sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Relato de um ano

"FHC, desde 1991, pelo menos, optou claramente por este projeto de modernização neoliberal e por um bloco de sustentação de centro-direita. Neste sentido, segundo nos relata a experiência, optou por uma estratégia sócio-econômica que tem gerado ou aprofundado os níveis preexistentes de desigualdade e exclusão social. E além disso, para culminar, também optou por levar à frente este projeto anti-social e quase sempre autoritário através de uma coalizão política que foi sempre autoritária e que já logrou forjar, antes e durante a era desenvolvimentista, esta nossa sociedade que ocupa hoje o penúltimo lugar mundial em termos de concentração de renda. Neste sentido é que se pode concluir, sem ofender a lógica, que FHC realmente aderiu a um projeto de aggiornamento do autoritarismo anti-social de nossas elites".
José Luís Fiori, in FSP, 03/07/1994; reproduzido em 'Os moedeiros falsos', Ed. Vozes (1997).



Em 2016 houve um golpe de estado no Brasil. O objetivo, como analisado por vários sociólogos e cientistas sociais, foi dar um freio nos avanços sociais, liberar a exploração do petróleo do pré-sal para as empresas estrangeiras, flexibilizar as leis trabalhistas ao extremo, criar leis para transferir dinheiro público para empresas privadas [a anti-privatização, como a transferência de quase R$ 100 bi às empresas telefônicas] e, ainda, como objetivo marginal, livrar diversos políticos das mãos da justiça. Numa visão mais ampla, podemos dizer que o golpe foi perpetrado pelos sabujos do sistema capitalista (meios de comunicação, federações de indústrias e bancos, Ordem dos Advogados do Brasil, legislativo federal, judiciário, etc.) no seu objetivo explícito desenfreado de obrigar os indivíduos a trabalharem mais e, ao mesmo tempo, diminuindo os postos de emprego. Talvez seja uma simplificação dizer que a elite e a classe média – com a destruição dos programas sociais implantados por Lula e Dilma e o aumento do desemprego – se aprazem ao verem novamente as ruas cheias de mendigos, pedintes e trabalhadores informais. De qualquer forma a miséria que retorna às ruas é reflexo da realidade de uma sociedade secularmente caracterizada pela exclusão. No futuro, certamente, os especialista terão oportunidade de discutir este golpe de estado sob a luz do capital, da mercadoria e de suas aventuras através de um complexo sistema de propina e corrupção envolvendo diversos setores da sociedade brasileira.

Para resumir os principais fatos relativos ao golpe de estado de 2016, não assumindo o discurso conveniente da classe dominante, segue um breve relato.

1. Divulgação do telefonema entre Sergio Machado e Romero Jucá dizendo que a única forma de estancar a sangria da operação ‘Lava Jato’ era destituir a Dilma, num grande acordo nacional, "com o Supremo, com tudo".

2. Em 23/03 o juiz da Lava Jato, Sergio Moro, decreta sigilo de listão da Odobrecht e em 18/04 a Câmara - repleta de denunciados - aceita o pedido de impedimento da Presidenta Dilma Roussef.

3. Juiz Moro divulga através da Globo, áudio entre Dilma e Lula, para insinuar que estavam cometendo crime. Na verdade, segundo muitos juristas, o juiz de primeira instância e a Globo é que cometeram crime contra a Segurança Nacional.

4. Juiz do STF Teori Zavascki procrastina por vários meses o julgamento do acusado pelo Ministério Público da Suiça, Eduardo Cunha, de ter várias contas naquele país. Por causa da morosidade do Teori...

5. Cunha coloca em votação na Câmara o pedido de impedimento da presidenta da República, o que ensejou a ocorrência de um dos espetáculos mais deprimentes daquela casa.

6. Após o Senado Federal aceitar o pedido de impedimento de Dilma, Temer assume temporariamente como presidente, com vários ministros com diversas acusações de corrupção pesando sobre eles. Ao longo dos meses muitos deles cairão.

7. Senado vota definitivamente pelo impedimento da Presidenta Dilma em virtude de "pedaladas fiscais", cujos técnicos da própria casa confirmaram que não se tratavam de crime de responsabilidade. No julgamento, Dilma respondeu por 14 horas os questionamentos de diversos senadores que mais tarde, seriam desmascarados como tnedo recebido propina da construtura Odebrecht.

8. Vários escândalos se sucedem no executivo encabeçado por Temer, como o uso por vários de seus ministros para tratar de assuntos particulares, dos aviões da FAB. Destaque para o ministro da Justiça Alexandre de Moraes.

9. Divulgação por parte do Ministro da Cultura, Calero, que o Ministro articulador político de Temer, Geddel Vieira Lima, o pressionou para liberar - através de intervenção do IPHAN, uma obra que estava embargada pelo órgão e que Geddel tinha interesse (na verdade, um apartamento num prédio a ser construído em área proibida). Posterior pressão de Temer sobre o Ministro da Cultura, que pediu exoneração.

10. Nesse meio termo, divulgação de várias delações envolvendo nomes de políticos do PSDB, embora a operação Lava Jato sempre tenha se fingido de cega, surda e muda (Alckmin, 2 mi; Serra, 23 mi, etc.).

11. Divulgação do projeto do executivo (PEC55) que congela investimentos federais em várias áreas, incluindo educação e saúde. E ao mesmo tempo nenhuma medida para diminuir o rentismo dos bancos e a sonegação bilionária de industriais, banqueiros, etc.

