terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

A mercadoria em Antonil

     Segundo estudiosos e analistas da sociedade, a mercadoria é um conceito que possui um importante papel na estrutura do pensamento de Karl Marx. Além de possuir um valor de uso e um valor de troca, a mercadoria também seria uma unidade de medida do trabalho que a criou. Aqui não é o lugar de discutir o conceito de mercadoria, além do que o autor destas linhas não tem conhecimento suficiente para fazê-lo. Este parágrafo inicial é apenas para introduzir um texto do sacerdote da Companhia de Jesus, João Antonio Andreone (algumas vezes referido como André João Antonil, ou simplesmente Antonil), que chegou ao Brasil em 1681 a convite do Pe. Antonio Vieira. Antonil viajou pelo país e captou com os olhos de um europeu deslumbrado, aspectos relacionados às riquezas de uma colônia que crescia sob a égide da mão de obra escrava. Entretanto, os escravos eram não-sujeitos, agentes de transformação que foram tornados invisíveis pela pena ágil dos relatores da história oficial, como era o caso de Antonil. 

     Apesar de Antonil - um italiano nascido em Lucca - ter produzido uma importante obra acerca do Brasil Colonial, quase foi esquecido pelas gerações posteriores. O esquecimento só não foi completo graças aos trabalhos de alguns pesquisadores como João Capistrano de Abreu e Visconde de Taunay, entre outros. Uma bela descrição de parte dos escritos do Pe. Antonil é fornecida, por sua vez, pelo Prof. Alfredo Bosi na sua obra monumental, Dialética da Colonização, no capítulo "Antonil ou as lágrimas da mercadoria". Assim, antes de apresentar o texto de Antonil, seria interessante mostrar uns poucos parágrafos de Alfredo Bosi, em particular, discutindo a maneira como Antonil conseguiu transformar os sujeitos da história (os escravos) em objetos e o objeto (a cana) em sujeito: 

     "Os escravos são os pés e as mãos dos senhores, e esta figura redutora lhes tira a integridade de atores. São construções verbais passivas e impessoais que Antonil enfileira para descrever o plantio da cana: a terra roça-se (quem a roça?), queima-se (quem o faz?), alimpa-se (quem?). Que a  cana não se abafe; que se plantem os olhos da cana em pé, ou que se deite em pedaços; deita-se também inteira, uma junto à outra, ponta com pé; e cobrem-se com terra moderadamente... Dirá a gramática tradicional que em todos esses casos o sujeito é a terra ou a cana; e aqui a razão formal do gramático coincide com a do economista da era mercantil. O objeto exterior ganha foros de sujeito na linguagem de Antonil. Ao mesmo tempo, o agente real (o escravo que roça, queima, alimpa, abafa, deita, cobre...) omite-se por um jogo perverso de perspectivas no qual a mercadoria é omnipresente e todo-poderosa antes mesmo de chegar ao mercado, e precisamente porque deve chegar ao mercado inteira, branca e brunida.

     Vinda a hora da safra, tampouco nos é dado ver homens inteiriços na faina do eito. 'Quando se corta a cana, se metem até doze ou dezoito foices no canavial.'  Metem-se foices a ceifar, e a metonímia do instrumento pelo trabalhador diz o que deveras importa ao olhar do autor: as canas a cortar, não os obreiros que as cortam. Depois, é preciso contar os feixes, operação de cálculo; mas como acomodá-la 'à rudeza dos escravos boçais, que não sabem contar?'.  Usando seus dedos e mãos. Dez feixes para cada dedo. Cinco dedos tem a mão: a mão vale cinquenta feixes. Duas mãos têm cem feixes. E sete mãos têm trezentos e cinquenta feixes, 'e tem por obrigação cada escravo cortar num dia trezentos e cinquenta feixes', ou seja, sete mãos.

     Atada em feixes e levada em carros de bois, bate a cana às portas da casa de moer, 'com o artifício que engenhosamente inventaram'. É a vez de uma descrição técnica minudentíssima da moenda: períodos sobre períodos articulados em torno da máquina por excelência do engenho, onde rodas de eixo dentadas se entrosam e desentrosam e reentrosam para melhor espremer a cana e extrair o sumo, o caldo, que se recolherá para ferver.

    Quase no fecho destas páginas metodicamente obsessivas, em que o olho de Antonil parece medusado por aquelas engrenagens que não param nunca de rodar, vislumbra-se rápida a imagem de uma negra 'boçal' que, vencida de sono ou emborrachada, 'passa moída entre os eixos'. A escrava distraída escapa, às vezes, se intervém a tempo a mão prestante da companheira que lhe corta o braço com um facão, caso o feitor prevenido não se tenha esquecido de encostá-lo junto à moenda para evitar o pior."

    Após este excerto da análise do professor Bosi (e aqui sugere-se a leitura do Dialética da Colonização), vamos lançar o olhar sobre o texto que era o objetivo inicial desta postagem, escrito pelo Pe. Antonil há mais de três séculos. Ele compõe a parte XII do Livro II de sua obra Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas. Nunca uma mercadoria havia sido tão humanizada, mas infelizmente, à expensas da total destruição do real sujeito da história, como comentado anteriormente.

