam.
Vamos, sem mais, ouvir arúspice ou vidente
- oniromante - que o sonhar provém de Zeus.

Pobre Simoésio

Na Ilíada, as batalhas são corpo a corpo. Espadas, lanças e flechas são as armas. Escudos e broquéis são a defesa. E as mortes são em número assustador. Homero as descreve a dezenas de uma forma tal que a bravura dos heróis, Aquiles, Odisseu, Ájax, Eneas, Heitor, entre outros, se destaca. Abaixo um trecho belíssimo que mostra que a morte de um quase anônimo soldado será motivo de grande tristeza para sua família. Embora seja apenas uma unidade no meio de milhares, uma vida tem sempre uma grandeza embutida, e pode se acabar estupidamente numa guerra. Homero, na bela tradução de Haroldo de Campos, em outro momento de grande literatura:

"Ájax, o Telamônio, vulnera Simoésio,
filho de Antemion, jovem no florir da vida,
a quem a mãe, descendo do alto do monte Ida,
com os pais, para junto dos rebanhos, dera
à luz, perto do rio Simoento; daí, seu nome.
Não pode retribuir o cuidado dos pais,
a vida lhe foi curta. Ájax, sempre-ardoroso,
o dobrou. Com a lança transpassou-lhe o peito,
à altura do mamilo direito; varou-lhe
a espádua a ponta brônzea e rojou-o no pó.
Qual um álamo negro dos confins de um pântano,
que ergue o tronco brunido e alteia a copa e as ramas
até que um artesão de carros com luzente
lâmina o abata, para as rodas de uma biga
esplêndida encurvar; e ele tomba e dessora
à beira-rio; assim, sob Àjax, Simoésio."

A poesia na pintura de Elstir

Na recordação dos singelos fatos do passado e na reconstrução de vários momentos que formavam as várias facetas da vida do personagem do "Em busca do tempo perdido" de Proust, há um espaço especial devotado às várias manifestações da arte. Aparecerão em destaque, diversos personagens que captam a essência transcendental da arte: o escritor Bergotte, a atriz Berma, o músico Vinteuil e o pintor Elstir. Este último, que o narrador conhecera em Balbec e se tornara seu amigo, possui várias obras na casa do duque e da duquesa de Guermantes. O narrador, em uma oportunidade, conhece estas obras da coleção particular dos Guermantes e se encanta, não percebendo a passagem do tempo. Eis parte da descrição magistral de Marcel Proust a este momento único:

"Comoveu-me encontrar em dois quadros (mais realistas e de uma maneira anterior) o mesmo cavalheiro, uma vez de fraque, no seu salão, outra vez de casaca e cartola numa festa popular à beira d'água, onde não tinha evidentemente o que fazer, e que demonstrava que para Elstir ele não era apenas um modelo habitual, mas um amigo, talvez um protetor, que ele gostava, como outrora Carpácio com determinados senhores notáveis - e perfeitamente semelhantes - de Veneza, de fazer figurar em suas pinturas, da mesma forma que Beethoven tinha prazer em inscrever no alto de uma obra preferida o nome dileto do arquiduque Rodolfo. Aquela festa a beira-rio tinha qualquer coisa de encantador. O rio, os vestidos das mulheres, as velas dos barcos, os reflexos inumeráveis de uns e outras achavam-se em vizinhança naquele quadrado de pintura que Elstir havia recortado de uma tarde maravilhosa. O que encantava no vestido de uma mulher que deixara um momento de dançar por causa do calor e da sufocação era igualmente cambiante, e, da mesma maneira, no pano de uma vela parada, na água do pequeno porto, no pontão de madeira, nas folhagens e no céu. (...) Pois bem, este soubera imortalmente deter o movimento das horas naquele instante luminoso em que a dama sentira calor e deixara de dançar, em que a árvore estava cercada de um contorno de sombra, em que as velas pareciam deslizar sobre um verniz de ouro. Mas justamente porque o instante pesava sobre nós com tamanha força, aquela tela tão fixa dava a impressão mais fugitiva, sentia-se que a dama ia em breve voltar-se, os barcos desaparecerem, a sombra mudar de lugar, a noite descer, que o prazer acaba, que a vida passa e que os instantes, mostrados ao mesmo tempo por tantas luzes que se lhes avizinham, não tornamos a encontrá-los."

A nobreza do perdão

Proust também explora o perdão, olhando o caso da Duquesa de Guermantes com o jovem Marcel, que numa época passada a perseguia diariamente nas ruas de Paris durante o seu passeio matinal. Pequena passagem do "O caminho de Guermantes" do "Em busca do tempo perdido", na primorosa tradução de Mário Quintana;

"Para terminar, direi que, sob certo ponto de vista, havia na Sra. de Guermantes uma verdadeira grandeza, que consistia em apagar por inteiro tudo o que outras só teriam esquecido incompletamente. Mesmo que nunca me houvesse encontrado a espiá-la, a acossá-la, a seguir-lhe a pista em seus passeios matinais, mesmo que nunca houvesse respondido à minha saudação cotidiana com uma impaciência irritada, mesmo que nunca houvesse mandado Saint-Loup passear quando rogara que me convidasse, não poderia ela ter comigo maneiras mais nobremente e mais naturalmente amáveis. Não só não se demorava em explicações retrospectivas, em meias-palavras, em sorrisos ambíguos, em subentendidos, não só mostrava na sua afabilidade atual, sem retrocessos, sem reticências, algo de tão altivamente retilíneo como a sua majestosa estatura, mas as queixas que podia ter tido contra alguém no passado estavam tão inteiramente reduzidas a cinzas, e essas próprias cinzas eram lançadas tão longe da sua memória ou pelo menos da sua maneira de ser, que ao ver seu rosto de cada vez em que tinha ela de tratar com a mais belas das simplificações o que em tantos outros seria pretexto a resquícios de frieza, a recriminações, parecia a gente assistir a uma espécie de purificação."

A causalidade e o desejo

Como nos passeios que o narrador da "Reserche" dava na beira da praia em Balbec durante a sua adolescência para tentar rever o grupo de moças que em certos dias aparecia e corria alegremente entre diversos transeuntes, também fiquei muitas vezes caminhando numa calçada, apanhando um ônibus num determinado horário, entrando numa loja de departamentos, indo numa igreja específica, ou frequentando um certo supermercado, ou ainda, olhando os transeuntes em frente de casa na esperança de que, como o narrador Marcel, aquela garota que nos tempos primordiais representava uma beleza indiscutível, que poderia, quem sabe, a partir de uma improvável troca casual de olhar se apaixonar e realizar todos os sonhos que tínhamos. Mas isso jamais aconteceu... Um lento no qual o tempo tendeu para o infinito.

