terça-feira, 29 de dezembro de 2015

O princípio

Tagore


'De onde vim? De onde me trouxeste?', perguntava o menino à sua mãe.

Ela respondeu, chorando e rindo ao mesmo tempo, apertando o filho ao colo: Querido, estavas escondido em meu coração, eras o meu desejo! Estavas nas bonecas dos meus brinquedos de menina, e quando, todas as manhãs, eu fazia com areia a imagem do meu Deus, eu também modelava a tua.

Estavas com o Deus de nossa casa dentro do nicho e eu te adorava.

Estavas em todas as minhas esperanças, em todo o meu amor, em toda a minha vida, na vida de minha mãe.

No ventre do Espírito protetor de nosso lar, estiveste durante muitos anos.

Quando em minha mocidade o meu coração abriu as pétalas, tu esvoaçavas em torno como um perfume.

O teu doce e delicado crescimento era como um esplendor celeste, antes da aurora.

Meu querido, gêmeo da luz matutina, vagaste seguindo a correnteza da vida, até que ancoraste em meu coração.

Quando vejo a tua face, vejo nela mistérios que me dominam. Tu que pertences a tudo, és meu agora.

Receio perder-te. Por isso te trago e aperto em meu colo. Que magia atraiu para os meus braços o tesouro do mundo?


* Esta pequena obra prima de Tagore foi publicada em seu livro Lua Crescente.

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

A garota com brinco de pérola

Vermeer foi um pintor de quadros que imitavam bastante bem a realidade, chamados foto-realísticos, que pareciam fotografia, isso mais de um século e meio antes da técnica ter sido inventada. "A garota com brinco de pérola" é a representação de uma moça que usa um estranho turbante. Ela olha ligeiramente de lado e está iluminada por uma luz que vem de sua frente. Entretanto, a iluminação que permite a perfeita visualização do lenço que lhe cai da cabeça fornece um ar artificial, de certa forma fantasmagórico, à imagem. Também impressiona o brinco que brilha no escuro como se tivesse uma luz emanando do seu interior. A garota exprime uma certa tristeza e muito de mistério (na verdade, uma das mais enigmáticas figuras da pintura universal). Seus olhos negros e sua boca entreaberta fornecem um aspecto de perplexidade à figura. Como teria vivido aquela garota? Em que ela pensava no momento em que a tinta registrou para sempre aquele momento de inquietação? Tendo um semblante triste, de gente sofrida, talvez fosse uma pessoa bem pobre e o brinco de pérola não passasse de uma fantasia de Vermeer: um presente imaginário a uma bela garota que jamais tocaria uma joia daquela natureza. Mas ali está o registro de uma menina singela que percorreu caminhos desconhecidos e teve um destino ignoto.


segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Do alto do morro

Do alto do morro eu consegui ver todo o bairro, silencioso, um silêncio falso pois o drama de milhares de pessoas ali se desenrolava. Numa casa daquelas, que minha visão fitava apenas na direção aproximada, estava uma vida bastante particular. Mas a pessoa, com certeza, neste momento nem desconfiava que a casa onde morava era procurada por uma vista meio desiludida, meio conformada.

A ambiguidade da realidade é algo surpreendente. Como a figura no meio da plantação no 'Nosferatu' do Murnau; à princípio pensamos que é uma pessoa ou mesmo um fantasma, quando na verdade trata-se de um espantalho.

Quando retornei à casa observei a novidade do meu rádio empoeirado que nunca mais tocara nenhuma música e que servia apenas como guarda-cartas, com envelopes e páginas escritas jogadas sobre ele. Para aquelas folhas riscadas não houvera resposta. E num instante mágico eu retornei em pensamento ao alto do morro e consegui ver toda a minha ambiguidade: a coragem do sonho e o meu silêncio. Teria sido surpreendente chegar à casa da minha amiga e, sem rodeios, dizê-la: "vim porque estava morrendo de saudade". Ela então, recuperada da pequena surpresa, abriria um sorriso e diria: "que bom".

30/10/1994

Pequeno reboco amarelo

Há poucos dias li na "A Prisioneira" de Proust, uma passagem impressionante. Resumidamente, a passagem é  mais ou menos o seguinte: um escritor está muito doente e lê num jornal a crítica sobre a exposição de um pintor holandês falecido, pouco famoso, autor de uma obra que ele, o escritor, achava tratar-se de uma obra-prima e pensava conhecê-la em todos os detalhes. O crítico do jornal falava exatamente desta obra e dizia da beleza de "um pequeno pedaço de reboco amarelo no muro". Então o escritor doente dizia: "nunca vi este detalhe". E sai, desesperado, para o museu. Ao chegar quase agonizante em frente ao quadro que ele pensava conhecer perfeitamente, observa pela primeira vez alguns pequenos personagens em azul, que a areia era rósea e, finalmente, "a matéria preciosa do minúsculo reboco do muro amarelo". E então o escritor pensa neste instante que era assim que ele deveria ter escrito, que deveria ter construído frases preciosas em si mesmas, como aquele pequeno reboco no muro amarelo. O narrador deixa o escritor de lado e se pergunta: o que faz uma pessoa recomeçar vinte vezes uma coisa que produzirá uma admiração futura tão insignificante para o seu corpo já devorado pelos vermes, como aquele pequeno reboco de muro amarelo pintado com tanta sabedoria e delicadeza por um artista para sempre desconhecido?

Junho/1994.

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Último índio abatido

Quando o índio viu que das casas de sua vila só havia cinzas e que jamais voltaria a falar com os seus amigos pois já estavam todos mortos e compreendendo a sua solidão, por ter escapado do massacre por estar à caça distante da vila, ele chorou amargamente como nenhum ser humano jamais choraria, e cantou uma antiga canção de seu povo, que lhe fora ensinada pelo seu avô, quando ele ainda era uma criança e os europeus ainda não sujavam aquelas terras sagradas com pólvora e a manchavam de sangue.

E por entre as lágrimas do seu choro, o índio sonhou com uma estrada no futuro para veículos modernos, coisas que só seriam inventadas alguns séculos depois, e que esta estrada cortaria a sua terra, e do seu povo não restaria mais a mínima lembrança, como se aquela civilização tivesse sido apenas uma lenda, como se os seus parentes trucidados não tivessem possuído sonhos, como se aqueles seres humanos que dormiam sobre a areia furados pelo sabre e pelo chumbo não tivessem amado.

Aquela estrada no futuro certamente teria um nome e seria uma homenagem aos exterminadores que vieram do outro lado do oceano.

15/04/1993.

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Os dragões da ponte

Em Ljubljana, sobre a ponte, dragões vigiam a cidade e observam sorrateiramente os transeuntes. Eles encontram-se petrificados mas sabe-se que de uma hora para outra poderão voltar à vida e queimar, com seus hálitos de fogo, as últimas lembranças do passado, que se seguram com forças sobre-humanas aos parapeitos da memória, numa tentativa final de não se precipitarem no abismo do esquecimento. No rio, pássaros voam e cantam como se tivessem a eternidade à disposição. E crianças também, ao lado, brincam com a mesma ilusão. Caleidoscópio, canetinha colorida, caderno de desenho, papel vegetal, pião. E as pessoas passam para ver a feira de antiguidade ao largo do rio: pinturas, selos, moedas, cédulas, medalhas, porta-jóias, cadeiras, mesinhas, colares, envelopes, cartões postais... uma carta da avó que veio de Sarajevo, um postal de Zagreb, uma pintura de Montenegro e uma lembrança do bisavô registrada numa fotografia amarelada. 

01/09/2013.

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Setenta anos de Hiroshima

Há 70 anos uma bomba, lançada de um avião norte americano, destruía Hiroshima. A loucura alcançava o seu mais alto grau de sofisticação. Um brinquedo, uma ponte, uma janela, um livro, uma balaustrada, um violino, uma mesinha, uma baqueta, um pedaço de pão, um cobertor, um sapato, uma caneta, um vaso, uma rosa, uma carta, uma criança no chão. O silêncio. O estrondoso e assustador silêncio.

