segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Meio milênio da fúria de Orlando

Em 2016 comemoramos os quinhentos anos da primeira edição de Orlando Furioso, poema épico de Ludovico Ariosto. Segundo o escritor Ítalo Calvino [1], "Orlando furioso é um poema que se recusa a começar e se recusa a acabar. Recusa-se a começar porque se apresenta como a continuação de um outro poema, Orlando innamorato, de Matteo Maria Boiardo, interrompido pela morte do autor. E se recusa a acabar porque Ariosto não para nunca de trabalhar dentro de nós. Após tê-lo publicado em sua primeira edição de 1516, em quarenta cantos, procura fazê-lo crescer, inicialmente tentando dar-lhe uma sequência, que foi truncada (os chamados Cinque canti, publicados postumamente), depois inserindo novos episódios nos cantos centrais, de modo que na terceira e definitiva edição, que é de 1532, os cantos passaram a ser 46. Nesse meio tempo, houve uma edição de 1521, que testemunha outro modo de não se considerar o poema definitivo, isto é, a limpeza, o ajuste da  língua e da versificação, que Ariosto continua a buscar. Por toda a vida, poderíamos dizer, pois para chegar à primeira edição de 1516, Ariosto havia trabalhado doze anos e outros dezesseis sofre para publicar a edição de 1532 e, no ano seguinte, morre."

No Brasil, uma bela e cuidadosa tradução foi realizada pelo Prof. Pedro Garcez Ghirardi, da Universidade de São Paulo. Para comemorar a efeméride, reproduzimos parte dos comentários do Prof. Ghirardi no qual ele discorre sobre alguns aspectos de sua transcriação [2]:

"Orlando Furioso opera a desconstrução (como hoje dizemos) de supostas 'racionalidades absolutas', a serviço de poderes também absolutos. Bem por isso o poeta começa pela autocrítica. Quem canta as aventuras de Orlando Furioso é alguém que desconfia de seu próprio juízo, que se confessa talvez tão perturbado quanto Orlando (cf. I,2; XXIV, 3). Daqui nasce o socrático sorriso com que o poeta desmascara um establishment que condena as dissidências ao 'politicamente correto' do tempo (dissidências rotuladas de 'traições', 'crimes de lesa-majestade', 'heresias' – enfim, 'loucuras'). O espaço dado pelo poema ao discurso marginal pode notar-se já nas figuras centrais, que não vêm do mundo clássico, predominante na cultura renascentista, mas sim do mundo fantástico medieval, que resistia nas narrativas populares. Este, aliás, foi um dos sinais da 'loucura' do poema, segundo retóricos aristotélicos da época. Foi também um dos segredos de sua imediata popularidade. Outro segredo terá sido a abertura à visão alternativa, 'feminina'. Desde cedo inúmeras leitoras se reconheceram nas mulheres do Orlando Furioso.

O que se acaba de dizer pode talvez sintetizar-se em uma das páginas mais famosas do poema, a viagem à lua. O episódio mostra-nos no relevo lunar montanhas feitas das coisas que perdemos cá na terra. Tudo lá se encontra, menos o que entre nós nunca se extravia. Vale ao menos ler uma das estrofes (XXXIV, 18):

Lungo sarà, se tutte in verso ordisco 
le cose che gli fur quivi dimostre; 
che dopo mille e mille io non finisco, 
e vi son tutte le occurrenze nostre; 
sol la pacía non v`è poca né assai; 
che sta qua giú, né se ne parte mai.

Ou, em tradução: 

Outras coisas que viu, mui numerosas, 
Pedem tempo que o verso meu não dura, 
Pois lá encontrou, guardadas e copiosas, 
Mil coisas de que andamos à procura. 
Só de loucura não viu muito ou pouco, 
Que ela não sai de nosso mundo louco.

(...)

