Segundo estudiosos e analistas da sociedade, a mercadoria é um conceito que possui um importante papel na estrutura do pensamento de Karl Marx. Além de possuir um valor de uso e um valor de troca, a mercadoria também seria uma unidade de medida do trabalho que a criou. Aqui não é o lugar de discutir o conceito de mercadoria, além do que o autor destas linhas não tem conhecimento suficiente para fazê-lo. Este parágrafo inicial é apenas para introduzir um texto do sacerdote da Companhia de Jesus, João Antonio Andreone (algumas vezes referido como André João Antonil, ou simplesmente Antonil), que chegou ao Brasil em 1681 a convite do Pe. Antonio Vieira. Antonil viajou pelo país e captou com os olhos de um europeu deslumbrado, aspectos relacionados às riquezas de uma colônia que crescia sob a égide da mão de obra escrava. Entretanto, os escravos eram não-sujeitos, agentes de transformação que foram tornados invisíveis pela pena ágil dos relatores da história oficial, como era o caso de Antonil.
Apesar de Antonil - um italiano nascido em Lucca - ter produzido uma importante obra acerca do Brasil Colonial, quase foi esquecido pelas gerações posteriores. O esquecimento só não foi completo graças aos trabalhos de alguns pesquisadores como João Capistrano de Abreu e Visconde de Taunay, entre outros. Uma bela descrição de parte dos escritos do Pe. Antonil é fornecida, por sua vez, pelo Prof. Alfredo Bosi na sua obra monumental, Dialética da Colonização, no capítulo "Antonil ou as lágrimas da mercadoria". Assim, antes de apresentar o texto de Antonil, seria interessante mostrar uns poucos parágrafos de Alfredo Bosi, em particular, discutindo a maneira como Antonil conseguiu transformar os sujeitos da história (os escravos) em objetos e o objeto (a cana) em sujeito:
Apesar de Antonil - um italiano nascido em Lucca - ter produzido uma importante obra acerca do Brasil Colonial, quase foi esquecido pelas gerações posteriores. O esquecimento só não foi completo graças aos trabalhos de alguns pesquisadores como João Capistrano de Abreu e Visconde de Taunay, entre outros. Uma bela descrição de parte dos escritos do Pe. Antonil é fornecida, por sua vez, pelo Prof. Alfredo Bosi na sua obra monumental, Dialética da Colonização, no capítulo "Antonil ou as lágrimas da mercadoria". Assim, antes de apresentar o texto de Antonil, seria interessante mostrar uns poucos parágrafos de Alfredo Bosi, em particular, discutindo a maneira como Antonil conseguiu transformar os sujeitos da história (os escravos) em objetos e o objeto (a cana) em sujeito:
"Os escravos são os pés e as mãos dos senhores, e esta figura redutora lhes tira a integridade de atores. São construções verbais passivas e impessoais que Antonil enfileira para descrever o plantio da cana: a terra roça-se (quem a roça?), queima-se (quem o faz?), alimpa-se (quem?). Que a cana não se abafe; que se plantem os olhos da cana em pé, ou que se deite em pedaços; deita-se também inteira, uma junto à outra, ponta com pé; e cobrem-se com terra moderadamente... Dirá a gramática tradicional que em todos esses casos o sujeito é a terra ou a cana; e aqui a razão formal do gramático coincide com a do economista da era mercantil. O objeto exterior ganha foros de sujeito na linguagem de Antonil. Ao mesmo tempo, o agente real (o escravo que roça, queima, alimpa, abafa, deita, cobre...) omite-se por um jogo perverso de perspectivas no qual a mercadoria é omnipresente e todo-poderosa antes mesmo de chegar ao mercado, e precisamente porque deve chegar ao mercado inteira, branca e brunida.
Vinda a hora da safra, tampouco nos é dado ver homens inteiriços na faina do eito. 'Quando se corta a cana, se metem até doze ou dezoito foices no canavial.' Metem-se foices a ceifar, e a metonímia do instrumento pelo trabalhador diz o que deveras importa ao olhar do autor: as canas a cortar, não os obreiros que as cortam. Depois, é preciso contar os feixes, operação de cálculo; mas como acomodá-la 'à rudeza dos escravos boçais, que não sabem contar?'. Usando seus dedos e mãos. Dez feixes para cada dedo. Cinco dedos tem a mão: a mão vale cinquenta feixes. Duas mãos têm cem feixes. E sete mãos têm trezentos e cinquenta feixes, 'e tem por obrigação cada escravo cortar num dia trezentos e cinquenta feixes', ou seja, sete mãos.
Atada em feixes e levada em carros de bois, bate a cana às portas da casa de moer, 'com o artifício que engenhosamente inventaram'. É a vez de uma descrição técnica minudentíssima da moenda: períodos sobre períodos articulados em torno da máquina por excelência do engenho, onde rodas de eixo dentadas se entrosam e desentrosam e reentrosam para melhor espremer a cana e extrair o sumo, o caldo, que se recolherá para ferver.
Quase no fecho destas páginas metodicamente obsessivas, em que o olho de Antonil parece medusado por aquelas engrenagens que não param nunca de rodar, vislumbra-se rápida a imagem de uma negra 'boçal' que, vencida de sono ou emborrachada, 'passa moída entre os eixos'. A escrava distraída escapa, às vezes, se intervém a tempo a mão prestante da companheira que lhe corta o braço com um facão, caso o feitor prevenido não se tenha esquecido de encostá-lo junto à moenda para evitar o pior."
Após este excerto da análise do professor Bosi (e aqui sugere-se a leitura do Dialética da Colonização), vamos lançar o olhar sobre o texto que era o objetivo inicial desta postagem, escrito pelo Pe. Antonil há mais de três séculos. Ele compõe a parte XII do Livro II de sua obra Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas. Nunca uma mercadoria havia sido tão humanizada, mas infelizmente, à expensas da total destruição do real sujeito da história, como comentado anteriormente.
"Do que padece o açúcar desde o seu nascimento na cana, até sair do Brasil"