E para a efeméride não passar em branco, segue um pequeno texto de Gérard de Nerval, em Aurélia, a realidade dentro da loucura:

"Como pintar o estranho desespero a que essas ideias aos poucos me reduziram? Um mau gênio tinha tomado o meu lugar no mundo das almas; para Aurélia, era eu mesmo, e o espírito desolado que vivificava meu corpo, enfraquecido, desdenhado, ignorado por ela, via-se para sempre destinado ao desespero ou ao nada. Empreguei todas as forças da minha vontade para penetrar ainda o mistério de que tinha tirado alguns véus. Só posso dar aqui uma ideia estranha do que resultou dessa contenção de espírito. Sentia-me deslizar por um fio estendido de comprimento infinito. A terra, atravessada de veias coloridas de metais em fusão, como já a tinha visto, se clareava aos poucos pela expansão do fogo central, cuja brancura se mesclava com a cor cereja dos flancos do orbe interior. Surpreendia-me encontrar às vezes vastas manchas de água, suspensas como são as nuvens no ar, e mesmo assim oferecendo uma tal densidade que se podiam destacar flocos. mas sem dúvida se tratava de um líquido diferente da água terrestre, e por certo a evaporação do que figurava o mar e os rios para o mundo dos espíritos."

domingo, 19 de julho de 2015

Vista de Delft

"Vista de Delft" é uma obra-prima do pintor holandês Johannes Vermeer, que viveu no século XVII. Considerado um dos primeiros pintores impressionistas, Vermeer teve vários admiradores ao longo do tempo. O escritor francês Marcel Proust, por exemplo, considerava a "Vista de Delft" como a obra prima da pintura universal. 



Massacre dos inocentes

A obra "Massacre dos inocentes" foi concluída em 1611 pelo pintor barroco holandês Peter Paul Rubens (1577 - 1640). A pintura retrata uma cena chocante do assassinato de crianças, massacre esse ocorrido no século I. É assustador que o mundo muda, a tecnologia avança, mas muitas práticas humanas permanecem inalteradas. Talvez se a obra quisesse retratar os dias de hoje veríamos caças bombardeando casas em Gaza ou alguma aldeia miserável do Iêmen...


Lutando contra a sombra

"...lutando contra a sombra, a claridade do lampião abaçanava um pedaço de couro, nigelava um punhal de fulgurantes lantejoulas, em quadros que não eram mais que cópias medíocres, depositava uma douragem preciosa como a pátina do passado ou o verniz de um mestre, e fazia enfim daquel tugúrio, onde só havia imitações e insignificâncias, um inestimável Rembrandt." Marcel Proust

Abaixo encontra-se a obra do pintor holandês Rembrandt van Rijn, que viveu no século XVII, intitulada 'Ronda Noturna", concluída em 1642. Como é característico nas obras de Rembrandt há muitas sombras e penumbras. Os personagens que aparecem em primeiro plano são inspirados em pessoas reais. Um destaque especial é a personagem feminina - uma criança - que está iluminada de uma forma bastante particular, como se um feixe de luz quisesse destacá-la das demais personagens. Segundo alguns críticos a menina representaria Saskia van Uylenburgh, sua primeira esposa, que morreu prematuramente no ano de conclusão da obra.



segunda-feira, 13 de julho de 2015

Sobre as secas

Especula-se que a existência de extensos períodos secos na região onde hoje é o Nordeste brasileiro possa ter sido originado há milhões de anos. De fato, análise preliminar de alguns fósseis da Formação Crato do Período Cretáceo sugere a ocorrência de grandes períodos secos nesta região [1]. Isso não significa que o referido período de estiagem tenha sido uma constante ao longo de mais de 100 milhões de anos desde o Cretáceo; para comprovar tal hipótese seria necessária a análise de diversos materiais fósseis ou de origem geológica pertencentes a esta centena de milhões de anos. Tal estudo nunca foi feito até o momento e, portanto, dizer que os períodos de seca ocorram há milhões de anos é uma mera suposição, ainda sem uma base científica. O que se sabe é que, pelo menos em alguma época do Cretáceo, parece ter havido um período de seca [1]. Então, deixando as suposições de difíceis comprovações para trás, avancemos até as épocas históricas.

Um pouco de história. Os registros sobre as secas na região Nordeste que chegaram até nós são todos posteriores à chegada dos europeus ao Brasil. Isso se deve principalmente ao fato de que não havia um registro escrito da história por parte dos habitantes da região onde hoje é o Brasil e por conta disso e do extermínio da população nativa, a sua história foi perdida. 

No século XVI há registro de secas na Bahia e em Pernambuco nos anos de 1559, 1564, 1587 e 1592, acreditando-se que as mesmas tenham se estendido para os outros estados, embora os mesmos fossem muito menos populosos. Já no século XVII os registros apontam secas ocorrendo no Nordeste em 1603, 1609, 1614, 1645, 1652 e 1692 [3].

No século XVIII ocorreram secas em 1710 - 1711, em 1722 - 1728, em 1744 - 1746, em 1766, em 1777 - 1778 (que segundo o engenheiro Arrojado Lisboa, destruiu sete oitavos do gado [3]) e no período 1790 - 1793, denominada de "Seca Grande". 

Curiosamente, o fenômeno da seca no Nordeste, em particular no Ceará, fez com que diversas vilas e cidades fossem criadas. Joaquim Alves, em sua obra História das Secas (Séculos XVII a XIX) [3], afirma o seguinte: 

"No ano de 1766 houve uma seca comum ao Ceará e ao Rio Grande do Norte. As populações atingidas pelo flagelo não permaneceram em suas terras. Aliás, desde a crise de 1723 que a emigração das populações praieiras e sertanejas para as serras se tornou uma norma. Nas que se lhes seguiram, o movimento emigratório foi mais intenso, em virtude do crescimento da população, dando origem, assim, à formação de bandos dispersos pelos sertões, à procura de alimento. Entre nós esses bandos tiveram maior desenvolvimento, sendo necessário que o governo de Pernambuco, a quem estava afeto o do Ceará, tomasses medidas especiais para impedir as depredações que ocasionavam.

Assim é que, logo que apareceram os grupos resultantes da seca de 1766, ordenava o Governo que fossem reunidos em povoações, e os que não se submetessem às ordens seriam considerados fora da lei e punidos como alteadores e assassinos. A esse tempo foi 'expedida ao Governo de Pernambuco uma Ordem Regia para que os vadios e facínoras que viviam a vagabundear pela Capitania, se ajuntassem em povoações por mais de 50 fogos, repartindo entre eles com justa proporção as terras adjascentes, sob pena dos refratários serem considerados salteadores e inimigos comuns e como tais punidos severamente.' Em consequência da Ordem Régia, foram criadas as vilas de Sobral, São Bernardo das Russas (atual Russas), São João do Príncipe (atual Tauá) e Quixeramobim".   

No século XIX também foram registradas diversas secas. No Ceará e na Paraíba foram registradas uma seca em 1803-1804 e no Rio Grande do Norte e no Ceará uma em 1808-1810. Em 1814 foi registrada uma seca no Rio Grande do Norte e em 1817 uma no Ceará. Em 1824-1825 ocorreu uma grande seca que castigou o Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco. Em 1833 a seca castigou principalmente o Rio Grande do Norte e Pernambuco (é possível que também tenha afetado outros estados). De 1844 a 1846 houve uma grande seca no Ceará, produzindo um grande número de pessoas, principalmente nas viagens migratórias à procura de melhores condições de vida. Em 1860 houve uma seca no Rio Grande do Norte e na Bahia; em 1869 teve uma seca no Rio Grande do Norte que não se estendeu a outros estados. E a maior seca do século ocorreu no período 1877 - 1879. Durante o primeiro ano da seca a população de Mossoró, no Rio Grande do Norte passou de 4.000 para 25.000 habitantes, muitas das quais morreriam de miséria ou peste [2]. Segundo Rodolfo Teófilo morreram em Fortaleza de 1877 a 1879, 65.163 pessoas, sendo que a população desta cidade se elevou, no pico da seca, a cerca de 150 mil pessoas. Ocorreram ainda secas menores, em 1888 - 1889 e em 1898. 

Há cem anos uma grande seca castigou o Nordeste do Brasil, acarretando a morte de milhares de pessoas. Este acontecimento serviu como pano de fundo para uma obra publicada pela escritora Rachel de Queiroz em 1930, O quinze. Posteriormente, em 1938, o escritor alagoano Graciliano Ramos - um dos grandes romancistas brasileiros do século XX - publicou uma belíssima obra que visitava o mesmo tema, Vidas Secas, embora a época em que se desenrola a história não seja bem definida. Os dois romances relatam fases tristes da história do Brasil.



