domingo, 8 de setembro de 2019

Momentos do dia

Na sexta parte de Em busca do tempo perdido, também conhecido como A Fugitiva, Albertine morre e um grande número de sentimentos invade a alma do narrador. Entre tristezas, angústias, ciúmes e nostalgia, o autor faz uma long areflexão sobre a morte de um ente amado. Há uma passagem, em particular, em que Proust relaciona momentos do dia a sentimentos relacionados a pequenos fatos do cotidiano. Na tradução de Carlos Drummond de Andrade:

"...tudo isto modificava o caráter de minha tristeza retrospectiva tanto quanto as impressões de luz ou de perfume que lhe estavam associadas, e completava cada um dos anos solares que eu tinha vivido - e que, só elas suas primaveras, suas árvores, suas brisas, já eram tão tristes por causa da lembrança inseparável dela -, duplicando-o com uma espécie de ano sentimental, em que as horas não eram definidas pela posição do sol, mas pela espera de um encontro, em que o comprimento dos dias ou os progressos da temperatura eram medidos pelo voo de minhas esperanças, pelo progresso de nossa intimidade, pela transformação progressiva do seu rosto, pelas viagens que ela fizera, pela frequência e pelo estilo das cartas que escrevera durante certa ausência, pela sua maior ou menor precipitação em me ver de volta."

Essa passagem fez-me lembrar de um texto de Ítalo Calvino em que este descreve a cidade de Zaíra. De certa forma, Calvino revisita Proust de uma maneira muito feliz na sua obra As cidades invisíveis:

"Inutilmente, magnânimo Kublai, tentarei descrever a cidade de Zaíra dos altos bastiões. Poderia falar de quantos degraus são feitas as ruas em forma de escada, da circunferência dos arcos dos pórticos, de quais lâminas de zinco são recobertos os tetos; mas sei que seria o mesmo que não dizer nada. A cidade não é feita disso, mas das relações entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos do seu passado: a distância do solo até um lampião e os pés pendentes de um usurpador enforcado: o fio esticado do lampião à balaustrada em frente e os festões que empavesavam o percurso do cortejo nupcial da rainha; a altura daquela balaustrada e o salto do adúltero que foge de madrugada; a inclinação de um canal que escoa a água das chuvas e o passo majestoso de um gato que se introduz numa janela: a linha de tiro da canhoneira que surge inesperadamente atrás do cabo e a bomba que destrói o canal; os rasgos nas redes de pesca e os três velhos remendando as redes que, sentados no molhe, contam pela milésima vez a história da canhoneira do usurpador, que dizem ser o filho ilegítimo da rainha, abandonado de cueiro ali sobre o molhe."