É a questão da causalidade e do desejo que na À sombra das raparigas em flor encontra-se assim exposto:

"O trabalho de causalidade, que acaba por produzir quase todos os efeitos possíveis, e por conseguinte também aqueles que havíamos julgado menos viáveis, esse trabalho é às vezes lento, tornando-se ainda um pouco mais lento devido ao nosso desejo."

A mulher e a imaginação

Galois duelou por uma mulher e morreu aos vinte anos de idade... O jovem aristocrata Robert Saint-Loup, no Em busca do tempo perdido, encontrava-se perdidamente apaixonado por uma mulher que aos seus olhos, era absolutamente fantástica. Mas quando esta mulher foi apresentada ao narrador, ele a reconheceu como uma das prostitutas do bordel. Proust sugere, então, que a paixão tem origem na imaginação e não propriamente no ser por quem se terá a devoção. Porque na imaginação tudo pode acontecer, todas as possibilidades se tornam realidade. "Piovve dentro a l'alta fantasia”, isso sim é o real.

Proust, novamente no “O caminho de Guermantes” (Le côté de Guermantes):

“Ante aquela mulher cuja vida inteira, cujos pensamentos, como todo o seu passado e os homens que pudessem tê-la possuído eram para mim coisa tão indiferente que, se mo houvesse contado, a teria escutado meramente por cortesia e sem ao menos ouvi-la, senti que a inquietação, o tormento, o amor de Saint-Loup se haviam aplicado até fazer – do que era para mim um brinquedo mecânico – um objeto de sofrimentos infinitos, o próprio preço da existência. Vendo esses dois elementos dissociados (pois eu conhecera ‘Rachel quando do Senhor’ numa casa de tolerância), considerava comigo quantas mulheres pelas quais os homens vivem, sofrem e matam-se podem ser em si mesmas ou para outros o que Raquel era para mim. Assombrava-me que pudesse ter uma curiosidade dolorosa a respeito da sua vida. Poderia contar muitas cópulas suas a Robert, as quais me pareciam a coisa mais indiferente do mundo. E como o teriam mortificado! E que não daria ele para as conhecer, sem conseguí-lo?

Via tudo quanto a imaginação humana pode por atrás de um palminho de cara como o daquela mulher, se foi a imaginação que a conheceu primeiro; e, inversamente, em que míseros elementos materiais, destituídos de qualquer valor, abaixo de qualquer preço, podia decompor-se o que era a finalidade de tantos sonhos, fosse aquilo mesmo conhecido de maneira oposta pelo conhecimento mais trivial. Compreendia que o que me parecera não valer vinte francos quando me fora oferecido por vinte francos numa casa de tolerância, ou quando era apenas para mim uma mulher desejosa de ganhar vintes francos, pode valer mais que um milhão, que a família, que todas as posições invejadas, se se começou por imaginar nela um ser desconhecido, curioso de conhecer, difícil de apanhar, de conservar. Era sem dúvida o mesmo rosto fino e miúdo que víamos Robert e eu. Mas tínhamos chegado a ele pelos dois caminhos opostos que jamais se comunicarão e nunca lhe veríamos a mesma face. Aquele rosto, com os seus olhares, os seus sorrisos, os movimentos de sua boca, eu o conhecera de fora, como o de uma mulher qualquer que faria por vinte francos tudo quanto eu quisesse. Assim, os olhares, os sorrisos, os movimentos de boca me haviam parecido apenas significativos de atos gerais, sem nada de individual, e sob eles eu não teria a curiosidade de procurar uma pessoa. Mas o que me fora de algum modo oferecido na partida, esse rosto condescendente, fora para Robert um ponto de chegada, para o qual se havia dirigido através de quantas esperanças, dúvidas, suspeitas, sonhos! Ele dava mais de um milhão para possuir, para que não fosse oferecido a outros, o que me fora oferecido, como a todos, por vinte francos. Por qual motivo não o obtivera ele por tal preço, talvez seja devido ao acaso de um instante, de um instante durante o qual aquela que parecia prestes a entregar-se, se esquiva, tendo talvez um encontro, qualquer razão que a torne mais difícil nesse dia. (...) Não era ‘Raquel quando do Senhor’ que me parecia coisa de somenos, era o poder da imaginação humana, a ilusão em que se apoiavam as dores do amor que se me afiguravam grandes.

Num piscar de olhos

Há certos momentos na vida que, de repente, percebe-se assustadoramente que o tempo passou. Uma bebê que virou uma adolescente, um amigo que da noite para o dia teve os cabelos pintados de branco, uma senhora que era moça e numa breve visita percebemos que está com o rosto cheio de rugas. Proust também conseguiu captar estes raros momentos das nossas vidas no terceiro volume de "Em busca do tempo perdido". Ele vai falar da avó do narrador, no instante singular, em que ele chega após uma viagem de alguns dias, e percebe que ela se tornou velha.

"O que, mecanicamente, se efetuou naquele instante em meus olhos quando avistei minha avó, foi mesmo uma fotografia! Jamais vemos os entes queridos a não ser no sistema animado, no movimento perpétuo de nossa incessante ternura, a qual, antes de deixar que cheguem até nós as imagens que nos apresentam a sua face, arrebata-as no seu vórtice, lança-as sobre a idéia que fazemos deles desde sempre, fá-las aderir a ela, coincidir com ela. (...) E como um enfermo que a si mesmo não via desde muito tempo, e que, compondo, a cada instante, o rosto, que ele não vê, segundo a imagem ideal que  forma de si mesmo em pensamento, recua ao avistar no espelho, em meio de um rosto árido e deserto, a proeminência oblíqua e rósea de um nariz gigantesco como uma pirâmide do Egito, eu, para quem minha avó era ainda eu próprio, eu que jamais a vira a não ser em minh'alma, sempre no mesmo ponto do passado, através da transparência de recordações contíguas e superpostas, de súbito, em nosso salão que fazia parte de um mundo novo, o do tempo, o mundo em que vivem os estranhos de quem se diz "como envelheceu!", eis que pela primeira vez e tão só por um instante, pois ela desapareceu logo, avistei no canapé, congestionada, pesada e vulgar, doente, chamando, a passear acima de um livro uns olhos, um olhar um pouco extraviado, a uma velha consumida que eu não conhecia."

Leve como um suspiro...