12. Divulgação de cópia de cheque de R$ 1 milhão para Michel Temer dado pela Odebrecht em 2014.

13. Divulgação de um projeto do executivo relacionado à reforma do Ensino Médio que, entre outros pontos polêmicos, acaba com as disciplinas de Sociologia e de Filosofia.

14. Divulgação de um projeto da Presidência que prevê idade mínima de 65 anos para aposentadoria e 49 anos de contribuição previdenciária.

15. Ministro do STF, Marco Aurelio Mello, em decisão liminar, afasta da presidência do Senado, Renan Calheiros. Este se recusa a receber a notificação e despreza a decisão. No dia seguinte, o pleno do STF, se desmoralizando de forma definitiva, vota pela permanência de Renan na presidência do Senado, mas o tirando da linha sucessória da presidência da República. Desta forma, o referido senador poderá colocar em votação a PEC55. Nunca o casuísmo havia alcançado tão altos vôos no STF.

16. Festa de entrega do título do Homem do Ano à Temer pela Revista IstoÉ. Nela, uma foto do juiz Moro aos risos com o megadelatado recebedor de propina, Aécio Neves, viraliza na internet. Numa palestra dias depois na Alemanha, Moro diz que a foto fora "infeliz".

17. Um dia após Moro se defender de que não havia nada contra Aécio, é divulgada lista de diretor da Odebrecht mostrando os nomes e codinomes de dezenas de políticos que receberam dinheiro da empreiteira. Todos os caciques do PMDB e do PSDB lá estão (incluindo Aécio). Detalhe: a delação foi um acordo com o MP suíço.

18. A PEC55, que congela os investimentos em Educação e em Saúde durante 20 anos, é aprovada no dia 13/12, exatamente 48 anos após ser promulgado o AI-5.

19. Em delação, Marcelo Odebrecht confirma denúncia de outros diretores da empresa, em particular que José Yunes, assessor especial de Temer na Presidência, foi o intermediário do recebimento de parte dos R$ 10 milhões dados pela companhia. Yunes entregou o cargo em 14/12.

20. O presidente usurpador resolve privatizar inversamente as empresas de telecomunicação, doando 100 bilhões de reais às mesmas. E coroando todo o retrocesso do ponto de vista da classe trabalho ocorreram a reforma do sistema previdenciário, com exigência de 49 anos de contribuição para aposentadoria integral; reforma trabalhista, com flexibilização extraordinária das leis trabalhistas; liberação da exploração do pré-sal para empresas estrangeiras e muitos outros mimos para o capital internacional.

21. No apagar das luzes dos trabalhos do Congresso Nacional, no dia 20 de dezembro, a Câmara aprova, em apenas um minuto, um crédito suplementar de R$ 130 bilhões para o governo federal, ou seja, o dobro de 'pedaladas' que fizeram com que essa mesma Câmara votasse o impedimento de uma presidenta eleita com mais de 54 milhões de votos. Nunca antes na história deste país a hipocrisia reinou de forma tão soberana.



segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Meio milênio da fúria de Orlando

Em 2016 comemoramos os quinhentos anos da primeira edição de Orlando Furioso, poema épico de Ludovico Ariosto. Segundo o escritor Ítalo Calvino [1], "Orlando furioso é um poema que se recusa a começar e se recusa a acabar. Recusa-se a começar porque se apresenta como a continuação de um outro poema, Orlando innamorato, de Matteo Maria Boiardo, interrompido pela morte do autor. E se recusa a acabar porque Ariosto não para nunca de trabalhar dentro de nós. Após tê-lo publicado em sua primeira edição de 1516, em quarenta cantos, procura fazê-lo crescer, inicialmente tentando dar-lhe uma sequência, que foi truncada (os chamados Cinque canti, publicados postumamente), depois inserindo novos episódios nos cantos centrais, de modo que na terceira e definitiva edição, que é de 1532, os cantos passaram a ser 46. Nesse meio tempo, houve uma edição de 1521, que testemunha outro modo de não se considerar o poema definitivo, isto é, a limpeza, o ajuste da  língua e da versificação, que Ariosto continua a buscar. Por toda a vida, poderíamos dizer, pois para chegar à primeira edição de 1516, Ariosto havia trabalhado doze anos e outros dezesseis sofre para publicar a edição de 1532 e, no ano seguinte, morre."

No Brasil, uma bela e cuidadosa tradução foi realizada pelo Prof. Pedro Garcez Ghirardi, da Universidade de São Paulo. Para comemorar a efeméride, reproduzimos parte dos comentários do Prof. Ghirardi no qual ele discorre sobre alguns aspectos de sua transcriação [2]:

"Orlando Furioso opera a desconstrução (como hoje dizemos) de supostas 'racionalidades absolutas', a serviço de poderes também absolutos. Bem por isso o poeta começa pela autocrítica. Quem canta as aventuras de Orlando Furioso é alguém que desconfia de seu próprio juízo, que se confessa talvez tão perturbado quanto Orlando (cf. I,2; XXIV, 3). Daqui nasce o socrático sorriso com que o poeta desmascara um establishment que condena as dissidências ao 'politicamente correto' do tempo (dissidências rotuladas de 'traições', 'crimes de lesa-majestade', 'heresias' – enfim, 'loucuras'). O espaço dado pelo poema ao discurso marginal pode notar-se já nas figuras centrais, que não vêm do mundo clássico, predominante na cultura renascentista, mas sim do mundo fantástico medieval, que resistia nas narrativas populares. Este, aliás, foi um dos sinais da 'loucura' do poema, segundo retóricos aristotélicos da época. Foi também um dos segredos de sua imediata popularidade. Outro segredo terá sido a abertura à visão alternativa, 'feminina'. Desde cedo inúmeras leitoras se reconheceram nas mulheres do Orlando Furioso.