     "Do que padece o açúcar desde o seu nascimento na cana, até sair do Brasil"

     É reparo singular dos que contemplam as cousas naturais ver que as que são de maior proveito do gênero humano não se reduzem à sua perfeição sem passarem primeiro por notáveis apertos; isto se vê bem na Europa no pano de linho, no pão, no azeite e no vinho, frutos da terra tão necessários, enterrados, arrastados, pisados, espremidos e moídos antes de chegarem a ser perfeitamente o que são. E nós muito mais o vemos na fábrica do açúcar, o qual, desde o primeiro instante de se plantar, até chegar às mesas e passar entre os dentes a sepultar-se no estômago dos que o comem, leva uma vida cheia de tais e tantos martírios que os que inventaram os tiranos lhes não ganham vantagem. Porque se a terra, obedecendo ao império do Criador, deu liberalmente a cana para regalar com a sua doçura aos paladares dos homens, estes, desejosos de multiplicar em si deleites e gostos, inventaram contra a mesma cana, com seus artifícios, mais de cem instrumentos para lhe multiplicarem tormentos e penas. Por isso, primeiramente fazem em pedaços as que plantam e as sepultam assim cortadas na terra. Mas, tornando logo quase milagrosamente a ressuscitar, que não padecem dos que a vêem sair com novo alento e vigor? Já abocanhadas de vários animais, já pisadas das bestas, já derrubadas do vento, e alfim descabeçadas e cortadas com fouces. Saem do canavial amarradas; e, oh!, quantas vezes antes de saírem são vendidas! Levam-se, assim presas, ou nos carros ou nos barcos à vista das outras, filhas da mesma terra, como os réus, que vão algemados para a cadeia, ou para o lugar do suplício, padecendo em si confusão e dando a muitos terror. Chegadas à moenda, com que força e aperto, postas entre os eixos, são obrigadas a dar quanto têm de substância? Com que desprezo se lançam seus corpos esmagados e despedaçados ao mar? Com que impiedade se queimam sem compaixão no bagaço? Arrasta-se pelas bicas quanto humor saiu de suas veias e quanta substância tinham nos ossos; trateia-se e suspende-se na guinda, vai a ferver nas caldeiras, borrifado (para maior pena) dos negros com decoada; feito quase lama no cocho, passa à fartar às bestas e aos porcos, sai do parol escumado e se lhe imputa a bebedice dos borrachos. Quantas vezes o vão virando e agitando com escumadeiras medonhas? Quantas, depois de passado por coadores, o batem com batedeiras, experimentando ele de tacha em tacha o fogo mais veemente, às vezes quase queimado, e às vezes desafogueado algum tanto, só para que chegue a padecer mais tormentos? Crescem as bateduras nas têmperas, multiplica-se a agitação com as espátulas, deixa-se esfriar como morto nas formas, leva-se para a casa de purgar, sem terem contra ele um mínimo indício de crime, e nela chora, furado e ferido a sua tão malograda doçura. Aqui, dão-lhe com barro na cara; e, para maior ludíbrio, até as escravas lhe botam, sobre o barro sujo, as lavagens. Correm suas lágrimas por tantos rios quantas são as bicas que as recebem; e tantas são elas, que bastam para encher tanques profundos. Oh, crueldade nunca ouvida! As mesmas lágrimas do inocente se põem a ferver e a bater de novo nas tachas, as mesmas lágrimas se estilam à força de fogo em lambique; e, quanto mais chora sua sorte, então tornam a dar-lhe na cara com barro, e tornam as escravas a lançar-lhe em rosto as lavagens. Sai desta sorte do purgatório e do cárcere, tão alvo como inocente; e sobre um baixo balcão se entrega a outras mulheres, para que lhe cortem os pés com facões; e estas, não contentes de lhos cortarem, em companhia de outras escravas, armadas de toletes, folgam de lhes fazer os mesmos pés em migalhas. Daí, passa ao último teatro de seus tormentos, que é outro balcão, maior e mais alto, aonde, exposto a quem quiser maltratar, experimenta o que pode o furor de toda a gente sentida e enfadada do muito que trabalhou andando atrás dele; e, por isso, partido com quebradores, cortado com facões, despedaçado com toletes, arrastado com rodos, pisado dos pés dos negros sem compaixão, farta a crueldade de tantos algozes quantos são os que querem subir ao balcão. Examina-se por remate na balança do maior rigor o que pesa, depois de feito em migalhas; mas os seus tormentos gravíssimos, assim como não têm conta, assim não há quem possa bastantemente ponderá-los ou descrevê-los. Cuidava eu que, depois de reduzido ela a este estado tão lastimoso, o deixassem; mas vejo que, sepultado em uma caixa, não se fartam de o pisar com pilões, nem de lhe dar na cara, já feita em pó, com um pau. Pregam-no finalmente e marcam com fogo ao sepulcro em que jaz; e, assim pregado e sepultado, torna por muitas vezes a ser vendido e revendido, preso, confiscado e arrastado; e, se livra das prisões do porto, não livra das tormentas do mar, nem do degredo, com imposições e tributos, tão seguro de ser comprado e vendido entre cristãos como arriscado a ser levado para Argel entre mouros. E, ainda assim, sempre doce e vencedor de amarguras, vai a dar gosto ao paladar dos seus inimigos nos banquetes, saúde nas mezinhas aos enfermos e grandes lucros aos senhores de engenho e aos lavradores que o perseguiram e aos mercadores que o compraram e o levaram degradado nos portos e muito maiores emolumentos à Fazenda Real nas alfândegas.