O leve rumor, quase um sussurro, na sua luminosidade assombrosa como poucos iguais a Proust, no terceiro volume do Em busca do tempo perdido, conseguiram captar. E a percepção dos ruídos discretos, despertados pelo fogo que queima na lareira... Proust em outros momentos geniais de apreensão da realidade:

"Parei um segundo ante a porta fechada, pois ouvia movimentos; arrastavam uma coisa, deixavam cair outra; sentia que o quarto não estava vazio e que havia alguém. Mas era apenas o fogo aceso que ardia. O fogo não podia estar tranquilo, movia as achas, e isso muito desajeitadamente. Entrei; ele deixou cair uma, fez fumegar outra. E mesmo quando não se movia, fazia a todo instante ouvir ruídos como as pessoas vulgares, os quais, vendo eu as chamas, se me apresentavam como ruídos de fogo, mas que, se estivesse do outro lado da parede, julgaria provenientes de alguém que se assoasse e andasse de um lado para outro. (...) Ouvia o tique-taque do relógio de Saint-Loup, o qual não devia estar muito longe de mim. Esse tique-taque mudava de lugar a todo momento, pois eu não via o relógio; parecia-me vir de trás de mim, da minha frente, da direita, da esquerda, às vezes extinguir-se como se estivesse muito longe. De repente descobri o relógio em cima da mesa. Então ouvi o tique-taque num lugar fixo, de onde não mais se moveu. Pelo menos julgava ouvi-lo naquele ponto; não o escutava ali, via-a, os sons não têm lugar. Pelo menos os ligamos a movimentos e assim têm eles a utilidade de nos prevenir a respeito destes, de parecer que os tornam necessários e naturais."

" Ontem ainda os ruídos incessantes, descrevendo-nos de modo contínuo os movimentos da rua e da casa, acabavam por nos adormecer como um livro aborrecido; hoje, na superfície de silêncio estendida sobre o nosso sono, um choque, mais forte que os outros, chega a fazer-se ouvir, leve como um suspiro, sem ligação com nenhum outro som, misterioso; e o pedido de explicação que ele nos exala basta para acordar-nos. Que se retirem por um instante ao doente os algodões superpostos ao seu tímpano e subitamente a luz, o sol pleno do som, ofuscante, aparece, ressurge no universo; a toda velocidade regressa o povo aos rumores vedados; assiste-se, como se fossem salmodiadas por anjos musicistas, à ressurreição das vozes. As ruas vazias, num instante as enchem as asas rápidas e sucessivas dos bondes cantores." 

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

A princesa e a duquesa

A aristocracia se foi e a superioridade dos seus educadíssimos representantes ficou apenas nas páginas dos livros, como a lembrança da princesa de Guermantes e de sua prima, a duquesa de Guermantes, na descrição de Proust em Le côté de Guermantes - (O caminho de Guermantes) tradução de Mario Quintana - no terceiro volume do Em busca do tempo perdido.

"Como uma grande deusa que preside de longe aos jogos das divindades inferiores, a princesa permanecera voluntariamente um pouco para o fundo, num canapé lateral, vermelho como uma rocha de coral, ao lado de uma larga reverberação vítrea, que era provavelmente um espelho e fazia pensar nalguma secção que um raio teria praticado, perpendicular, obscura e líquida, no cristal resplandescente das águas. Ao mesmo tempo pluma e corola, tal como certas florações marinhas, uma grande flor branca, penujosa como uma asa, descia da fronte da princesa, ao longo de uma de suas faces, de que seguia a inflexão com uma docilidade faceira, amorosa e viva, e parecia encerrá-la a meio, como um ovo róseo na suavidade de um ninho de alcíone. Sobre a cabeleira da princesa, e baixando até as sobrancelhas, depois reunindo-se mais abaixo, à altura da garganta, estendia-se uma rede feita dessas conchinhas brancas que se pescam em certos mares austrais e que eram entremeadas com pérolas, mosaico marinho mal saído das vagas e que de momento se achava mergulhado na sombra, a cujo fundo, mesmo então, uma presença humana era revelada pela mobilidade fúlgida dos olhos da princesa. A beleza que colocava esta muito acima das outras filhas fabulosas da penumbra não estava, de todo, material e inclusivamente inscrita na sua nuca, nas suas espáduas, nos seus braços, no seu talhe. Mas a linha deliciosa e inacabada deste era o exato ponto de partida, a geração inevitável das linha invisíveis que o olhar não podia deixar de prolongar, maravilhosas, engendradas em torno da mulher como o espectro de uma figura ideal projetada nas trevas.
(...)
No momento em que começava a segunda peça, olhei para o camarote da sra. de Guermantes. Essa princesa, com um movimento gerador de uma linha deliciosa que meu espírito prosseguia no vazio, acabava de voltar a cabeça para o fundo do camarote; os convidados estavam de pé, também voltados para o fundo, e eis que, entre a dupla fileira que eles formavam, em toda a sua segurança e grandeza de deusa, mas com uma doçura desconhecida, que se devia à afetada e sorridente confusão de chegar tão tarde e fazer levantar todo mundo no meio da representação, entrou, toda envolta em brancas musselinas, a duquesa de Guermantes.
(...)
Em vez das maravilhosas e suaves plumas que desciam da cabeça ao pescoço da princesa, em vez da sua rede de conchas e pérolas, a duquesa não tinha nos cabelos senão uma simples aigrette que, dominando seu nariz arqueado e seus olhos proeminentes, parecia a crista de um pássaro. Seu pescoço e suas espáduas brotavam de uma onda nevosa de musselina contra a qual vinha bater um leque de plumas de cisne, mas em seguida o vestido, cujo corpete tinha como único adorno inumeráveis palhetas, ou de metal, em varinhas e em grãos, lhe modelava o corpo com uma precisão inteiramente britânica. Mas por mais diferentes que fossem as duas toilettes, depois que a princesa cedeu à prima a cadeira que ocupava até então, viram-nas voltar-se uma para a outra, a se admirarem reciprocamente.

Talvez a sra. de Guermantes tivesse no dia seguinte um sorriso ao falar no toucado um pouco complicado da princesa, mas certamente declararia que nem por isso estava menos encantadora e maravilhosamente preparada; e a princesa que, por gosto, acharia alguma coisa de frio, de seco, de um pouco couturier, na maneira como se vestia a prima, descobriria nessa estrita sobriedade um bizarro refinamento. Aliás, entre elas, a harmonia, a preestabelecida gravitação universal da sua educação neutralizavam os contrastes, não só de enfeite, mas também de atitude. Nessas linhas invisíveis e imantadas que a elegância de maneiras estendia entre elas, vinha expirar o natural expansivo da princesa, ao passo que a retidão da duquesa se deixava atrair, dobrar, tornava-se doçura e encanto."



A morte da avó


Uma das belas páginas do "Em busca do tempo perdido" de Marcel Proust é a descrição da morte da avó do protagonista. No terceiro volume da obra, "O caminho de Guermantes", Proust expõe este momento nos belíssimos parágrafos traduzidos magistralmente por Mario Quintana. A rapidez da vida e as desilusões que vão embora para sempre, num dos momentos mais brilhantes da literatura universal:

"Ao pé do leito, convulsionada por todos os sopros daquela agonia, sem chorar, mas por instantes inundada de lágrimas, minha mãe tinha a desolação sem pensamento de uma folhagem que a chuva fustiga e o vento contorciona. Fizeram-me enxugar os olhos antes de ir beijar minha avó.

- Mas eu pensava que ela não visse mais - disse meu pai.

- Nunca se pode saber - respondeu o doutor.