O que se acaba de dizer pode talvez sintetizar-se em uma das páginas mais famosas do poema, a viagem à lua. O episódio mostra-nos no relevo lunar montanhas feitas das coisas que perdemos cá na terra. Tudo lá se encontra, menos o que entre nós nunca se extravia. Vale ao menos ler uma das estrofes (XXXIV, 18):

Lungo sarà, se tutte in verso ordisco 
le cose che gli fur quivi dimostre; 
che dopo mille e mille io non finisco, 
e vi son tutte le occurrenze nostre; 
sol la pacía non v`è poca né assai; 
che sta qua giú, né se ne parte mai.

Ou, em tradução: 

Outras coisas que viu, mui numerosas, 
Pedem tempo que o verso meu não dura, 
Pois lá encontrou, guardadas e copiosas, 
Mil coisas de que andamos à procura. 
Só de loucura não viu muito ou pouco, 
Que ela não sai de nosso mundo louco.

(...)

Das inúmeras surpresas que se oferecem na organização das rimas do Orlando Furioso, lembremos ainda a que se encontra no canto seguinte (X, 76). Prepara-se a revista das forças inglesas e escocesas prontas a socorrer o exército de Carlos Magno. Cria-se na descrição uma teia de variações sonoras. Temos, aparentemente, uma estrofe de rimas construídas com palavras de terminação semelhante. Qualquer afinidade, porém, se desfaz, pela diferente organização das rimas. Nos três primeiros versos pares, essas se dão entre paroxítonas com acento em vogal seguida de consoantes dobradas (ann); nos três primeiros versos ímpares a vogal é seguida de consoante simples (an), mas a rima é dominada por vogal diferente (e), na qual recai o acento da proparoxítona. Vejamos como se organiza a estrofe original:

E finita la mostra che faceano, 
alla marina si distenderanno, 
dove aspettati per solcar l´Oceano 
son dai navili che nel porto stanno. 
I Franceschi assediati si ricreano, 
sperando in questi che salvar li vanno. 
– Ma acciò tu te n´informi pienamente, 
io ti distinguerò tutta la gente.

Talvez caiba lembrar, a esta altura, o que quase todos bem sabem: em italiano as consoantes dobradas não são mera reminiscência etimológica, mas soam com nitidez na pronúncia e conservam plena relevância semântica (por exemplo, “fato”, que corresponde a “fado” ou “destino”, não se confunde com “fatto”, “feito”). Estamos, portanto, diante de uma estrofe que imporá ao tradutor, qualquer que seja seu idioma, dificuldades graves de equivalência sonora; em algumas línguas, que não contam com proparoxítonas (como o francês) a perda possivelmente será total; em outras, como a nossa, a perda será menor, mas não foi possível reproduzir na tradução o jogo entre sonoridades consonantais simples e dobradas. Já têm dito os estudiosos que qualquer tradução implica perdas e ganhos. Diante disso, resta procurar reduzir as perdas, preservando o tecido de alternâncias de sons próximos, com diferença de tonicidades. Foi o que assim se procurou fazer:

Depois de terem desfilado, impávidos, 
À praia irão e às naves, precavidos. 
Os lenhos sulcarão as águas, grávidos 
Destes que por exímios são havidos. 
Folgam os assediados francos, ávidos 
De verem seus domínios reavidos. 
– Mas por que disto saibas plenamente 
nomearei, uma a uma, cada gente."

Para completar esta pequena comemoração do aniversário da obra máxima de Ariosto, homenageando os esmagados nas filas e nos ônibus - chamuscados pela solidão, pelo desamparo e pela indiferença - e aqui sobra espaço astronômico para lembrar de Sá-Carneiro, Nerval, Rimbaud, Alcides Pinto, Torquato Neto, Seixas, Zé Limeira e a multidão desarrumada, descabelada e esfarrapada que desafia o coro dos contentes, homenageando ainda todos os loucos presentes na Terra, na Lua e em outras orbes siderais, reproduzimos abaixo 24 versos do canto I de Orlando Furioso, na tradução do Prof. Pedro Ghirardi.

"          32. 
Bem  pouco anda Rinaldo, e já depara
Com seu corcel, e o vê escapar veloz.
- Oh, pára, meu Baiardo! Ouve-me, pára.
Que tua ausência é para mim atroz.
Mais ligeiro o animal porém dispara,
Do seu senhor sem atender a voz.
Em Rinaldo é razão que a ira se aloje;
Mas sigamos Angélica que foge.

           33. 
Foge por selvas lúgubres, escuras,
Por entre ermos inóspitos, selvagens,
À sua passagem movem-se, inseguras,
De Olmos, faias e azinhas as ramagens.
Repentino temor em tais agruras
A faz correr sem rumo essas paragens.
Receia, vendo sombra em vale ou monte,
Que Rinaldo a segui-la já desponte.

           34. 
Qual tímida gazela ou cabritinha
No bosque onde nasceu posta em recreio,
Ao ver que o leopardo se engalfinha
A sua mãe e lhe estraçalha o seio,
De selva em selva esconde-se, sozinha,
Trêmula de incerteza e de receio,
E a todo o abrolho passando toca,
Da cruel fera já se crê na boca."