Década de 40: uma obra prima de Josué de Castro

Permeando os livros O quinze e Vidas Secas está a questão da fome. A fome pode ser considerada uma das principais características de uma sociedade excludente. Claro que discutir a fome num país como o Brasil exigiria a avaliação de diversos livros e dezenas de teses. Apesar da complexidade, algumas obras como Geografia da Fome, do médico e escritor Josué de Castro, analisaram importantes aspectos do problema, como o fato de que excesso populacional e baixa produtividade de alimentos, de modo algum, justificam a sua existência. A seguir reproduzimos o início de Geografia da Fome [5] escrito pelo próprio autor no prefácio de 1960: 

"O assunto deste livro é bastante delicado e perigoso. A tal ponto delicado e perigoso que se constituiu num dos tabus de nossa civilização. É realmente estranho, chocante, o fato de que, num mundo como o nosso, caracterizado por tão excessiva capacidade de escrever-se e de publicar-se, haja até hoje tão pouca coisa escrita acerca do fenômeno da fome, em suas diferentes manifestações. Consultando a bibliografia mundial sobre o assunto, verifica-se a sua extrema exigüidade. Extrema quando a pomos em contraste com a minuciosa abundância de trabalhos sobre temas outros de muito menor significação. Tal pobreza bibliográfica se apresenta ainda mais estranha e mais chocante quando meditamos acerca do conteúdo do tema da fome — de sua transcendental importância e de sua categórica finalidade orgânica. 

Já outros estudiosos se tinham espantado diante deste inexplicável vazio bibliográfico: não há muito, Gregorio Marañon, recolhendo material para a elaboração de um trabalho sobre a regulação hormonal da fome,1 se surpreendeu com o número insignificante de fichas que conseguiu reunir acerca deste problema fundamental. Registrando o fato, o escritor espanhol, interessado no momento noutra ordem de idéias, não se deu ao trabalho de buscar as razões ocultas que determinaram esta quase que abstenção de nossa cultura em abordar o tema da fome. Em examiná-lo mais a fundo, não só em seu aspecto estrito de sensação — impulso e instinto que tem servido de força motriz a evolução da humanidade (Espinosa) — como em seu aspecto mais amplo da calamidade universal. Sob este último aspecto, se fizermos um estudo comparativo da fome com as outras grandes calamidades que costumam assolar o mundo — a guerra e as pestes ou epidemias — verificaremos, mais uma vez, que a menos debatida, a menos conhecida em suas causas e efeitos, é exatamente a fome. Para cada mil publicações referentes aos problemas da guerra, pode-se contar com um trabalho acerca da fome. No entanto, os estragos produzidos por esta última calamidade são maiores do que os das guerras e das epidemias juntas, conforme é possível apurar, mesmo contando com as poucas referências existentes sobre o assunto. E há mais, a favor deste triste primado da fome sobre as outras calamidades, o fato universalmente comprovado de que ela constitui a causa mais constante e efetiva das guerras e a fase preparatória do terreno, quase que obrigatória, para a eclosão das grandes epidemias. 

Quais são os fatores ocultos desta verdadeira conspiração de silêncio em torno da fome? Será por simples obra do acaso que o tema não tem atraído devidamente o interesse dos espíritos especulativos e criadores dos nossos tempos? Não cremos. O fenômeno é tão marcante e se apresenta com tal regularidade que, longe de traduzir obra do acaso, parece condicionado às mesmas leis gerais que regulam as outras manifestações sociais de nossa cultura. Trata-se de um silêncio premeditado pela própria alma da cultura: foram os interesses e os preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica de nossa chamada civilização ocidental que tornaram a fome um tema proibido, ou pelo menos pouco aconselhável de ser abordado publicamente. O fundamento moral que deu origem a esta espécie de interdição baseia-se no fato de que o fenômeno da fome, tanto a fome de alimentos como a fome sexual, é um instinto primário e por isso um tanto chocante para uma cultura racionalista como a nossa, que procura por todos os meios impor o predomínio da razão sobre o dos instintos na conduta humana. Considerando o instinto como o animal e só a razão como o social, a nossa civilização, em sua fase decadente, vem procurando negar sistematicamente o poder criador dos instintos, tidos como forças desprezíveis. (...) 

Quanto à fome, foram necessárias duas terríveis guerras mundiais e uma tremenda revolução social — a revolução russa — nas quais pereceram dezessete milhões de criaturas, dos quais doze milhões de fome, para que a civilização ocidental acordasse do seu cômodo sonho e se apercebesse de que a fome é uma realidade demasiado gritante e extensa, para ser tapada com uma peneira aos olhos do mundo." 

Um caso escandaloso: a seca de 1979 - 1983

Apesar da análise profunda de Josué de Castro, o seu estudo e alerta não serviu para evitar uma tragédia cerca de 33 anos depois. De fato, uma seca que se estendeu entre os anos de 1979 e 1983 ceifou a vida de milhares de nordestinos. Não existindo, à época, um programa governamental que garantisse uma renda decente para mitigar o problema da fome, não houve muita escapatória para os pequenos agricultores que perderam toda a lavoura e animais. O descaso foi denunciado por várias entidades. Por exemplo, a Comissão Pastoral da Terra produziu uma interessante obra, intitulada O Genocídio do Nordeste 1979 - 1983. O livro [6] começa com o seguinte texto:

"A seca que assolou o Nordeste de 1979 a 1983 deixou milhares de mortos. Talvez mais de um milhão. (...) Foi a pior seca do século, dizem os mais velhos. Nunca se viu tanto sofrimento, miséria e injustiça em cima da terra sem verde. E nunca se tinha visto o povo se movimentar e refletir sobre a seca como desta vez. Por isso, a última seca não foi mais entendida por todos como uma desgraça natural, nem as mortes encaradas como uma fatalidade. Ampliou-se a compreensão de como os latifundiários e o governo se aproveitam do acontecimento natural para aumentar seu poder. Não foi exatamente a seca quem matou os nordestinos. Houve um genocídio intencionado na região, naqueles anos. É o que este livro pretende mostrar."

Foi a partir de 1982, o quarto ano sem chuvas, que trabalhadores rurais, líderes sindicais, agentes de pastoral representantes diversos do movimento popular, bispos e assessores começaram a reunir-se para discutir grande seca. Num seminário sobre Reforma Agrária realizado em junho de 1984, em Canindé, Ceará, surgiu a ideia de se fazer um levantamento dos mortos, superando-se as dificuldades metodológicas com o apoio do Ibase. Como distinguir se a morte de uma criança aconteceu por causa da seca ou se deveu a outro fator? Como conseguir que as famílias declarassem que seus filhos morreram de fome, o que normalmente é tão humilhante?"

Análises expressas no Genocídio do Nordeste 1979 - 1983 e em várias outras obras sobre o tema mostram que as causas das mortes envolveram e se correlacionaram diretamente à concentração de terras por partes dos latifundiários. Como asseverou Daniel Rech, assessor jurídico da CPT Nacional na referida obra:

"Apenas 44,3 % da área aproveitável dos latifúndios era explorada. Destes, somente 11 % eram aproveitados para culturas e extração vegetal, incluindo aí a grande agricultura de exportação. O dado mais chocante, contudo, é a percentagem de áreas não aproveitadas: 55,7 % das áreas rentáveis do latifúndio são conservadas para especulação. Considerando como os dados doINCRA costumam ser complacentes quando se trata do aproveitamento agrícola dos latifúndios, podemos supor que a percentagem de terras não aproveitadas deve ser superior a estes 55,7 %.

Mas não é só isso. A concentração da terra, corresponde a concentração da água, do crédito e da alocação de recursos do governo em tempo de calamidade. Principalmente no semi-árido, a concentração fundiária, por si só, não resulta em riqueza, mas é o meio através do qual o senhor de terras capta para dentro de suas cercas a construção de açudes, aguadas, etc. Enfim,concentração é muito mais do que uma categoria espacial: corresponde a um processo político no qual uma classe assalta a outra com as bênçãos do Estado e de seus aparelhos.

Essa situação de morte, agravada pela longa estiagem, não era desconhecida pelas autoridades públicas que - também pela omissão - consentiram no Genocídio.

(...)

Se atentarmos para o salário de Cr$ 15.300,00 pago aos alistados nas frentes de emergência, podemos dizer que foram organizados para morrer de fome. numa situação de calamidade pública reconhecida, tudo se torna mais difícil, sobretudo prover os alimentos. Como sobreviver com um terço do salário mínimo regional? Isto não é submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial, como se lê no texto da Lei?