Quando meus lábios a tocaram, as mãos de minha avó agitaram-se, ela foi percorrida por um longo frêmito, ou reflexo, ou porque certas afeições possuam a sua hiperestesia que reconhece, através do véu da inconsciência, aquilo que elas quase não têm necessidade dos sentidos para querer. Súbito, minha avó ergueu-se a meio, fez um esforço violento, como alguém que defende a própria vida. Françoise não pôde resistir, ao vê-lo, e rompeu em soluços. Lembrando-me do que o médico havia dito, quis fazê-la sair do quarto. Nesse momento minha avô abriu os olhos. Precipitei- me sobre Françoise para lhe ocultar o pranto, enquanto meus pais falassem à enferma. O ruído do oxigênio calara-se, o médico afastou-se do leito. Minha avó estava morta. 

Algumas horas depois Françoise pôde, pela última vez, e sem maltratá-los, pentear aqueles formosos cabelos que apenas começavam a branquear e que até então haviam parecido de menos idade que ela. Mas agora, pelo contrário, só eles é que impunham a coroa da velhice sobre o rosto outra vez moço de onde haviam desaparecido as rugas, as contrações, os empastamentos, as tensões, as relaxações que, desde tantos anos, lhe vinham acrescentando o sofrimento. Como nos longes tempos em que seus pais lhe haviam escolhido um esposo, tinha ela as feições delicadamente traçadas pela pureza e a submissão, as faces brilhantes de uma casta esperança, de um sonho de felicidade, mesmo de uma inocente alegria, que os anos tinham pouco a pouco destruído. A vida, retirando-se, acabava de carregar as desilusões da vida. Um sorriso parecia pousado nos lábios de minha avó. Sobre aquele leito fúnebre, a morte, como o escultor da Idade Média, tinha-a deitado sob a aparência de menina e moça."

As raparigas em flor


Por conta da complexidade da obra de Marcel Proust, muitos intérpretes já escreveram sobre diversos aspectos dos seus escritos. Um dos estudiosos brasileiros da obra proustiana foi José Maria Cançado (1952 - 2006), que publicou pela Editora da UFMG (2008) o pequeno belo livro de ensaios “PROUST – As intermitências do coração e outros ensaios”. Cançado nos diz: “Proust é o escritor cujo método de composição é o mais estrito, o mais rigoroso. Suas frases sempre recomeçadas, que percorremos valendo-nos dos pontilhões das conjunções sintáticas e dos respiradouros das imagens (talvez as mais belas de toda a prosa francesa) essas frases e períodos cujo fim natural não são os limites da pagina  (parecendo antes virarem essa página com o seu sopro e movimento) são o próprio mecanismo do pensamento. Correspondem a esse mecanismo.(...) A frase de Proust não aponta, não designa localizado num ponto determinado do tempo e do espaço. Não é uma forma de notação da realidade. Mas de reconstituição da realidade. Ela não quer sugerir. Ela quer reencontrar.

Num desses reencontros, o narrador Marcel se lembra de seis garotas que passeavam no dique, num final de uma tarde de verão, na pequena Balbec. Preocupadas apenas com a diversão e o prazer, as moças brincam alegremente, ignorando por completo os outros, invisíveis, transeuntes. Essa atitude, aliada à beleza misteriosa das garotas, marcará profundamente aquela tarde da adolescência do narrador enamorado. Proust nos conta, na À sombra das raparigas em flor, na belíssima tradução de Mario Quintana:

Eu olhara bem aqueles rostos; vira cada um deles, não em todas as facetas e rara vez de frente, mas ainda assim de dois ou três ângulos bastante diferentes para que eu pudesse fazer a retificação, ou pelo menos a verificação e ‘prova’ das diferentes suposições de linhas e de cores sugeridas à primeira vista e para ver subsistir neles, através das expressões sucessivas, alguma coisa de inalteravelmente material. Também podia dizer com toda a certeza que nem em Paris, nem em Balbec, na hipótese mais favorável do que poderia ser, mesmo que pudesse ter ficado a conversar com elas, as passantes que detiveram meus olhos, jamais houvera nenhuma cujo aparecimento e sucessivo desaparecimento sem que eu chegasse a conhecê-la, me causasse mais pesar do que o destas, nem me desse a idéia de que a sua afeição pudera ser embriaguez tamanha. Nem entre as atrizes, ou as camponesas, ou as moças do pensionato religioso, eu vira nada de tão belo, impregnado de tal desconhecido, tão inestimavelmente precioso, tão verossimilmente inacessível.

A variedade dos defeitos


Proust foi um excelente observador da alma humana. No momento em que ele mostra as qualidades e os defeitos do personagem Bloch, na "À sombra das raparigas em flor" (segunda parte de “Em busca do tempo perdido”), num parágrafo de três páginas, ele faz uma análise psicológica primorosa dos defeitos apresentados de uma forma geral por todas as pessoas. O ser humano é posto a nu pela pena do genial francês. Abaixo reproduzimos pequenos textos, na também primorosa tradução de Mario Quintana:

“Mas não menos admirável do que a semelhança das virtudes é a variedade dos defeitos. Todo mundo tem os seus, e, para continuar querendo a uma pessoa, não há outro remédio senão passá-los por alto e desdenhá-los em favor de outras qualidades. A pessoa mais perfeita tem sempre determinado defeito que choca ou irrita.”

“Como o perigo de desagradar provém principalmente da dificuldade em avaliar quais as coisas que se notam e quais as que não são notadas, pelo menos por prudência nunca deveria a gente falar de si mesmo, pois é esse um tema em que seguramente a nossa visão e a alheia não coincidem nunca. Descobrir a verdadeira vida do próximo, o universo real sob o universo aparente, nos causa tanta surpresa como visitar uma casa de insignificante aparência e encontrá-la cheia de tesouros, de gazuas ou cadáveres; e não é menor a surpresa quando, em vez da imagem que havíamos formado de nós mesmos graças ao que alguém disse de nós, nos certificamos, pelo que essas mesmas pessoas dizem quando estamos ausentes, da imagem inteiramente diversa que guardam de nós e da nossa vida. De sorte que cada vez que acabamos de falar de nós, não podemos saber se nossas palavras, prudentes e inofensivas, escutadas com aparente cortesia e hipócrita aprovação, vão ser ou não motivo de comentários indignados ou divertidos, mas em todo caso desfavoráveis.”

“Ao mau costume de falar de si mesmo e dos próprios defeitos, cumpre acrescentar, como formando bloco com o mesmo, esse outro hábito de denunciar nos caracteres alheios defeitos análogos aos nossos. E constantemente estamos a falar nos referidos defeitos, como se fora uma espécie de rodeio para falar em nós mesmos, em que se juntam o prazer de confessar e o de absolvermo-nos. Aliás, parece que a nossa atenção, sempre atraída pelo que nos caracteriza, assinala-o nas outras pessoas mais que qualquer outra coisa.”