Referências:

[1] Ítalo Calvino, Por que ler os clássicos. Companhia das Letras, 1995.
[2] P.G. Ghirardi, Traduzir Ariosto: um depoimento. Estudos Avançados 26 (76) 2012, 109-120.

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

O acadêmico orgulhoso

Há pouco mais de uma semana um docente aposentado de uma universidade paulista fez um comentário numa rede social que produziu certa polêmica. O professor expressou a sua satisfação pelo fato de uma estudante na cidade de São Paulo ter ficado parcialmente cega em virtude de estilhaços de uma bomba arremessada pela polícia durante uma manifestação. Acredito que devem existir dezenas de razões para um professor emitir publicamente uma tal opinião. Mas... 

Chocado com a declaração, deparei-me novamente com uma passagem de Sodoma e Gomorra, a quarta parte do romance "Em busca do tempo perdido" de Marcel Proust. Nesse pequeno trecho, o narrador faz um comentário sobre um acadêmico que não cabia em si de orgulho por fazer parte de um salão que ele julgava o de mais alto padrão entre os ambientes burgueses apenas por eventualmente receber um aristocrata, mas que na verdade não passava de um local inexpressivo, composto por um pequeno grupo de pessoas medíocres que se sentiam gigantes ao bajular ricos burgueses e aristocratas decadentes. Outro incrível instantâneo da realidade na tradução de Mário Quintana:

"Mas Brichot tirava de sua intimidade com os Verdurin um brilho que o distinguia entre todos os seus colegas da Sorbonne. Ficavam eles deslumbrados com a narrativa que ele lhes fazia de jantares a que jamais seriam convidados, com a menção nas revistas ou o retrato exposto no salão, que dele tinham feito este escritor ou aquele pintor famosos, cujo talento prezavam mas de quem não tinham a mínima possibilidade de chamar a atenção, e enfim, com a própria elegância indumentária do filósofo mundano, elegância que haviam tomado a princípio por displicência, até que seu colega benevolamente lhes explicasse que fica bem pousar a cartola no chão durante uma visita e não é própria para os jantares no campo, por mais elegantes que sejam, em que deve ser substituída pelo chapéu mole, que assenta muito bem com o smoking".

quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Mais um golpe

No dia de hoje, 31/08/2016, em que mais um golpe de estado é consumado no país, pequeno poema de Vladimir Maiakovski, numa tradução de E. Carrera Guerra.

E então, que quereis?

Fiz ranger as folhas de jornal
abrindo-lhes as pálpebras piscantes.
E logo
de cada fronteira distante
subiu um cheiro de pólvora
perseguindo-me até em casa.
Nestes últimos vinte anos
nada de novo há
no rugir das tempestades.

Não estamos alegres,
é certo,
mas também por que razão
haveríamos de ficar tristes?
O mar da história
é agitado.
As ameaças
e as guerras
havemos de atravessá-las,
rompê-las ao meio,
cortando-as
como uma quilha corta
as ondas.



segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Discurso no Senado

No dia em que a presidenta do Brasil, Dilma Rousseff, fez uma defesa memorável e histórica (que reproduziremos mais abaixo) lembrei-me de algumas palavras do Prof. Alfredo Bosi no seu belo capítulo sobre o Padre Antonio Vieira no também belíssimo Dialética da Colonização. O texto é o seguinte: "No Sermão da Terceira Dominga do Advento os atos humanos ganham precedência sobre os títulos e determinam a qualidade destes. O que define o homem é o predicado, não a substância calada nas coisas. Nessa nova ontologia Vieira atribui às coisas, isto é, às realidades não humanas, o serem conhecidas por sua ''essência''; quanto aos seres humanos, porém, a sua determinação obtém-se pela ''ação'': ''[...] porque cada um é o que faz, e não é outra coisa. As cousas definem-se pela essência''. Vieira reporta-se aqui ao modo ativo ou actancial pelo qual João Batista se nomeia a si mesmo quando perguntado sobre a sua identidade: ''Eu sou a voz que clama no deserto''. Como se vê, no texto evangélico, o Batista se define pelo predicado verbal que assinalava a sua ação de clamar ou pregar.'' Mas deixemos por enquanto o texto do Professor Bosi e reproduzamos o discurso histórico da presidenta Dilma Rousseff no Senado brasileiro. 

DISCURSO HISTÓRICO DE DILMA NO SENADO FEDERAL, EM 29/08/2016.