'Um pai de família ganhar por dia de serviço no sol, dando duro, Cr$ 136,00 sujeito a sustentar sua família de 8 a 10 pessoas. Para se alimentar e comprar tudo o que uma família precisa com este dinheiro. Quando um prato de comida numa banca, das piores comidas, é mais deste dinheiro (Este pagamento correspondia a menos de Cr$ 4.000,00 por mês, quando o salário mínimo oficial - que todos sabem que é de fome - estava em Cr$ 6.700,00). Eu não entendo nunca o que eles pensam, quando estipulam um salário destes. Só pode ser uma espécie de zombaria, caçoando do povo' [Depoimento de um lavrador in As secas: exploração de um Povo, Feira de Santana, Bahia, 1982].

O crime é evidente. Milhares de pessoas morreram de fome no Nordeste porque lhes faltou socorro. E havia no país autoridades que detinham o controle das providências, em condições de socorrer os famintos, que poderiam ter evitado a morte de tantos. Estes indivíduos são os autores do genocídio. São assassinos aqueles que podiam impedir estas mortes e não se mobilizaram para isto.


O certo é que a obra Genocídio do Nordeste 1979 - 1983 conseguiu reunir, para ficar na memória das pessoas, o nome de cerca de 4000 crianças que morreram em várias comunidades do interior do Nordeste no período referido. Como parte da conclusão, encontra-se:

"Conhecemos as causas reais de tanta dor e sofrimento, sempre ligados à concentração da água e da terra, à omissão e inoperância dos órgãos do governo e à perversidade do políticos que ocupam seus cargos de direção. Diante do que foi colocado, não podemos não dizer que houve um crime de genocídio. A visão de homens esqueléticos, mulheres carcomidas pela fome, crianças esvaídas por diarréias sem conteúdo, flagelados quebrando pedras sob um sol causticante nas frentes de serviço... é um clamor de justiça e um apelo à consciência de todos os brasileiros.

Os nomes relacionados neste livro são um documento irrecorrível. Diante da memória das crianças que morreram de fome e sede, aparece como revoltante a postura daqueles que, de seus gabinetes luxuosos, nada fizeram para sequer amenizar a agonia do povo. Estes indivíduos são culpados de pelo menos 700.000 mortes."

Quase duas décadas depois isso não mudou muito. A exclusão marcava a sociedade brasileira como um todo. Em 2001 o Brasil - não apenas o Nordeste - tinha cerca de 50 milhões de indigentes. Isto significa que naquela época quase 25 % da população vivia com uma renda inferior a oitenta reais por mês [7,8]. Ou seja, o Brasil entrou o século XXI tendo um quarto de sua população vivendo miseravelmente. Em outra postagem, continuaremos refletindo sobre este tema.

Referências:

[1] J.H. da Silva, P.T.C. Freire, B.T.O. Abagaro et al., Spectroch. Acta A 68, 251 (2013).
[2] I. de Souza, J. Medeiros Filho, Os degredados filhos da Seca: Uma análise sócio-política das secas do Nordeste, Ed. Vozes: Petrópolis, 1983.
[3] Joaquim Alves, História das Secas (Séculos XVII a XIX), Coleção Mossoroense, volume CCXXV, 1982.
[4] Thomaz Pompeu Sobrinho, História das Secas (Século XX), Coleção Mossoroense, volume CCXXVI, 1982.
[5] Josué de Castro, Geografia da Fome: o dilema brasileiro: pão ou aço, 10 a. edição revista, Ed. Antares: Rio de Janeiro, 1984.
[6] O genocídio do Nordeste 1979 - 1983, CPT-CEPAC-IBASE, Co-edição: Edições Mandacaru Ltda, São Paulo, s/d.
[7] http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u32604.shtml Visitado em 10/07/2015.
[8] http://www.educacional.com.br/noticiacomentada/020627_not01.asp Visitado em 10/07/2015.

quinta-feira, 9 de julho de 2015

O campanário de Santo Hilário


No seu passeio pela memória o narrador da Research se detém por uns bons momentos na velha Combray de sua infância. Combray, que será recuperada mais a frente, por exemplo, quando ele sentir o sabor da madalena molhada no chá numa tarde fria de Paris, é reconstruída pedaço a pedaço com suas casas, suas ruas com nomes de santos, suas personagens comuns e estranhas ao mesmo tempo, seus jardins e sua igreja com o belo campanário. Essa estrutura da igreja de Combray, em particular, irá preencher diversas páginas de No caminho de Swann. Como será revelado pelo narrador, apesar de no futuro ele vir a conhecer variados campanários de diversas igrejas, nenhum terá a beleza daquele que dominava a vida dos habitantes da pequena cidade; e que dominará parte de suas lembranças pelo resto da vida. Outros excertos da obra máxima de Marcel Proust na tradução de Mário Quintana:

Combray, de longe, por dez léguas em redor, vista do trem, quando chegávamos na semana anterior à Páscoa, não era mais que uma igreja que resumia a cidade, representava-a, falava dela e por ela às distâncias, e, quando nos aproximávamos, mantinha aconchegados em torno de sua grande capa sombria, em pleno campo, contra o vento, como uma pastora a suas ovelhas, os lombos lanosos e cinzentos das casas reunidas que um resto de muralhas da Idade Média cingia aqui e ali num traço tão perfeitamente circular como uma cidadezinha em um quadro de primitivos. Para morar, Combray era um pouco triste, como eram tristes suas ruas, cujas casas, edificadas com as pedras escuras da região, precedidas de degraus exteriores e com seus telhados de beirais salientes que faziam sombra, eram tão escuras que, mal começava a declinar o dia, já era preciso erguer as cortinas nas “salas” (…)

Desde muito longe já se reconhecia a torre de Santo Hilário, que imprimia seu vulto inesquecível no horizonte onde ainda não assomava Combray; na semana da Páscoa, quando meu pai avistava, do trem que nos trazia de Paris, aquela torre que deslizava por todos os campos do céu, fazendo correr em todos os sentidos seu pequeno galo de ferro, logo ia nos dizendo: ‘Andem, recolham as capas, que já chegamos’. E em um dos maiores passeios que dávamos em Combray, havia um trecho em que o estreito caminho desembocava de súbito em um imenso planalto delimitado no horizonte pelo recorte irregular de uns bosques, atrás do quais somente emergia a fina agulha da torre de Santo Hilário (...)

Muitas vezes, na praça, de volta do passeio, minha avó me fazia parar para olhar o campanário. Das janelas de sua torre, colocadas de duas em duas, umas acima das outras, com esta justa e original proporção das distâncias que não só aos rostos humanos empresta beleza e dignidade, o campanário soltava, deixava tombar, a intervalos regulares, revoadas de corvos que, durante um momento, voejavam grasnando, como se as velhas pedras que os deixavam à vontade sem dar mostras de vê-los, tornando-se de súbito inabitá- veis e descarregando um elemento de agitação infinita, os tivessem batido e escorregado. (...)

Sem saber bem por que, minha avó apreciava na torre de Santo Hilário essa ausência de vulgaridade, de pretensão, de mesquinharia que a levava a estimar, e considerar pródigas de benéfica influência, tanto a natureza, sempre que a mão do homem não a tivesse apoucado, como fazia o jardineiro de minha tia-avó, como as obras de gênio. E, sem dúvida, qualquer parte da igreja a distinguia de qualquer outro edifício por uma espécie de pensamento que lhe era infuso, mas no campanário é que ela parecia tomar consciência de si mesma, afirmar uma existência individual e responsável. Ele é que falava por ela. Creio que, confusamente, minha avó achava no campanário de Combray aquilo que tinha mais valor no mundo para ela: naturalidade e distinção. (...)