Mais à frente, no terceiro volume de Em busca do tempo perdido, "O caminho de Guermantes" Proust retorna ao tema dos defeitos humanos, tomando como exemplo ele próprio e os comentários de sua governanta Françoise.

“Talvez eu pudesse tê-lo suspeitado, pois a mim mesmo, então, muitas vezes acontecia dizer coisas em que não havia nenhuma verdade, ao passo que a revelava por tantas confidências involuntárias de meu corpo e de meus atos (as quais eram muito bem interpretadas pro Françoise); talvez o tivesse suspeitado, mas para isso seria preciso que eu então soubesse que era às vezes mentiroso e trapaceiro. Ora, a mentira e a trapaça eram em mim, como em todo o mundo, comandadas de um modo tão imediato e contingente, e para sua defensiva, por um interesse particular, que meu espírito, fixado num belo ideal, deixava meu caráter cumprir na sombra aqueles serviços urgentes e mesquinhos e não se desviava para observá-los."

"O fato é que reconheci a impossibilidade de saber de maneira direta e certa se Françoise me estimava ou me detestava. E assim foi ela quem primeiro me deu a ideia de que uma pessoa não está, como eu supunha, nítida e imóvel diante de nossos olhos, com suas qualidades, seus defeitos, seus projetos, suas intenções para conosco (como um jardim que contemplamos, com todos os seus canteiros, através de um gradil), mas é uma sombra em que não podemos jamais penetrar, para a qual não existe conhecimento direto, a cujo respeito formamos inúmeras crenças, com auxílio de palavras e até de atos, palavras e atos que só nos fornecem informações insuficientes e aliás contraditórias, uma sombra onde podemos alternadamente imaginar, com a mesma verossimilhança, que brilham o ódio e o amor."


A caminho de Balbec

Proust conseguiu expressar os sentimentos e as sensações vividas como poucos escritores o fizeram. Como conseguiu ele captar aquele sentimento que pensávamos fosse absolutamente particular e único? Quem já não teve a experiência, como tive a sorte de tê-la, há muito tempo, num lugar distante, enquanto viajava de trem; ele parar numa estação humilde de um vilarejo cujo nome não me ficou na memória. Lá, parada, olhando para o trem, vislumbrei uma bela moça que talvez esperasse um conhecido (um amigo, a mãe, o esposo?). E os pensamentos e impressões que tive foram captados quase na sua totalidade pelo grande Proust quase um século antes. Mais uma extraordinária página da literatura universal.

 
A paisagem tornou-se acidentada, abrupta, o trem parou numa estaçãozinha entre duas montanhas. Ao fundo da garganta, à margem da correnteza, não se via mais que uma casa de guarda metida na água que corria abaixo das janelas. E se é possível que determinada terra produza um ser em que se possa gozar o particular encanto dela, essa criatura devia ser, mais ainda do que a camponesa cujo aparecimento eu tanto desejara quando vagava sozinho para as bandas de Méséglise, nos bosques de Roussainville, aquela rapariga alta que vi sair da casa e encaminhar-se para a estação com o seu cântaro de leite, no caminho iluminado obliquamente pelo sol levante. No seio daquele vale, entre aquelas alturas que lhe ocultavam o resto do mundo, a rapariga não devia ver outras pessoas senão as que iam nos trens que ali paravam um momento. Andou ao longo do trem, oferecendo café com leite aos poucos viajantes acordados. Seu rosto, colorido pelos reflexos matinais, era mais rosado que o céu. Senti ao vê-la esse desejo de viver que em nós renasce cada vez que recuperamos a consciência da felicidade e da beleza. (...) Deliciosa me pareceria a vida se ao menos eu pudesse, hora por hora, passá-la com ela, acompanhá-la até o rio, até a vaca, até o trem, estar sempre ao seu lado, sentir-me conhecido dela, tendo o meu lugar no seu pensamento. Ela me iniciaria nos encantos da vida rústica e das primeiras horas do dia. (...) Para ter a doçura de sentir-me ao menos ligado a essa vida, bastaria que eu morasse bastante próximo da estaçãozinha para vir todas as manhãs pedir café com leite àquela camponesa.”

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

E Gilberte se foi...

Na “À sombra das raparigas em flor”, segundo volume de Em busca do tempo perdido, de Proust, vemos desabrochar o amor do jovem narrador pela bela menina de cabelos ruivos, Gilberte. Entretanto, como assevera Proust, “na confusão da existência, é raro que uma felicidade venha pousar justamente sobre o desejo que a reclamara.” Apesar do pequeno Marcel conseguir passar tardes memoráveis na companhia de Gilberte, este relacionamento, de repente, numa tarde, chega ao fim: o jovem perderá a amada para sempre.

Pode ser amargo o sofrimento causado por uma pessoa a quem se ama, mesmo quando está inserido no meio de preocupações, de ocupações, de alegrias que não têm essa criatura por objeto e das quais a nossa atenção só se desvia de tempos em tempos para voltar a ele. Mas quando tal sofrimento nasce – como no presente caso – num instante em que a felicidade de ver essa pessoa nos enche inteiramente, a brusca depressão que se produz em nossa alma até então ensolarada, firme e calma, determina em nós uma tempestade furiosa contra a qual ignoramos se seremos capazes de lutar até o fim. Tão violenta era a que soprava em meu coração que voltei para casa arrasado, mortificado, sentindo que só poderia encontrar a respiração se desandasse o caminho percorrido, se voltasse sob um pretexto qualquer para junto de Gilberte. Mas esta haveria de dizer consigo: “Ainda?! Decididamente, posso fazer-lhe tudo, que ele sempre voltará tanto mais dócil quanto mais infeliz houver partido”. Depois eu era irresistivelmente arrastado para ela pelos meus pensamentos, e essas orientações alternativas, esse desvario da bússola interior ainda persistiram depois que me recolhi ao quarto, traduzindo-se pelos rascunhos de cartas contraditórias que escrevi a Gilberte.

Depois de um longo tempo de separação, algumas poucas cartas circulam de um lado para o outro entre Marcel e Gilberte.

“...ela não deixava de responder:”Pôde a vida separar-nos, mas não poderá fazer-nos esquecer as boas horas que nos serão sempre caras” (muito embaraçados ficaríamos em explicar por que “a vida” nos separa e que mudança se havia operado). Eu já não sofria tanto. Porém, num dia em que lhe contava numa carta haver sabido da morte da nossa velha baleira dos Campos Elísios, e quando acabava de escrever estas palavras: “Creio que isso lhe causou pesar. Em mim, veio agitar muitas recordações”, não pude deixar de romper em pranto, ao ver que tinha falado no passado, e como se se tratasse de um morto já quase esquecido, daquele amor em que, mau grado meu, eu jamais cessara de pensar como se fora vivo, ou pelo menos capaz de renascer. Nada mais terno do que essa correspondência entre amigos que não mais queriam ver-se. As cartas de Gilberte possuíam a delicadeza das que eu escrevia às pessoa indiferentes e me davam os mesmos sinais exteriores de afeto que me era tão grato receber da parte dela. (...) Nesses momentos, lamentava não ter querido entrar para a diplomacia e ter adotado uma vida sedentária, a fim de não me afastar de uma menina que eu não mais veria e que já tinha quase esquecido. Construímos a nossa própria vida para uma pessoa determinada e, quando, afinal, podemos recebê-la em nossa vida, essa pessoa não vem, depois morre para nós, e passamos a viver prisioneiros na moradia que só a ela era destinada.