"Excelentíssimo Senhor Presidente do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski
Excelentíssimo Senhor Presidente do Senado Federal Renan Calheiros,
Excelentíssimas Senhoras Senadoras e Excelentíssimos Senhores Senadores,
Cidadãs e Cidadãos de meu amado Brasil,
No dia 1° de janeiro de 2015 assumi meu segundo mandato à Presidência da República Federativa do Brasil. Fui eleita por mais de 54 milhões de votos.
Na minha posse, assumi o compromisso de manter, defender e cumprir a Constituição, bem como o de observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil.
Ao exercer a Presidência da República respeitei fielmente o compromisso que assumi perante a nação e aos que me elegeram. E me orgulho disso. Sempre acreditei na democracia e no Estado de direito, e sempre vi na Constituição de 1988 uma das grandes conquistas do nosso povo.
Jamais atentaria contra o que acredito ou praticaria atos contrários aos interesses daqueles que me elegeram.
Nesta jornada para me defender do impeachment me aproximei mais do povo, tive oportunidade de ouvir seu reconhecimento, de receber seu carinho. Ouvi também críticas duras ao meu governo, a erros que foram cometidos e a medidas e políticas que não foram adotadas. Acolho essas críticas com humildade.
Até porque, como todos, tenho defeitos e cometo erros.
Entre os meus defeitos não está a deslealdade e a covardia. Não traio os compromissos que assumo, os princípios que defendo ou os que lutam ao meu lado. Na luta contra a ditadura, recebi no meu corpo as marcas da tortura. Amarguei por anos o sofrimento da prisão. Vi companheiros e companheiras sendo violentados, e até assassinados.
Na época, eu era muito jovem. Tinha muito a esperar da vida. Tinha medo da morte, das sequelas da tortura no meu corpo e na minha alma. Mas não cedi. Resisti. Resisti à tempestade de terror que começava a me engolir, na escuridão dos tempos amargos em que o país vivia. Não mudei de lado. Apesar de receber o peso da injustiça nos meus ombros, continuei lutando pela democracia.
Dediquei todos esses anos da minha vida à luta por uma sociedade sem ódios e intolerância. Lutei por uma sociedade livre de preconceitos e de discriminações. Lutei por uma sociedade onde não houvesse miséria ou excluídos. Lutei por um Brasil soberano, mais igual e onde houvesse justiça.
Disso tenho orgulho. Quem acredita, luta.
Aos quase setenta anos de idade, não seria agora, após ser mãe e avó, que abdicaria dos princípios que sempre me guiaram.
Exercendo a Presidência da República tenho honrado o compromisso com o meu país, com a Democracia, com o Estado de Direito. Tenho sido intransigente na defesa da honestidade na gestão da coisa pública.
Por isso, diante das acusações que contra mim são dirigidas neste processo, não posso deixar de sentir, na boca, novamente, o gosto áspero e amargo da injustiça e do arbítrio.
E por isso, como no passado, resisto.
Não esperem de mim o obsequioso silêncio dos covardes. No passado, com as armas, e hoje, com a retórica jurídica, pretendem novamente atentar contra a democracia e contra o Estado do Direito.
Se alguns rasgam o seu passado e negociam as benesses do presente, que respondam perante a sua consciência e perante a história pelos atos que praticam. A mim cabe lamentar pelo que foram e pelo que se tornaram.
E resistir. Resistir sempre. Resistir para acordar as consciências ainda adormecidas para que, juntos, finquemos o pé no terreno que está do lado certo da história, mesmo que o chão trema e ameace de novo nos engolir.
Não luto pelo meu mandato por vaidade ou por apego ao poder, como é próprio dos que não tem caráter, princípios ou utopias a conquistar. Luto pela democracia, pela verdade e pela justiça. Luto pelo povo do meu País, pelo seu bem-estar.
Muitos hoje me perguntam de onde vem a minha energia para prosseguir. Vem do que acredito. Posso olhar para trás e ver tudo o que fizemos. Olhar para a frente e ver tudo o que ainda precisamos e podemos fazer. O mais importante é que posso olhar para mim mesma e ver a face de alguém que, mesmo marcada pelo tempo, tem forças para defender suas ideias e seus direitos.
Sei que, em breve, e mais uma vez na vida, serei julgada. E é por ter a minha consciência absolutamente tranquila em relação ao que fiz, no exercício da Presidência da República que venho pessoalmente à presença dos que me julgarão. Venho para olhar diretamente nos olhos de Vossas Excelências, e dizer, com a serenidade dos que nada tem a esconder que não cometi nenhum crime de responsabilidade. Não cometi os crimes dos quais sou acusada injusta e arbitrariamente.
Hoje o Brasil, o mundo e a história nos observam e aguardam o desfecho deste processo de impeachment.
No passado da América Latina e do Brasil, sempre que interesses de setores da elite econômica e política foram feridos pelas urnas, e não existiam razões jurídicas para uma destituição legítima, conspirações eram tramadas resultando em golpes de estado.
O Presidente Getúlio Vargas, que nos legou a CLT e a defesa do patrimônio nacional, sofreu uma implacável perseguição; a hedionda trama orquestrada pela chamada “República do Galeão, que o levou ao suicídio.
O Presidente Juscelino Kubitscheck, que contruiu essa cidade, foi vítima de constantes e fracassadas tentativas de golpe, como ocorreu no episódio de Aragarças.
O presidente João Goulart, defensor da democracia, dos direitos dos trabalhadores e das Reformas de Base, superou o golpe do parlamentarismo mas foi deposto e instaurou-se a ditadura militar, em 1964. Durante 20 anos, vivemos o silêncio imposto pelo arbítrio e a democracia foi varrida de nosso País. Milhões de brasileiros lutaram e reconquistaram o direito a eleições diretas.