“E ainda hoje, em alguma grande cidade da província ou em algum bairro de Paris que não conheço bem, quando um transeunte ‘que me mostra o caminho’ me indica ao longe, como ponto de referência, uma torre de hospital, um campanário de convento a erguer a ponta de sua torre eclesiástica na esquina de uma rua que eu devo tomar, por pouco que minha memória lhe possa obscuramente encontrar algum traço de semelhança com a figura amada e desaparecida, se acaso o transeunte se volta para ver se não me perco, há de espantar-se ao me surpreender, esquecido do passeio ou da obrigação, ali parado diante da torre, horas e horas, imóvel, procurando lembrar-me, sentindo, no fundo de mim, terras reconquistadas ao esquecimento, que vão secando e delineando seu perfil, e nesse instante, e mais ansiosamente do que ainda há pouco quando lhe pedia que me informasse, continuo a procurar o caminho, dobro uma rua... mas em meu coração...”

quarta-feira, 8 de julho de 2015

O sabor do chá com a madalena

Um dos pontos mais marcantes do primeiro volume de Em busca do tempo perdido (No caminho de Swann) é aquele no qual o narrador, depois de muito tempo que visitara Combray, é invadido por uma lembrança avassaladora dos momentos em que passara na cidade interiorana durante a sua infância. O aspecto mais impressionante do evento é o fato daquelas lembranças e de antigos sentimentos terem sido despertados pelo sabor de um pequeno bolo - uma madalena - molhada com chá e que estas lembranças trouxeram ao narrador um prazer surpreendente e inexplicável. Mais um momento de grande arte de Marcel Proust na tradução preciosa de Mário Quintana:

"Muitos anos fazia que, de Combray, tudo quanto não fosse o teatro e o drama do meu deitar não mais existia para mim, quando, por um dia de inverno, ao voltar para casa, vendo minha mãe que eu tinha frio, ofereceu-me chá, coisa que era contra meus hábitos. A princípio recusei, mas, não sei por que, terminei aceitando. Ela mandou buscar um desses bolinhos pequenos e cheios chamados madalenas e que parecem moldados na valva estriada de uma concha de São Tiago. Em breve, maquinalmente, acabrunhado com aquele triste dia e a perspectiva de mais um dia tão sombrio como o primeiro, levei aos lábios uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço de madalena. Mas no mesmo instante em que aquele gole, de envolta com as migalhas do bolo, tocou meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noção de sua causa. Esse prazer logo me tornara indiferente às vicissitudes da vida, inofensivos seus desastres, ilusória sua brevidade, tal como o faz o amor, enchendo-me de uma preciosa essência: ou, antes, essa essência não estava em mim, era eu mesmo. Cessava de me sentir medíocre, contingente, mortal. De onde me teria vindo aquela poderosa alegria? Senti que estava ligada ao gosto do chá e do bolo, mas que o ultrapassava infinitamente e não devia ser da mesma natureza. (...)

E mal reconheci o gosto do pedaço de madalena molhado em chá que minha tia me dava (embora ainda não soubesse, e tivesse de deixar para muito mais tarde tal averiguação por que motivo aquela lembrança me tornava tão feliz), eis que a velha casa cinzenta, de fachada para a rua, onde estava seu quarto, veio aplicar-se, como um cenário de teatro, ao pequeno pavilhão que dava para o jardim e que fora construído para meus pais aos fundos da mesma (esse truncado trecho da casa que era só o que eu recordava até então); e, com a casa, a cidade toda, desde a manhã à noite, por qualquer tempo, a praça para onde me mandavam antes do almoço, as ruas por onde eu passava e as estradas que seguíamos quando fazia bom tempo. E, como nesse divertimento japonês de mergulhar numa bacia de porcelana cheia d'água pedacinhos de papel, até então indistintos e que, depois de molhados, se estiram, se delineiam, se colorem, se diferenciam, tornam-se flores, casas, personagens consistentes e reconhecíveis, assim agora todas as flores de nosso jardim e as do parque do sr. Swann, e as ninféias do Vivonne, e a boa gente da aldeia e suas pequenas moradias e a igreja e toda a Combray e seus arredores, tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, da minha taça de chá."


quarta-feira, 24 de junho de 2015

Congos, Fandangos e Reisados

Relendo "Fortaleza descalça" de Otacílio de Azevedo, veio-me à mente uma passagem de "Em busca do tempo perdido" no qual as pessoas que passaram por um determinado caminho estão mortas, bem como as lembranças dessas pessoas. De fato, no texto "Congos, Fandangos e Reisados", que reproduzimos abaixo, Otacílio de Azevedo apresenta um pedreiro, chamado Gorgulho, que nas manifestações folclóricas aparecia como um verdadeiro rei. Entretanto, o tempo passou e as festas não existem mais. Gorgulho se perdeu nas vielas do tempo; o autor, que não expressa no seu texto nada mais do que o apelido e as indumentárias do trabalhador-rei, não sabe nem se à época da escritura do livro - década de 70 do século passado - ele ainda estaria vivo. É difícil compreender o fato na sua plenitude, mas Gorgulho, seus amigos e familiares que viveram, sofreram e se divertiram no início do século XX estão todos mortos, assim como suas lembranças.

Congos, Fandangos e Reisados
Otacílio de Azevedo

"Os Congos, Fandangos, Reisados e, ainda, os Pastoris, tiveram fim, pelo menos como instituição tradicional em Fortaleza, como ocorria por volta de 1918.

Foram essas as grandes diversões populares dos tempos de nossos pais. Seis meses antes do início dessas representações, já se iniciavam os ensaios. Os sons dos tambores, zabumbas e maracás eram ouvidos nos quatro cantos da cidade.

Frequentei, com meus amigos mais chegados, esses festejos folclóricos que se prolongavam até às altas horas da madrugada.

Em grandes terrenos, armavam-se palcos nos quais se representavam as estórias e lendas entremeadas de cânticos e cenas empolgantes, ao som de uma cadência de ritmos envolventes. O Rei e as princesas, envoltos em rendas e cetins, impunham sua majestade e grandeza pelos ares donairosos que assumiam.

Ainda hoje recordo a figura principesca que fazia, naquele esplêndido meio, o Gorgulho, um simples e analfabeto pedreiro que residida na minha rua. Vestido na roupagem de seda colorida, cheia de fitas e arabescos, minúsculas lantejoulas, vidrilhos e brilhantes pedrarias, pavoneava-se e aparecia ao público com gestos de um verdadeiro rei. Seus valetes, de calça de cetim verde, justa ao corpo, colete violeta, clâmide vermelha caindo sobre os ombros e espadas de papelão dourado completavam a moldura daquela corte efêmera mas impressionante.

Quando sentado no trono forrado de fofos de papel de seda salpicado de estrelas, tendo, à guisa de cetro, uma vara coberta de papel dourado, com um grande "S" na ponta, os pés metidos numas reiúnas de soldado, descansando num tablado, sobre um tapete de palha de carnaúba colorida - aí o espetáculo era mesmo empolgante e todos sentiam-se diminuídos por aquela grandeza. A cabeça, uma coroa de flandres pintada de cores diversas dava-lhe um ar diferente, afastando-o do comum dos mortais...

À frente do lugar onde se realizava o pagode, ia-se beber e tirar gosto com caranguejo e comentar os fatos e feitos da festividade. Mesas e cadeiras eram atulhadas pela comida e pelos frequeses.

Muitas vezes, tarde da noite, costumava haver grossa pancadaria e os convivas desapareciam como por encanto. Maior parte das vezes, eram os soldados da Polícia Militar em luta contra os soldados do Exército, à época sérios rivais...

Em 1917 assistimos à última representação oficial, por assim dizer, dessa festividade, ao lado da residência do senhor Álvaro de Castro Correia, alto comerciante e único representante do sabonete "Santelmo" em Fortaleza, considerado, na época, o melhor do Brasil.

Ainda me recordo do príncipe Sueno, cuja indumentária era semelhante à do Rei, faltando-lhe, apenas, a coroa. O "secretário" usava um grande chapéu de abas largas viradas para cima, como os dos cangaceiros de Lampeão, efeitado de pequenos espelhos que brilhavam à luz do acetileno. Também apareciam meninos fantasiados com boleros e saiotes curtos à moda de bailarinas.

Com o decorrer do tempo tudo aquilo se acabou. A chegada do rádio, com os seus programas dançantes - os "bazares" - seus anúncios gritados e permanentes, tudo mudou. Acabaram os reisados, congadas e fandangos. Fala-se muito de que ainda existem, aqui e além, mas, na verdade, acabaram de uma vez. O que resta é propaganda dos departamentos de turismo que procuram, a todo custo e sem resultado, reviver estas festividades legítimas, as quais não mais existem porque não têm mais razão de existir. Tudo que se fizer nesse sentido será simples caricatura daquilo que era feito com intenção verdadeiramente artística e por necessidade orgânica de alimentar o espírito popular.

A essas horas, se é que ainda vive, por onde andará o Gorgulho? Talvez sonha, ainda, com aquele efêmero mas brilhante e magnífico reinado de poucos dias, durante os quais ele realmente vivia, todo-poderoso, debaixo de sua coroa de papelão dourado."

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Retorno à Balbec

No quarto volume de "Em busca do tempo perdido" há um retorno bem particular. Após um ano da morte da avó, o narrador retorna à Balbec de sua adolescência. Na verdade, ele retorna a uma outra Balbec. Lá, os sentimentos são diferentes, bem como o são as sensações e as lembranças. Lembranças que são arbitrárias, mas que acesas por um pequeno detalhe (como o sabor de uma madeleine no chá - como veremos em outra postagem) voltam à tona com uma força avassaladora. 