A realidade revelada

Swann (No caminho de Swann), enquanto sofria pela não correspondência do amor de Odette, ficou particularmente impressionado com uma determinada frase de uma obra do músico Vinteuil. A frase carregava tanto sentimento, tanta verdade, que não poderia ser uma simples criação de um músico inspirado. Segundo Proust, na poética tradução de Mario Quintana, Swann achava que Venteuil havia, com o seu gênio, enxergado a essência de uma realidade que estava escondida para a maioria dos mortais.

Ao fundo de que dores fora ele buscar aquela força de Deus, aquele poder ilimitado de criar?

“... e Swann considerava os motivos musicais como verdadeiras ideias, de um outro mundo, de uma outra ordem, ideias veladas de trevas, desconhecidas, impenetráveis à inteligência.

E uma prova de que Swann não se enganava ao acreditar na existência real daquela frase, era que qualquer amador um pouco atilado logo se aperceberia da impostura se Vinteuil, com menos poder para divisar e transmitir as suas formas, houvesse procurado dissimular as lacunas de sua vista ou a inabilidade de seus dedos, acrescentando-lhe aqui e ali alguns toques de sua própria invenção.

Posteriormente o jovem Marcel (À sombra das raparigas em flor) também vai se admirar com a obra de Vinteuil. Ele confessará:

"Mas, menos decepcionantes que a vida, essas grandes obras-primas não começam por nos dar o que têm de melhor. Na Sonata de Vinteuil, as belezas que mais cedo se descobrem são também as que mais depressa nos cansam e sem dúvida pela mesma razão de diferirem menos daquilo que já se conhecia antes. Mas quando estas se afastaram, ainda nos fica, para amar, uma ou outra frase que, pela ordem demasiado nova para oferecer a nosso espírito nada mais que confusão, se nos tornara indiscernível e se guardara intacta para nós; e ei-la então que vem até nós, a última de todas, essa frase pela qual passávamos todos os dias sem o saber e que pelo poder único de sua beleza se tornara invisível e permanecera desconhecida. Mas nós a deixaremos também por último. E haveremos de amá-la por mais tempo que as outras, porque teremos levado mais tempo para amá-la."

A filha amada

O Sr. Swann, requintado frequentador da alta aristocracia francesa, normalmente encontrado na casa de Guermantes, se apaixona perdidamente por uma cocote, Odette, que o despreza e o humilha sem piedade. Mas apesar de tudo, do relacionamento nasce uma filha - Gilberte - que faz com que Swann deixe para trás todas as suas relações aristocráticas e passe a achar de grande monta relacionamentos com a baixa burguesia e com burocratas de segundo escalão. Proust nos diz:

"Swann era de resto cego, no concernente a Odette, não só ante essas lacunas da sua educação como também ante a mediocridade da sua inteligência. Ainda mais, cada vez que Odette contava uma história tola, Swann escutava a mulher com uma complacência, uma alegria, quase uma admiração, onde deviam entrar uns restos de volúpia; ao passo que, na mesma conversação, o que ele próprio pudesse dizer de fino, até mesmo de profundo, era habitualmente escutado por Odette sem interesse, às pressas, impacientemente, e às vezes contraditado com severidade."

Essa é uma página espetacular do "Em busca do tempo perdido". Por causa da filha, Swann abre mão de praticamente toda a sua vida e vai fazer o possível para que ela cresça com dignidade. Marcel, o personagem central do romance se apaixona por Gilberte e vai sofrer por causa deste amor como poucas vezes um tal sofrimento será relatado (comparável, entretanto, ao sofrimento do próprio Swann por causa de Odette). Num momento de grande alegria do adolescente Marcel, ele penetra nas paredes aparentemente intransponíveis da casa de Swann e, numa tarde inesquecível com Gilberte, se delicia com a companhia que deixará nele marcas indeléveis:

"Naquelas tardes de recepção, elevando-me de degrau em degrau na escadaria, já sem pensamento e sem memória, sem ser mais que um joguete dos mais vis reflexos, chegava eu à zona onde se fazia sentir o perfume da sra. Swann. Julgava já ver a majestade do bolo de chocolate, rodeado por um círculo de pratos de petits-fours e pequenos guardanapos damasquinados cinzentos e com desenhos, exigidos pela etiqueta e peculiares aos Swann. Mas aquele conjunto imutável e ordenado parecia depender, como o universo necessário de Kant, de um ato supremo de liberdade. Pois quando estávamos todos no salãozinho de Gilberte, olhando de repente para o relógio, ela dizia:
- Já faz tempo que almocei, e só janto às oito, de modo que tenho vontade de comer alguma coisa. Que me dizem?
E fazia-nos passar para a sala de jantar, sombria como o interior de um templo asiático pintado por Rembrandt, e onde um bolo arquitetural, tão bonachão e familiar quanto imponente, parecia reinar ali à vontde como num dia qualquer, para o caso que desse na fantasia de Gilberte descoroá-lo de suas ameias de chocolate e abater suas muralhas de flancos abruptos, cozidas no forno como os bastiões do palácio de Dario. E ainda mais, para proceder à destruição da pastelaria ninivita, Gilberte não consultava apenas o seu apetite; informava-se também do meu, enquanto extría para mim, do monumento desabado, todo um lanço lustroso e engsatado de frutos vermelhos, ao gosto oriental.
(...)
E eu me lembrava daquela carta de tal maneira completa e persuasiva, que escrevera outrora a Swann e à qual nem sequer se dignara responder. Admirava a impotência do espírito, do raciocínio e do coração em operarem a mínima conversão, em resolverem uma só dessas dificuldades, que em seguida a vida, sem que se saiba ao menos como o fez, tão facilmente soluciona."

O caleidoscópio social

As convenções da sociedade são apresentadas por Proust numa análise cirúrgica no seu romance "Em busca do tempo perdido". Em particular, no segundo volume da obra, intitulado "À sombra das raparigas em flor", o personagem Marcel consumirá algumas reflexões sobre a Sra. Swann, uma vez que ela, originalmente uma mulher que recebia vários cavalheiros em sua casa, é a mãe de Gilberte, a grande paixão de sua adolescência.