Hoje, mais uma vez, ao serem contrariados e feridos nas urnas os interesses de setores da elite econômica e política nos vemos diante do risco de uma ruptura democrática. Os padrões políticos dominantes no mundo repelem a violência explícita. Agora, a ruptura democrática se dá por meio da violência moral e de pretextos constitucionais para que se empreste aparência de legitimidade ao governo que assume sem o amparo das urnas. Invoca-se a Constituição para que o mundo das aparências encubra hipocritamente o mundo dos fatos.
As provas produzidas deixam claro e inconteste que as acusações contra mim dirigidas são meros pretextos, embasados por uma frágil retórica jurídica.
Nos últimos dias, novos fatos evidenciaram outro aspecto da trama que caracteriza este processo de impeachment. O autor da representação junto ao Tribunal de Contas da União que motivou as acusações discutidas nesse processo, foi reconhecido como suspeito pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal. Soube-se ainda, pelo depoimento do auditor responsável pelo parecer técnico, que ele havia ajudado a elaborar a própria representação que auditou. Fica claro o vício da parcialidade, a trama, na construção das teses por eles defendidas.
São pretextos, apenas pretextos, para derrubar, por meio de um processo de impeachment sem crime de responsabilidade, um governo legítimo, escolhido em eleição direta com a participação de 110 milhões de brasileiros e brasileiras. O governo de uma mulher que ousou ganhar duas eleições presidenciais consecutivas.
São pretextos para viabilizar um golpe na Constituição. Um golpe que, se consumado, resultará na eleição indireta de um governo usurpador.
A eleição indireta de um governo que, já na sua interinidade, não tem mulheres comandando seus ministérios, quando o povo, nas urnas, escolheu uma mulher para comandar o país. Um governo que dispensa os negros na sua composição ministerial e já revelou um profundo desprezo pelo programa escolhido pelo povo em 2014.
Fui eleita presidenta por 54 milhões e meio de votos para cumprir um programa cuja síntese está gravada nas palavras “nenhum direito a menos”.
O que está em jogo no processo de impeachment não é apenas o meu mandato. O que está em jogo é o respeito às urnas, à vontade soberana do povo brasileiro e à Constituição.
O que está em jogo são as conquistas dos últimos 13 anos: os ganhos da população, das pessoas mais pobres e da classe média; a proteção às crianças; os jovens chegando às universidades e às escolas técnicas; a valorização do salário mínimo; os médicos atendendo a população; a realização do sonho da casa própria.
O que está em jogo é o investimento em obras para garantir a convivência com a seca no semiárido, é a conclusão do sonhado e esperado projeto de integração do São Francisco. O que está em jogo é, também, a grande descoberta do Brasil, o pré-sal. O que está em jogo é a inserção soberana de nosso País no cenário internacional, pautada pela ética e pela busca de interesses comuns.
O que está em jogo é a auto-estima dos brasileiros e brasileiras, que resistiram aos ataques dos pessimistas de plantão à capacidade do País de realizar, com sucesso, a Copa do Mundo e as Olimpíadas e Paraolimpíadas.
O que está em jogo é a conquista da estabilidade, que busca o equilíbrio fiscal mas não abre mão de programas sociais para a nossa população.
O que está em jogo é o futuro do País, a oportunidade e a esperança de avançar sempre mais.
Senhoras e senhores senadores,
No presidencialismo previsto em nossa Constituição, não basta a eventual perda de maioria parlamentar para afastar um Presidente. Há que se configurar crime de responsabilidade. E está claro que não houve tal crime.
Não é legítimo, como querem os meus acusadores, afastar o chefe de Estado e de governo pelo “conjunto da obra”. Quem afasta o Presidente pelo “conjunto da obra” é o povo e, só o povo, nas eleições. E nas eleições o programa de governo vencedor não foi este agora ensaiado e desenhado pelo Governo interino e defendido pelos meus acusadores.
O que pretende o governo interino, se transmudado em efetivo, é um verdadeiro ataque às conquistas dos últimos anos.
Desvincular o piso das aposentadorias e pensões do salário mínimo será a destruição do maior instrumento de distribuição de renda do país, que é a Previdência Social. O resultado será mais pobreza, mais mortalidade infantil e a decadência dos pequenos municípios.
A revisão dos direitos e garantias sociais previstos na CLT e a proibição do saque do FGTS na demissão do trabalhador são ameaças que pairam sobre a população brasileira caso prospere o impeachment sem crime de responsabilidade.
Conquistas importantes para as mulheres, os negros e as populações LGBT estarão comprometidas pela submissão a princípios ultraconservadores.
O nosso patrimônio estará em questão, com os recursos do pré-sal, as riquezas naturais e minerárias sendo privatizadas.
A ameaça mais assustadora desse processo de impeachment sem crime de responsabilidade é congelar por inacreditáveis 20 anos todas as despesas com saúde, educação, saneamento, habitação. É impedir que, por 20 anos, mais crianças e jovens tenham acesso às escolas; que, por 20 anos, as pessoas possam ter melhor atendimento à saúde; que, por 20 anos, as famílias possam sonhar com casa própria.
Senhor Presidente Ricardo Lewandowski, Sras. e Srs. Senadores,
A verdade é que o resultado eleitoral de 2014 foi um rude golpe em setores da elite conservadora brasileira.
Desde a proclamação dos resultados eleitorais, os partidos que apoiavam o candidato derrotado nas eleições fizeram de tudo para impedir a minha posse e a estabilidade do meu governo. Disseram que as eleições haviam sido fraudadas, pediram auditoria nas urnas, impugnaram minhas contas eleitorais, e após a minha posse, buscaram de forma desmedida quaisquer fatos que pudessem justificar retoricamente um processo de impeachment.