"As imagens escolhidas pela recordação são tão arbitrárias, tão estreitas, tão inacessíveis, como as que formara a imaginação e a realidade destruíra. Não há razão para que, fora de nós, um local verdadeiro possua antes os quadros da memória que os do sonho. E depois, uma realidade nova talvez nos faça esquecer, detestar até os desejos pelos quais havíamos partido."

Neste momento do romance, Marcel Proust revisita um tema explorado em outros pontos da história. É a consciência de fatos passados trazidos à vida pela visita ao local onde as lembranças foram guardadas. Outra descrição grandiosa de Proust [Sodoma e Gomorra] na tradução poética de Mário Quintana:

"Acabava de perceber, em minha memória, inclinado sobre o meu cansaço, o rosto terno, preocupado e decepcionado de minha avó, tal como ela estivera naquela primeira noite de chegada, o rosto de minha avó, não daquela que eu me espantara e censurara de lamentar tão pouco e que de seu apenas tinha o nome, mas da minha avó verdadeira, cuja realidade viva eu tornava a encontrar pela primeira vez, numa recordação involuntária e completa, desde que ela tivera um ataque nos Campos Elísios. Essa realidade não existe para nós enquanto não foi recriada por nosso pensamento (sem isso, os homens que estiveram empenhados numa batalha gigantesca seriam todos grandes poetas épicos); e assim, num desejo louco de precipitar-me em seus braços, não era senão naquele instante, mais de um ano após o seu enterro, devido a esse anacronismo que tantas vezes impede o calendário dos fatos de coincidir com o dos sentimentos - que eu acabava de saber que ela estava morta. (...) Pois às perturbações da memória estão ligadas as intermitências do coração. É sem dúvida a existência de nosso corpo, semelhante para nós a um vaso em que estaria encerrada a nossa espiritualidade, que nos induz a supor que todos os nossos bens interiores, as alegrias passadas, todas as nossas dores, estão perpetuamente em nossa possessão. Talvez seja igualmente inexato acreditar que se escapem ou voltem. Em todo caso, se ficam em nós, é a maior parte do tempo num domínio desconhecido em que não têm a mínima serventia para nós, e em que as mais habituais são recalcadas por lembranças de ordem diferente e que excluem qualquer simultaneidade com elas na consciência. Mas se for recuperado o quadro de sensações em que estão conservadas, têm elas por sua vez esse mesmo poder de expulsar tudo quanto lhes é incompatível, de instalar sozinho em nós o eu que as viveu. Ora, como aquele que eu acabava subitamente de tornar-me não havia existido desde essa noite remota em que minha avó me despira quando da minha chegada a Balbec, foi muito naturalmente, não após o dia atual, que esse eu ignorava, mas - como se houvesse no tempo séries diferentes e paralelas - sem solução de continuidade, logo em seguida após a primeira noite de outrora, que aderi ao minuto em que minha avós se inclinara para mim. O eu que eu era então, e que por tanto tempo havia desaparecido, estava de novo tão perto de mim que me parecia ouvir ainda as palavras que tinham imediatamente precedido e que no entanto não eram mais que um sonho; assim um homem mal desperto julga perceber bem junto a si os rumores do seu sonho que vai fugindo. (...) E agora que renascia essa mesma necessidade, bem sabia que podia esperar horas e mais horas, que jamais ela estaria junto de mim; só agora o descobria por que, ao senti-la pela primeira vez viva, verdadeira, enchendo o meu coração até afogá-lo, reencontrando-a enfim, eu acabava de saber que a tinha perdido para sempre."

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Além daquela serra...

Em 2015 comemora-se o sesquicentenário da publicação do livro Iracema de José de Alencar. A prosa poema de Alencar tem sido objeto de análise por parte de muitos mestres brasileiros. Machado de Assis, por exemplo, no Diário do Rio de Janeiro de 23 de janeiro de 1866, assinala: "Que o autor de Iracema não esmoreça, mesmo a despeito da indiferença pública; o seu nome literário escreve-se hoje com letras cintilantes: Mãe, O Guarani, Diva, Lucíola, e tantas outras; o Brasil tem o direito de pedir-lhe que Iracema não seja o ponto final. Esperam-se dele outros poemas em prosa. Poema lhe chamamos a este, sem curar de saber se é antes uma lenda, se um romance: o futuro chamar-lhe-á obra-prima". Outras análises e referências podem ser lidas na obra Iracema - Lenda do Ceará - 140 anos organizada pelos professores da Universidade Federal do Ceará Angela Gutiérrez e Sânzio de Azevedo (Editora UFC, Fortaleza, 2005). 

Enfim, para comemorar esta efeméride, de grande importância para a literatura brasileira, reproduzimos abaixo um pequeno trecho da obra do escritor cearense.


Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.

Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira.

O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado.

Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo da grande nação tabajara, o pé grácil e nu, mal roçando alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas.

Um dia, ao pino do sol, ela repousava em um claro da floresta. Banhava-lhe o corpo a sombra da oiticica, mais fresca do que o orvalho da noite. Os ramos da acácia silvestre esparziam flores sobre os úmidos cabelos. Escondidos na folhagem os pássaros ameigavam o canto.

Iracema saiu do banho; o aljôfar d'água ainda a roreja, como à doce mangaba que corou em manhã de chuva. Enquanto repousa, empluma das penas do gará as flechas de seu arco, e concerta com o sabiá da mata, pousado no galho próximo, o canto agreste.

A graciosa ará, sua companheira e amiga, brinca junto dela As vezes sobe aos ramos da árvore e de lá chama a virgem pelo nome; outras remexe o uru te palha matizada, onde traz a selvagem seus perfumes, os alvos fios do crautá , as agulhas da juçara com que tece a renda, e as tintas de que matiza o algodão.

Rumor suspeito quebra a doce harmonia da sesta. Ergue a virgem os olhos, que o sol não deslumbra; sua vista perturba-se.

terça-feira, 24 de março de 2015

Procura-se

Tarso Freire *

     O conto reproduzido abaixo possui uma história bastante interessante: certa vez na cantina do IFCH bati um longo papo com uma aluna de Filosofia, a qual não citarei nome pois o que relatarei a seguir é não autorizado. Na conversa descobrimos que havíamos habitado, quando de nossa chegada à Campinas (em épocas diferentes, naturalmente), o mesmo familiar hotel. Mas a maior coincidência é que havíamos ficado exatamente no mesmo quarto. Isto porque só havia um quarto no sótão do casarão. Mas o quarto era cheio de coisas velhas, com dezenas de livros, cujas páginas quebravam-se ao contato com as mãos, além de centenas de papéis rabiscados. Quando retirou-se do hotel, contou-me a garota, levou uma pasta repleta destes papéis velhos, pura travessura. Por ter sido obrigada a fazer uma viagem em agosto do ano passado, a filósofa deixou-me a pasta com os tais papéis e, arrependida, pediu-me que encontrasse o verdadeiro dono. Nesta pasta havia dois contos, um dos quais é reproduzido abaixo, uma carta endereçada a uma certa Maria Filomena, e setenta e três aquarelas belíssimas, todas assinadas por H.S.S.P. Voce. Como elas devem valer um dinheiro razoável no mercado de arte, retornei para devolver a algum dos donos do hotel, mas para minha surpresa o prédio situado na avenida Morais Sales havia sido demolido. Procurei achar alguém com o sobrenome Voce. Na lista telefônica de Campinas de 94 não existia ninguém com este sobrenome. Mas folheando na Telesp listas antigas encontrei um assinante chamado J.P. Voce. O nome deste assinante constava até o ano de 1989, depois do qual desapareceu das listas. Mesmo assim, telefonando para o número de 89 fui informado de que se tratava de uma loja de livros antigos especializada em religiões antigas e sociedades secretas, que ninguém ali conhecia o Sr. Voce e que o telefone pertencia à loja desde 1982!!! Descobri, no acervo histórico do IFCH, que um certo senhor Ferdinando Castilho Voce, havia trabalhado para o Sr. Barão Geraldo há muito tempo atrás, quando Campinas não passava de uma cidadezinha. Corria a lenda, na época, que o Sr. Ferdinando possuía minas de diamantes lá nas Gerais, como está escrito num livro sobre o interior paulista no início do século. Mas os descendentes deste Sr. Voce estão desaparecidos, ou talvez, este H.S.S.P. Voce tenha sido a última pessoa da família. (Gostaria de destacar que os papéis referentes ao Sr. Ferdinando não estavam mais disponíveis ao público na semana seguinte. Indagando o porquê, recebi como resposta da bibliotecária que aqueles papéis haviam sido requisitados por um pesquisador da USP!?) Por isto publico o conto abaixo: na esperança de encontrar uma pessoa que possua verdadeiros direitos sobre as aquarelas. Então, se o leitor tiver informação a respeito de alguém que assine com o sobrenome Voce, eu agradeceria imensamente. Atenciosamente, P.T.C. Freire. (observações - a: as informações a este respeito podem ser enviadas para o endereço eletrônico da APGF; b: a grafia das palavras do conto foram atualizadas, evitando-se assim os "l"s dobrados, os "ph"s no lugar de f, os "ct" e coisas do gênero, para facilitar a vida do leitor; c: no final do texto, escrito claramente com tinta diferente e na diagonal da folha de papel foram rabiscadas as letras Sá. - Si., que devido não se encaixarem no contexto do conto, foram suprimidas na reprodução).