"Por outro lado, a sra. Swann só obtivera resultado no que se chama "o mundo oficial'. As mulheres elegantes não lhe frequentavam a casa. E não era a presença de notabilidades republicanas que as fazia fugir. Na minha infância, toda a sociedade conservadora pertencia à alta-roda, e numa reunião de bom-tom não se poderia receber a um republicano. As pessoas que viviam em tal meio imaginavam que a impossibilidade de convidar um 'oportunista', e com mais forte razão um terrível 'radical', era uma coisa que duraria para sempre, como os lampiões de azeite e os ônibus de tração animal. Mas, semelhante aos calidoscópios que giram de tempos em tempos, a sociedade coloca sucessivamente de modo diverso elementos que se supunham imutáveis e compões uma nova figura. Eu ainda não fizera a primeira comunhão, quando senhoras bem pensantes tinham a estupefação de encontrar de visita em nossa casa a alguma elegante judia. Essas novas disposições do calidoscópio são provocadas pelo que um filósofo chamaria de mudança de critério. O caso Dreyfus trouxe nova mudança, em época um pouco posterior àquela em que eu começava a frequentar a casa da sra. Swann, e o calidoscópio uma vez mais inverteu os seus pequenos losangos coloridos. Tudo quanto era judeu passou para baixo, até a elegante dama, e nacionalistas obscuros subiram a ocupar seu lugar. O salão mais brilhante de Paris foi o de um príncipe austríaco e ultracatólico. Se, em vez do caso Dreyfus, sobreviesse uma guerra com a Alemanha, noutro sentido se efetuaria a volta do calidoscópio. Demonstando os judeus, com espanto geral, que eram patriotas, teriam conservado a sua posição, e ninguém teria ido jamais, nem jamais confessaria que fora alguma vez às recepções do príncipe austríaco. Isso não impede que, de cada vez que a sociedade se acha momentaneamente imóvel, aqueles que nela vivem imaginem que jamais se efetuará mudança alguma, da mesma forma que, tendo visto começar o telefone, não querem crer no aeroplano."

Compreendendo o grande escritor

Falando sobre o grande escritor Bergotte, que deve ser uma síntese dos grandes escritores franceses que Proust tanto admirava, o personagem Marcel tece os seguintes comentários na "À sombra das raparigas em flor", segunda parte do Em busca do tempo perdido:


"E por isso tanto mais me custou compreender que o que estava dizendo naquele momento não parecia ser de Bergotte exatamente porque era verdadeiro Bergotte. Era uma profusão de ideias precisas, não compreendidas nesse 'gênero Bergotte' de que muitos cronistas se haviam apropriado; e essa diferença - vagamente vislumbrada através da conversação como uma imagem por trás de um vidro enfumaçado - era provavelmente outro aspecto do fato de que, ao ler-se uma página de Bergotte, nunca era semelhante ao que teria escrito qualquer desses vulgares imitadores que, no entanto, no livro e nos jornais, adornavam sua prosa com tantas imagens e pensamentos 'à Bergptte'. Devia-se tal diferença de estilo a que 'o Bergotte' era antes de tudo certo elemento precioso e real, oculto no coração das coisas e de onde aquele grande escritor o extraía, graças ao seu gênio, extração esta que era a finalidade do suave Cantor e não a de fazer Bergotte. A falar verdade, ele o fazia sem o querer, pois era Bergotee, e, nesse sentido, cada nova beleza de sua obra era a pequena parcela de Bergotte oculta numa coisa e que ele dali retirara. Mas embora cada uma dessas belezas estivesse assim aparentada com as outras e fosse reconhecível, permanecia no entanto particular, como a descoberta que a trouxera à luz; nova e portanto diferente do que se chamava  o gênero Bergotte, que era uma vaga síntese dos Bergottes, já encontrados e redigidos por ele, mas pelos quais não era dado a nenhum homem sem gênio adivinhar o que Bergotte iria descobrir. É o que se dá com todos os grandes escritores: a beleza de suas frase é imprevisível, como a de uma mulher que ainda não conhecemos; é criação, porque se aplica a um objeto exterior em que eles pensam - e não a si - e que ainda não expressaram."

domingo, 19 de janeiro de 2014

O efêmero que sobrevive

Proust, em outro momento de grande inspiração, consegue apreender uma faceta da realidade bastante cara à maioria das pessoas. Expressando-se através do personagem Marcel no primeiro volume de Em busca do tempo perdido, ele fala do efêmero que sobrevive por vários anos e das recordações que o tempo faz desaparecer impiedosa e inexoravelmente para sempre. 

"As flores que então brincavam na relva, a água que passava ao sol, toda a paisagem que cercou seu aparecimento continua a acompanhar a lembrança delas com sua face inconsciente ou distraída; e por certo, quando eram longamente contemplados por aquele humilde passante, aquele menino pensativo - como é contemplado um rei por um memorialista perdido na multidão -, aquele recanto de natureza, aquele trecho de jardim jamais poderiam pensar que graças a ele é que seriam chamados a sobreviver em suas particularidades mais efêmeras; e no entanto aquele perfume de pilriteiro que vagueia ao longo da sebe onde em breve o substituirão as roseiras bravas, um rumor de passos sem eco na areia de uma alameda, uma bolha formada contra uma planta aquática pela água do rio e que logo rebenta, minha imaginação os carregou e os fez atravessar tantos anos sucessivos, ao passo que em torno desapareceram os caminhos e estão mortos aqueles que os pisaram, e a lembrança daqueles que o pisaram."

Recordação da infância

O menino Marcel, que lia livros de aventuras durante as tardes de verão sob o castanheiro, envelheceu. Num determinado momento ele tenta lembrar-se da Combray e da Paris daqueles tempos passados. Mas as cidades conhecidas não mais existem. O progresso as transformou e agora para visitá-las, apenas viajando pela memória. Assim nos conta Proust em dois momentos de grande literatura:

“ (...) rua tão estranha como seu nome, de que me pareciam derivar suas particularidades curiosas e sua personalidade rebarbativa e que em vão procuraríamos na Combray de hoje, porque no lugar que ocupava se ergue atualmente uma escola. Mas minha imaginação não deixa de pé uma só pedra da nova construção, e abre e ´restitui´ a rua de Perchamps. Para essas reconstituições, ela dispõe aliás de dados mais precisos do que aqueles que têm em geral os restauradores: algumas imagens conservadas em minha memória, as últimas talvez que ainda existam atualmente e destinadas em breve a sumir-se, do que era Combray do tempo de minha infância.

