segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Do alto do morro

Do alto do morro eu consegui ver todo o bairro, silencioso, um silêncio falso pois o drama de milhares de pessoas ali se desenrolava. Numa casa daquelas, que minha visão fitava apenas na direção aproximada, estava uma vida bastante particular. Mas a pessoa, com certeza, neste momento nem desconfiava que a casa onde morava era procurada por uma vista meio desiludida, meio conformada.

A ambiguidade da realidade é algo surpreendente. Como a figura no meio da plantação no 'Nosferatu' do Murnau; à princípio pensamos que é uma pessoa ou mesmo um fantasma, quando na verdade trata-se de um espantalho.

Quando retornei à casa observei a novidade do meu rádio empoeirado que nunca mais tocara nenhuma música e que servia apenas como guarda-cartas, com envelopes e páginas escritas jogadas sobre ele. Para aquelas folhas riscadas não houvera resposta. E num instante mágico eu retornei em pensamento ao alto do morro e consegui ver toda a minha ambiguidade: a coragem do sonho e o meu silêncio. Teria sido surpreendente chegar à casa da minha amiga e, sem rodeios, dizê-la: "vim porque estava morrendo de saudade". Ela então, recuperada da pequena surpresa, abriria um sorriso e diria: "que bom".

30/10/1994

Pequeno reboco amarelo

Há poucos dias li na "A Prisioneira" de Proust, uma passagem impressionante. Resumidamente, a passagem é  mais ou menos o seguinte: um escritor está muito doente e lê num jornal a crítica sobre a exposição de um pintor holandês falecido, pouco famoso, autor de uma obra que ele, o escritor, achava tratar-se de uma obra-prima e pensava conhecê-la em todos os detalhes. O crítico do jornal falava exatamente desta obra e dizia da beleza de "um pequeno pedaço de reboco amarelo no muro". Então o escritor doente dizia: "nunca vi este detalhe". E sai, desesperado, para o museu. Ao chegar quase agonizante em frente ao quadro que ele pensava conhecer perfeitamente, observa pela primeira vez alguns pequenos personagens em azul, que a areia era rósea e, finalmente, "a matéria preciosa do minúsculo reboco do muro amarelo". E então o escritor pensa neste instante que era assim que ele deveria ter escrito, que deveria ter construído frases preciosas em si mesmas, como aquele pequeno reboco no muro amarelo. O narrador deixa o escritor de lado e se pergunta: o que faz uma pessoa recomeçar vinte vezes uma coisa que produzirá uma admiração futura tão insignificante para o seu corpo já devorado pelos vermes, como aquele pequeno reboco de muro amarelo pintado com tanta sabedoria e delicadeza por um artista para sempre desconhecido?

Junho/1994.