      A morte do escritor
         H.S.S.P. Voce

    O Escritor pegou o resultado do exame feito com células do tumor que o incomodava há tempos, dobrou-o, colocou-o no bolso da calça um pouco velha e foi em direção ao bar mais agitado do centro da cidade. A cidade lhe dava forças e a praça central era o símbolo dentro do símbolo. Ele já possuía a frase com que começaria o seu próximo livro: "Qualquer forma de amor que possua algum resquício de egoismo, mesmo estando a um milhão de anos luz de distância, já está contaminado e não é mais verdadeiro." Era sua prática pensar durante algum tempo em cada frase antes de escrevê-la. "Qualquer forma de amor... parece-me bom", e assim pensando chegou ao bar e pediu a sua bebida preferida. Seria bom olhar o anúncio de uma eventual desgraça com o conforto do álcool amigo.
    O ambiente por alguns segundos pareceu-lhe estranho, como se os clientes, os garçons, copos, garrafas, fumaça, nada daquilo pertencesse ao mundo, ou então, que ele é que fosse o intruso no ambiente. A entrada de um mendigo pedindo um copo de aguardente destruiu a sua estranheza do mundo. Com aquela imagem o escritor imaginou que a dor da úlcera daquele pobre homem seria um conforto para suas mágoas e seus sofrimentos; até a própria dor para ele poderia ser um remédio, uma espécie de analgésico para uma dor maior. O pobre diabo deu um ligeiro sorriso para um copo vazio.
    Mas enquanto o mendigo tratava de encher o seu copo para novamente deixá-lo repleto de ar, o escritor colocou a mão no bolso e começou a desenrolar o papel com o resultado do seu exame. Estava um clima quente e seco e sem nenhuma razão aparente veio-lhe à mente "As flores do mal" e sentiu a presença iluminada do outro poeta. Uma estrela, um coração sangrando - a luz, era necessário luz!
    A sua vida não havia sido muito boa até aquele momento. Era um eufemismo. A vida havia sido um passear por sarjetas, embora aqueles momentos de boa leitura lhe dessem um prazer que o ar não lhe dava, um prazer maior que escrever os seus livros. E escrever livros era, na verdade, a ilusão de um escritor que era o narrador de um livro que começaria com a frase "Qualquer forma de amor...", livro este que contaria a história de um escritor que estava com cancro.
    Por causa disso ele poderia ser chamado de farsante, embora ele se sentisse apenas como uma pessoa que rasgava, desesperadamente, uma após outra, as cortinas da mentira. Mesmo sabendo que o número delas era infinito.
    O mendigo virou novamente o copo com uma vontade absurda. O mundo que dava voltas iguais para ele era o mundo que girava igual e cinicamente para todos. O suicídio lento e silencioso do pobre diabo era apenas o pungente grito de revolta contra a situação que o estava conduzindo à morte.
    Leu o escritor o resultado: era maligno! Neste momento foi como se o mundo todo acabasse e restassem apenas ele e aquela maldita folha de papel. Apesar de saber da possibilidade de poder receber a pior notícia, ele possuía a secreta certeza de que esta jamais viria. A sentença em suas mãos silenciou para sempre o mundo: nunca os verdes olhos de que Camões cantara possuiria mais a mesma beleza e nunca mais ele se permitiria atravessar a barreira dos cristalinos e tentar compreender as manifestações irracionais, ou não, dos que cruzavam o seu caminho.
    E escreveu esta carta:
    "Minha adorável e doce senhora Marta, agora que o mundo faz menos sentido ainda, vou partir. Ter que suportar o fardo desta... a falta de ar, estes ambientes sufocantes, estes quartos sujos, a eterna queda em direção à lama que poderia inclusive purificar o mais sujo dos humanos, purificá-lo de sua angústia esmagadora, de sua consciência do ... vazio, do nada que o chama como a chama luminosa que atrai as feras na floresta em noite escura; eu gostaria que minha carta testamento tivesse a eloquência do silêncio: que nesta noite tenebrosa de agosto de novecentos e quatorze não dissesse absolutamente nada!
    João Ladino Péricles, o seu criado que parte."
    A vila de São Carlos é testemunha. O escritor João Péricles desapareceu pouco a pouco consubstanciando-se no vácuo, como se fosse uma sombra que se dissolve vagarosamente com o cair da tarde, assustada com a chegada da noite...


* Este texto foi publicado originalmente no Jornal da APGF (Associação de Pós-Graduandos de Física da Unicamp), em janeiro de 1995. Durante uma mudança, quando deixei a cidade de Campinas - em julho de 1995 - todas as aquarelas e muitos livros que possuía foram extraviados. Mas fiquei acompanhando notícias sobre exposições de pinturas e aquarelas que ocorriam pelo Brasil durante muito tempo, na expectativa de encontrar algum indício que me levasse de volta às belas aquarelas. Tive a sorte de reconhecer numa chamada de uma exposição em determinado museu de arte moderna, uma das aquarelas (ou algo muito semelhante) desaparecida dez anos antes. Como a exposição ocorrera em uma cidade bastante distante de onde morava na época, não foi possível conferir se se tratava de uma das aquarelas extraviadas. Posteriormente, ao relatar estes acontecimentos para um colega que pesquisa sobre sociedades secretas existentes desde a Idade Média - não que eu acredite que exista alguma mínima relação entre elas e esta história - ele comentou que "Sá - Si" poderia ser interpretado como Sábios de Sião, uma misteriosa sociedade secreta secular com origem na Europa e com possível ramificação aqui no Brasil trazida por algum membro da corte de D. João VI. Embora crível, preferi descartar tal hipótese. Dei, então, por encerrada esta história. 

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

A mercadoria em Antonil

     Segundo estudiosos e analistas da sociedade, a mercadoria é um conceito que possui um importante papel na estrutura do pensamento de Karl Marx. Além de possuir um valor de uso e um valor de troca, a mercadoria também seria uma unidade de medida do trabalho que a criou. Aqui não é o lugar de discutir o conceito de mercadoria, além do que o autor destas linhas não tem conhecimento suficiente para fazê-lo. Este parágrafo inicial é apenas para introduzir um texto do sacerdote da Companhia de Jesus, João Antonio Andreone (algumas vezes referido como André João Antonil, ou simplesmente Antonil), que chegou ao Brasil em 1681 a convite do Pe. Antonio Vieira. Antonil viajou pelo país e captou com os olhos de um europeu deslumbrado, aspectos relacionados às riquezas de uma colônia que crescia sob a égide da mão de obra escrava. Entretanto, os escravos eram não-sujeitos, agentes de transformação que foram tornados invisíveis pela pena ágil dos relatores da história oficial, como era o caso de Antonil. 

     Apesar de Antonil - um italiano nascido em Lucca - ter produzido uma importante obra acerca do Brasil Colonial, quase foi esquecido pelas gerações posteriores. O esquecimento só não foi completo graças aos trabalhos de alguns pesquisadores como João Capistrano de Abreu e Visconde de Taunay, entre outros. Uma bela descrição de parte dos escritos do Pe. Antonil é fornecida, por sua vez, pelo Prof. Alfredo Bosi na sua obra monumental, Dialética da Colonização, no capítulo "Antonil ou as lágrimas da mercadoria". Assim, antes de apresentar o texto de Antonil, seria interessante mostrar uns poucos parágrafos de Alfredo Bosi, em particular, discutindo a maneira como Antonil conseguiu transformar os sujeitos da história (os escravos) em objetos e o objeto (a cana) em sujeito: 

     "Os escravos são os pés e as mãos dos senhores, e esta figura redutora lhes tira a integridade de atores. São construções verbais passivas e impessoais que Antonil enfileira para descrever o plantio da cana: a terra roça-se (quem a roça?), queima-se (quem o faz?), alimpa-se (quem?). Que a  cana não se abafe; que se plantem os olhos da cana em pé, ou que se deite em pedaços; deita-se também inteira, uma junto à outra, ponta com pé; e cobrem-se com terra moderadamente... Dirá a gramática tradicional que em todos esses casos o sujeito é a terra ou a cana; e aqui a razão formal do gramático coincide com a do economista da era mercantil. O objeto exterior ganha foros de sujeito na linguagem de Antonil. Ao mesmo tempo, o agente real (o escravo que roça, queima, alimpa, abafa, deita, cobre...) omite-se por um jogo perverso de perspectivas no qual a mercadoria é omnipresente e todo-poderosa antes mesmo de chegar ao mercado, e precisamente porque deve chegar ao mercado inteira, branca e brunida.