Como é próprio das elites conservadoras e autoritárias, não viam na vontade do povo o elemento legitimador de um governo. Queriam o poder a qualquer preço.
Tudo fizeram para desestabilizar a mim e ao meu governo.
Só é possível compreender a gravidade da crise que assola o Brasil desde 2015, levando-se em consideração a instabilidade política aguda que, desde a minha reeleição, tem caracterizado o ambiente em que ocorrem o investimento e a produção de bens e serviços.
Não se procurou discutir e aprovar uma melhor proposta para o País. O que se pretendeu permanentemente foi a afirmação do “quanto pior melhor”, na busca obsessiva de se desgastar o governo, pouco importando os resultados danosos desta questionável ação política para toda a população.
A possibilidade de impeachment tornou-se assunto central da pauta política e jornalística apenas dois meses após minha reeleição, apesar da evidente improcedência dos motivos para justificar esse movimento radical.
Nesse ambiente de turbulências e incertezas, o risco político permanente provocado pelo ativismo de parcela considerável da oposição acabou sendo um elemento central para a retração do investimento e para o aprofundamento da crise econômica.
Deve ser também ressaltado que a busca do reequilíbrio fiscal, desde 2015, encontrou uma forte resistência na Câmara dos Deputados, à época presidida pelo Deputado Eduardo Cunha. Os projetos enviados pelo governo foram rejeitados, parcial ou integralmente. Pautas bombas foram apresentadas e algumas aprovadas.
As comissões permanentes da Câmara, em 2016, só funcionaram a partir do dia 5 de maio, ou seja, uma semana antes da aceitação do processo de impeachment pela Comissão do Senado Federal. Os Srs. e as Sras. Senadores sabem que o funcionamento dessas Comissões era e é absolutamente indispensável para a aprovação de matérias que interferem no cenário fiscal e encaminhar a saída da crise.
Foi criado assim o desejado ambiente de instabilidade política, propício a abertura do processo de impeachment sem crime de responsabilidade.
Sem essas ações, o Brasil certamente estaria hoje em outra situação política, econômica e fiscal.
Muitos articularam e votaram contra propostas que durante toda a vida defenderam, sem pensar nas consequências que seus gestos trariam para o país e para o povo brasileiro. Queriam aproveitar a crise econômica, porque sabiam que assim que o meu governo viesse a superá-la, sua aspiração de acesso ao poder haveria de ficar sepultada por mais um longo período.
Mas, a bem da verdade, as forças oposicionistas somente conseguiram levar adiante o seu intento quando outra poderosa força política a elas se agregou: a força política dos que queriam evitar a continuidade da “sangria” de setores da classe política brasileira, motivada pelas investigações sobre a corrupção e o desvio de dinheiro público.
É notório que durante o meu governo e o do Pr Lula foram dadas todas as condições para que estas investigações fossem realizadas. Propusemos importantes leis que dotaram os órgãos competentes de condições para investigar e punir os culpados.
Assegurei a autonomia do Ministério Público, nomeando como Procurador Geral da República o primeiro nome da lista indicado pelos próprios membros da instituição. Não permiti qualquer interferência política na atuação da Polícia Federal.
Contrariei, com essa minha postura, muitos interesses. Por isso, paguei e pago um elevado preço pessoal pela postura que tive.
Arquitetaram a minha destituição, independentemente da existência de quaisquer fatos que pudesse justificá-la perante a nossa Constituição.
Encontraram, na pessoa do ex-Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha o vértice da sua aliança golpista.
Articularam e viabilizaram a perda da maioria parlamentar do governo. Situações foram criadas, com apoio escancarado de setores da mídia, para construir o clima político necessário para a desconstituição do resultado eleitoral de 2014.
Todos sabem que este processo de impeachment foi aberto por uma “chantagem explícita” do ex-Presidente da Câmara, Eduardo Cunha, como chegou a reconhecer em declarações à imprensa um dos próprios denunciantes. Exigia aquele parlamentar que eu intercedesse para que deputados do meu partido não votassem pela abertura do seu processo de cassação.
Nunca aceitei na minha vida ameaças ou chantagens. Se não o fiz antes, não o faria na condição de Presidenta da República. É fato, porém, que não ter me curvado a esta chantagem motivou o recebimento da denúncia por crime de responsabilidade e a abertura deste d processo, sob o aplauso dos derrotados em 2014 e dos temerosos pelas investigações.
Se eu tivesse me acumpliciado com a improbidade e com o que há de pior na política brasileira, como muitos até hoje parecem não ter o menor pudor em fazê-lo, eu não correria o risco de ser condenada injustamente.
Quem se acumplicia ao imoral e ao ilícito, não tem respeitabilidade para governar o Brasil. Quem age para poupar ou adiar o julgamento de uma pessoa que é acusada de enriquecer às custas do Estado brasileiro e do povo que paga impostos, cedo ou tarde, acabará pagando perante a sociedade e a história o preço do seu descompromisso com a ética.
Todos sabem que não enriqueci no exercício de cargos públicos, que não desviei dinheiro público em meu proveito próprio, nem de meus familiares, e que não possuo contas ou imóveis no exterior. Sempre agi com absoluta probidade nos cargos públicos que ocupei ao longo da minha vida.
Curiosamente, serei julgada, por crimes que não cometi, antes do julgamento do ex-presidente da Câmara, acusado de ter praticado gravíssimos atos ilícitos e que liderou as tramas e os ardis que alavancaram as ações voltadas à minha destituição.