Das inúmeras surpresas que se oferecem na organização das rimas do Orlando Furioso, lembremos ainda a que se encontra no canto seguinte (X, 76). Prepara-se a revista das forças inglesas e escocesas prontas a socorrer o exército de Carlos Magno. Cria-se na descrição uma teia de variações sonoras. Temos, aparentemente, uma estrofe de rimas construídas com palavras de terminação semelhante. Qualquer afinidade, porém, se desfaz, pela diferente organização das rimas. Nos três primeiros versos pares, essas se dão entre paroxítonas com acento em vogal seguida de consoantes dobradas (ann); nos três primeiros versos ímpares a vogal é seguida de consoante simples (an), mas a rima é dominada por vogal diferente (e), na qual recai o acento da proparoxítona. Vejamos como se organiza a estrofe original:

E finita la mostra che faceano, 
alla marina si distenderanno, 
dove aspettati per solcar l´Oceano 
son dai navili che nel porto stanno. 
I Franceschi assediati si ricreano, 
sperando in questi che salvar li vanno. 
– Ma acciò tu te n´informi pienamente, 
io ti distinguerò tutta la gente.

Talvez caiba lembrar, a esta altura, o que quase todos bem sabem: em italiano as consoantes dobradas não são mera reminiscência etimológica, mas soam com nitidez na pronúncia e conservam plena relevância semântica (por exemplo, “fato”, que corresponde a “fado” ou “destino”, não se confunde com “fatto”, “feito”). Estamos, portanto, diante de uma estrofe que imporá ao tradutor, qualquer que seja seu idioma, dificuldades graves de equivalência sonora; em algumas línguas, que não contam com proparoxítonas (como o francês) a perda possivelmente será total; em outras, como a nossa, a perda será menor, mas não foi possível reproduzir na tradução o jogo entre sonoridades consonantais simples e dobradas. Já têm dito os estudiosos que qualquer tradução implica perdas e ganhos. Diante disso, resta procurar reduzir as perdas, preservando o tecido de alternâncias de sons próximos, com diferença de tonicidades. Foi o que assim se procurou fazer:

Depois de terem desfilado, impávidos, 
À praia irão e às naves, precavidos. 
Os lenhos sulcarão as águas, grávidos 
Destes que por exímios são havidos. 
Folgam os assediados francos, ávidos 
De verem seus domínios reavidos. 
– Mas por que disto saibas plenamente 
nomearei, uma a uma, cada gente."

Para completar esta pequena comemoração do aniversário da obra máxima de Ariosto, homenageando os esmagados nas filas e nos ônibus - chamuscados pela solidão, pelo desamparo e pela indiferença - e aqui sobra espaço astronômico para lembrar de Sá-Carneiro, Nerval, Rimbaud, Alcides Pinto, Torquato Neto, Seixas, Zé Limeira e a multidão desarrumada, descabelada e esfarrapada que desafia o coro dos contentes, homenageando ainda todos os loucos presentes na Terra, na Lua e em outras orbes siderais, reproduzimos abaixo 24 versos do canto I de Orlando Furioso, na tradução do Prof. Pedro Ghirardi.

"          32. 
Bem  pouco anda Rinaldo, e já depara
Com seu corcel, e o vê escapar veloz.
- Oh, pára, meu Baiardo! Ouve-me, pára.
Que tua ausência é para mim atroz.
Mais ligeiro o animal porém dispara,
Do seu senhor sem atender a voz.
Em Rinaldo é razão que a ira se aloje;
Mas sigamos Angélica que foge.

           33. 
Foge por selvas lúgubres, escuras,
Por entre ermos inóspitos, selvagens,
À sua passagem movem-se, inseguras,
De Olmos, faias e azinhas as ramagens.
Repentino temor em tais agruras
A faz correr sem rumo essas paragens.
Receia, vendo sombra em vale ou monte,
Que Rinaldo a segui-la já desponte.

           34. 
Qual tímida gazela ou cabritinha
No bosque onde nasceu posta em recreio,
Ao ver que o leopardo se engalfinha
A sua mãe e lhe estraçalha o seio,
De selva em selva esconde-se, sozinha,
Trêmula de incerteza e de receio,
E a todo o abrolho passando toca,
Da cruel fera já se crê na boca."

Referências:

[1] Ítalo Calvino, Por que ler os clássicos. Companhia das Letras, 1995.
[2] P.G. Ghirardi, Traduzir Ariosto: um depoimento. Estudos Avançados 26 (76) 2012, 109-120.