     Vinda a hora da safra, tampouco nos é dado ver homens inteiriços na faina do eito. 'Quando se corta a cana, se metem até doze ou dezoito foices no canavial.'  Metem-se foices a ceifar, e a metonímia do instrumento pelo trabalhador diz o que deveras importa ao olhar do autor: as canas a cortar, não os obreiros que as cortam. Depois, é preciso contar os feixes, operação de cálculo; mas como acomodá-la 'à rudeza dos escravos boçais, que não sabem contar?'.  Usando seus dedos e mãos. Dez feixes para cada dedo. Cinco dedos tem a mão: a mão vale cinquenta feixes. Duas mãos têm cem feixes. E sete mãos têm trezentos e cinquenta feixes, 'e tem por obrigação cada escravo cortar num dia trezentos e cinquenta feixes', ou seja, sete mãos.

     Atada em feixes e levada em carros de bois, bate a cana às portas da casa de moer, 'com o artifício que engenhosamente inventaram'. É a vez de uma descrição técnica minudentíssima da moenda: períodos sobre períodos articulados em torno da máquina por excelência do engenho, onde rodas de eixo dentadas se entrosam e desentrosam e reentrosam para melhor espremer a cana e extrair o sumo, o caldo, que se recolherá para ferver.

    Quase no fecho destas páginas metodicamente obsessivas, em que o olho de Antonil parece medusado por aquelas engrenagens que não param nunca de rodar, vislumbra-se rápida a imagem de uma negra 'boçal' que, vencida de sono ou emborrachada, 'passa moída entre os eixos'. A escrava distraída escapa, às vezes, se intervém a tempo a mão prestante da companheira que lhe corta o braço com um facão, caso o feitor prevenido não se tenha esquecido de encostá-lo junto à moenda para evitar o pior."

    Após este excerto da análise do professor Bosi (e aqui sugere-se a leitura do Dialética da Colonização), vamos lançar o olhar sobre o texto que era o objetivo inicial desta postagem, escrito pelo Pe. Antonil há mais de três séculos. Ele compõe a parte XII do Livro II de sua obra Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas. Nunca uma mercadoria havia sido tão humanizada, mas infelizmente, à expensas da total destruição do real sujeito da história, como comentado anteriormente.

     "Do que padece o açúcar desde o seu nascimento na cana, até sair do Brasil"

     É reparo singular dos que contemplam as cousas naturais ver que as que são de maior proveito do gênero humano não se reduzem à sua perfeição sem passarem primeiro por notáveis apertos; isto se vê bem na Europa no pano de linho, no pão, no azeite e no vinho, frutos da terra tão necessários, enterrados, arrastados, pisados, espremidos e moídos antes de chegarem a ser perfeitamente o que são. E nós muito mais o vemos na fábrica do açúcar, o qual, desde o primeiro instante de se plantar, até chegar às mesas e passar entre os dentes a sepultar-se no estômago dos que o comem, leva uma vida cheia de tais e tantos martírios que os que inventaram os tiranos lhes não ganham vantagem. Porque se a terra, obedecendo ao império do Criador, deu liberalmente a cana para regalar com a sua doçura aos paladares dos homens, estes, desejosos de multiplicar em si deleites e gostos, inventaram contra a mesma cana, com seus artifícios, mais de cem instrumentos para lhe multiplicarem tormentos e penas. Por isso, primeiramente fazem em pedaços as que plantam e as sepultam assim cortadas na terra. Mas, tornando logo quase milagrosamente a ressuscitar, que não padecem dos que a vêem sair com novo alento e vigor? Já abocanhadas de vários animais, já pisadas das bestas, já derrubadas do vento, e alfim descabeçadas e cortadas com fouces. Saem do canavial amarradas; e, oh!, quantas vezes antes de saírem são vendidas! Levam-se, assim presas, ou nos carros ou nos barcos à vista das outras, filhas da mesma terra, como os réus, que vão algemados para a cadeia, ou para o lugar do suplício, padecendo em si confusão e dando a muitos terror. Chegadas à moenda, com que força e aperto, postas entre os eixos, são obrigadas a dar quanto têm de substância? Com que desprezo se lançam seus corpos esmagados e despedaçados ao mar? Com que impiedade se queimam sem compaixão no bagaço? Arrasta-se pelas bicas quanto humor saiu de suas veias e quanta substância tinham nos ossos; trateia-se e suspende-se na guinda, vai a ferver nas caldeiras, borrifado (para maior pena) dos negros com decoada; feito quase lama no cocho, passa à fartar às bestas e aos porcos, sai do parol escumado e se lhe imputa a bebedice dos borrachos. Quantas vezes o vão virando e agitando com escumadeiras medonhas? Quantas, depois de passado por coadores, o batem com batedeiras, experimentando ele de tacha em tacha o fogo mais veemente, às vezes quase queimado, e às vezes desafogueado algum tanto, só para que chegue a padecer mais tormentos? Crescem as bateduras nas têmperas, multiplica-se a agitação com as espátulas, deixa-se esfriar como morto nas formas, leva-se para a casa de purgar, sem terem contra ele um mínimo indício de crime, e nela chora, furado e ferido a sua tão malograda doçura. Aqui, dão-lhe com barro na cara; e, para maior ludíbrio, até as escravas lhe botam, sobre o barro sujo, as lavagens. Correm suas lágrimas por tantos rios quantas são as bicas que as recebem; e tantas são elas, que bastam para encher tanques profundos. Oh, crueldade nunca ouvida! As mesmas lágrimas do inocente se põem a ferver e a bater de novo nas tachas, as mesmas lágrimas se estilam à força de fogo em lambique; e, quanto mais chora sua sorte, então tornam a dar-lhe na cara com barro, e tornam as escravas a lançar-lhe em rosto as lavagens. Sai desta sorte do purgatório e do cárcere, tão alvo como inocente; e sobre um baixo balcão se entrega a outras mulheres, para que lhe cortem os pés com facões; e estas, não contentes de lhos cortarem, em companhia de outras escravas, armadas de toletes, folgam de lhes fazer os mesmos pés em migalhas. Daí, passa ao último teatro de seus tormentos, que é outro balcão, maior e mais alto, aonde, exposto a quem quiser maltratar, experimenta o que pode o furor de toda a gente sentida e enfadada do muito que trabalhou andando atrás dele; e, por isso, partido com quebradores, cortado com facões, despedaçado com toletes, arrastado com rodos, pisado dos pés dos negros sem compaixão, farta a crueldade de tantos algozes quantos são os que querem subir ao balcão. Examina-se por remate na balança do maior rigor o que pesa, depois de feito em migalhas; mas os seus tormentos gravíssimos, assim como não têm conta, assim não há quem possa bastantemente ponderá-los ou descrevê-los. Cuidava eu que, depois de reduzido ela a este estado tão lastimoso, o deixassem; mas vejo que, sepultado em uma caixa, não se fartam de o pisar com pilões, nem de lhe dar na cara, já feita em pó, com um pau. Pregam-no finalmente e marcam com fogo ao sepulcro em que jaz; e, assim pregado e sepultado, torna por muitas vezes a ser vendido e revendido, preso, confiscado e arrastado; e, se livra das prisões do porto, não livra das tormentas do mar, nem do degredo, com imposições e tributos, tão seguro de ser comprado e vendido entre cristãos como arriscado a ser levado para Argel entre mouros. E, ainda assim, sempre doce e vencedor de amarguras, vai a dar gosto ao paladar dos seus inimigos nos banquetes, saúde nas mezinhas aos enfermos e grandes lucros aos senhores de engenho e aos lavradores que o perseguiram e aos mercadores que o compraram e o levaram degradado nos portos e muito maiores emolumentos à Fazenda Real nas alfândegas.