Eu desejaria encontrá-los tais como as recordava. (...) Aliás, agora, só muito tarde se regressava a Paris. A sra. Swann ter-me-ia respondido, de um castelo, que só voltaria em fevereiro, muito depois do tempo dos crisântemos, caso lhe tivesse eu pedido que reconstituísse para mim os elementos daquela recordação que sentia ligada a um ano longínquo, a de milésimo ao qual não me era dado remontar, os elementos daquele desejo que por sua vez se tornara inacessível como o prazer que outros perseguira em vão. E também seria preciso que fossem as mesmas mulheres, aquelas cujas toaletes me interessavam, porque, no tempo em que eu ainda tinha crença, minha imaginação as tinha individualizado e cercado de uma lenda. Ai! Na avenida das Acácias – a alameda dos Mirtos – tornei a ver algumas, velhas, que não eram mais do que as sombras terríveis do que tinham sido, errantes, a procurar desesperadamente não se sabia o quê, pelos bosque virgilianos. (...) grandes pássaro cruzavam rapidamente o Bosque, como a um bosque, e soltando gritos agudos, pousavam um após outro nos grandes carvalhos que, sob a sua coroa druídica e com uma majestade dodônea, pareciam proclamar o vazio inumano da floresta desapropriada, e me ajudavam a melhor compreender a contradição que existe em procurar na realidade os quadros da memória, aos quais faltaria sempre o encanto que lhes vem da própria memória e de não serem percebidos pelos sentidos. A realidade que eu conhecera não mais existia. Bastava que a sra. Swann não chegasse exatamente igual e no mesmo momento que antes, para que a avenida fosse outra. Os lugares que conhecemos não pertencem tampouco ao mundo do espaço, onde os situamos para maior facilidade. Não eram mais que uma delgada fatia no meio de impressões contíguas que formavam a nossa vida de então; a recordação de certa imagem não é senão saudade de certo instante; e as casas, os caminhos, as avenidas são fugitivos, infelizmente, como os anos.

Caminhos: Swann e Guermantes

Na pequena Combray, o pequeno Marcel e seus pais tinham opção de fazer caminhadas vespertinas em dois caminhos diametralmente opostos: um era o caminho que levava a Méséglise, conhecido como o caminho de Swann; o outro, era o caminho de Guermantes. Nunca se fazia o passeio no mesmo dia pelos dois caminhos. Eles eram, de certa forma, complementares. O primeiro vai marcar a infância do personagem; o segundo vai estar indissociavelmente ligado à sua adolescência. E os dois caminhos, além disso, simbolizam as possibilidades abertas ao viajante ao chegar à bifurcação. Proust assim os descreve:

"Pois havia nas vizinhanças de Combray dois 'lados' para os passeios, e tão opostos que não saíamos com efeito pelo mesmo portão, quando queríamos ir para um lado ou outro: o lado de Méséglise-la-Vineuse, também chamado o lado de Swann, porque se passava pela propriedade do Sr. Swann quando íamos para aquelas bands, e o lado de Guermantes. (...) De Guermantes, eu viria um dia a saber muito mais, mas isso dali a anos e durante toda a minha adolescência, se Méséglise era para mim qualquer coisa de inacessível como o horizonte, oculto à vista, por mais longe que se fosse, pelos acidentes de um terreno que já não se assemelhava ao de Combray, Guermantes sempre me apareceu com um termo antes ideal que real de seu próprio 'lado', uma espécie de expressão geográfica abstrata como a linha do equador, como os pólos, como o oriente. (...) Visto que meu pai falava sempre do lado de Méséglise como da mais bela vista da planície que conhecia e do lado de Guermantes como da paisagem típica de rio, eu lhes dava, concebendo-os assim como duas entidades, essa coesão e unidade que só pertencem às criações de nosso espírito; a mínima parcela de cada um me parecia preciosa e cheia de sua peculiar excelência, ao passo que, em comparação com eles, antes que se chegasse ao solo sagrado de um ou outro, os caminhos em cujo fim se achavam pousados como o ideal da vista de planície e o ideal da paisagem de rio não valiam a pena de ser vistos, como para o espectador apaixonado de arte dramática as ruas que conduzem ao teatro. (...) E essa demarcação ainda se tornava mais absoluta, porque aquele hábito que tínhamos de nunca ir para os dois lados no mesmo dia, em um único passeio, mas uma vez do lado de Méséglise, outra vez do lado de Guermantes, encerrava-os por assim dizer longe um do outro, e sem poder-se conhecer, nos vasos herméticos e incomunicáveis de tarde diferentes."

Um menino sob o castanheiro

Encontra-se em Combray, talvez neste exato momento, um menino, o pequeno Marcel, a consumir incansavelmente as suas tardes na leitura de livros de aventuras. O tempo vai passando e ele não se dá conta da sucessão das horas que se vão. É o próprio Proust quem nos conta:

"E, a cada hora, parecia-me fazer apenas alguns instantes que soara a precedente; a mais recente vinha inscrever-se bem junto da outra no céu e eu não podia acreditar que sessenta minutos tivessem cabido naquele pequeno arco azul compreendido entre os dois marcos de ouro. Às vezes aquela hora prematura dava duas badaladas mais que a última, batera pois uma hora que eu não tinha escutado, e alguma coisa acontecera que para mim não tinha acontecido; o interesse da leitura, mágico como um profundo sono, enganava meus ouvidos alucinados e apagava o sino de ouro na superfície azul do silêncio. Belas tardes de domingo passadas debaixo do castanheiro do jardim de Combray, que eu cuidadosamente esvaziava de incidentes medíocres de minha vida pessoal, pondo em seu lugar uma vida de aventuras e aspirações estranhas, no seio de um país regado de águas vivas (...)"

Son(h)o

A longa caminhada do personagem de Proust pela memória no "Em busca do tempo perdido" começa por um adormecer. Parece que após um longo tempo as recordações vão ser tornando sonhos difíceis de serem descritos. No dizer de Gerard de Nerval, contemporâneo de Proust, em sua obra "Aurélia", "o sonho é uma segunda vida (...) Os primeiros instantes do sono são a imagem da morte; um entorpecimento nebuloso toma nosso pensamento..."

Mas retornemos a Marcel Proust:

"Um homem que dorme mantém em círculo em torno de si o fio das horas, a ordem dos anos e dos mundos. Ao acordar consulta-os institivamente e neles verifica em um segundo o ponto da terra em que se acha, o tempo que decorreu até despertar; esta ordenação, porém, pode-se confundir e romper".

O personagem Marcel, recordando a sua infância:

"... assim, quando acordava no meio da noite, e como ignorasse onde me achava, no primeiro instante nem mesmo sabia quem era; tinha apenas, em sua singeleza primitiva, o sentimento da existência".

E o garoto Marcel, ao acordar, tendo deixado para trás diversos sentimentos de angústia por dormir só e estar distante da mãe, comenta:

"Sem dúvida que eu estava agora bem desperto, meu corpo dera uma última volta e o bom anjo da certeza imobilizara tudo ao redor de mim, deitara-me sob minhas cobertas, em meu quarto, e pusera aproximadamente em seu lugar, no escuro, minha cômoda, minha mesa de trabalho, minha lareira, a janela da rua e as duas portas".