Ironia da história? Não, de forma nenhuma. Trata-se de uma ação deliberada que conta com o silêncio cúmplice de setores da grande mídia brasileira.
Viola-se a democracia e pune-se uma inocente. Este é o pano de fundo que marca o julgamento que será realizado pela vontade dos que lançam contra mim pretextos acusatórios infundados.
Estamos a um passo da consumação de uma grave ruptura institucional. Estamos a um passo da concretização de um verdadeiro golpe de Estado.
Senhoras e Senhores Senadores,
Vamos aos autos deste processo. Do que sou acusada? Quais foram os atentados à Constituição que cometi? Quais foram os crimes hediondos que pratiquei?
A primeira acusação refere-se à edição de três decretos de crédito suplementar sem autorização legislativa. Ao longo de todo o processo, mostramos que a edição desses decretos seguiu todas as regras legais. Respeitamos a previsão contida na Constituição, a meta definida na LDO e as autorizações estabelecidas no artigo 4° da Lei Orçamentária de 2015, aprovadas pelo Congresso Nacional.
Todas essas previsões legais foram respeitadas em relação aos 3 decretos. Eles apenas ofereceram alternativas para alocação dos mesmos limites, de empenho e financeiro, estabelecidos pelo decreto de contingenciamento, que não foram alterados. Por isso, não afetaram em nada a meta fiscal.
Ademais, desde 2014, por iniciativa do Executivo, o Congresso aprovou a inclusão, na LDO, da obrigatoriedade que qualquer crédito aberto deve ter sua execução subordinada ao decreto de contingenciamento, editado segundo as normas estabelecidas pela Lei de Responsabilidade Fiscal. E isso foi precisamente respeitado.
Não sei se por incompreensão ou por estratégia, as acusações feitas neste processo buscam atribuir a esses decretos nossos problemas fiscais. Ignoram ou escondem que os resultados fiscais negativos são consequência da desaceleração econômica e não a sua causa.
Escondem que, em 2015, com o agravamento da crise, tivemos uma expressiva queda da receita ao longo do ano – foram R$ 180 bilhões a menos que o previsto na Lei Orçamentária.
Fazem questão de ignorar que realizamos, em 2015, o maior contingenciamento de nossa história. Cobram que, quando enviei ao Congresso Nacional, em julho de 2015, o pedido de autorização para reduzir a meta fiscal, deveria ter imediatamente realizado um novo contingenciamento. Não o fiz porque segui o procedimento que não foi questionado pelo Tribunal de Contas da União ou pelo Congresso Nacional na análise das contas de 2009.
Além disso, a responsabilidade com a população justifica também nossa decisão. Se aplicássemos, em julho, o contingenciamento proposto pelos nossos acusadores cortaríamos 96% do total de recursos disponíveis para as despesas da União. Isto representaria um corte radical em todas as dotações orçamentárias dos órgãos federais. Ministérios seriam paralisados, universidades fechariam suas portas, o Mais Médicos seria interrompido, a compra de medicamentos seria prejudicada, as agências reguladoras deixariam de funcionar. Na verdade, o ano de 2015 teria, orçamentariamente, acabado em julho.
Volto a dizer: ao editar estes decretos de crédito suplementar, agi em conformidade plena com a legislação vigente. Em nenhum desses atos, o Congresso Nacional foi desrespeitado. Aliás, este foi o comportamento que adotei em meus dois mandatos.
Somente depois que assinei estes decretos é que o Tribunal de Contas da União mudou a posição que sempre teve a respeito da matéria. É importante que a população brasileira seja esclarecida sobre este ponto: os decretos foram editados em julho e agosto de 2015 e somente em outubro de 2015 o TCU aprovou a nova interpretação.
O TCU recomendou a aprovação das contas de todos os presidentes que editaram decretos idênticos aos que editei. Nunca levantaram qualquer problema técnico ou apresentaram a interpretação que passaram a ter depois que assinei estes atos.
Querem me condenar por ter assinado decretos que atendiam a demandas de diversos órgãos, inclusive do próprio Poder Judiciário, com base no mesmo procedimento adotado desde a entrada em vigor da Lei de Responsabilidade Fiscal, em 2001?
Por ter assinado decretos que somados, não implicaram, como provado nos autos, em nenhum centavo de gastos a mais para prejudicar a meta fiscal?
A segunda denúncia dirigida contra mim neste processo também é injusta e frágil. Afirma-se que o alegado atraso nos pagamentos das subvenções econômicas devidas ao Banco do Brasil, no âmbito da execução do programa de crédito rural Plano Safra, equivale a uma “operação de crédito”, o que estaria vedado pela Lei de Responsabilidade Fiscal.
Como minha defesa e várias testemunhas já relataram, a execução do Plano Safra é regida por uma lei de 1992, que atribui ao Ministério da Fazenda a competência de sua normatização, inclusive em relação à atuação do Banco do Brasil. A Presidenta da República não pratica nenhum ato em relação à execução do Plano Safra. Parece óbvio, além de juridicamente justo, que eu não seja acusada por um ato inexistente.
A controvérsia quanto a existência de operação de crédito surgiu de uma mudança de interpretação do TCU, cuja decisão definitiva foi emitida em dezembro de 2015. Novamente, há uma tentativa de dizer que cometi um crime antes da definição da tese de que haveria um crime. Uma tese que nunca havia surgido antes e que, como todas as senhoras e senhores senadores souberam em dias recentes, foi urdida especialmente para esta ocasião.
Lembro ainda a decisão recente do Ministério Público Federal, que arquivou inquérito exatamente sobre esta questão. Afirmou não caber falar em ofensa à lei de responsabilidade fiscal porque eventuais atrasos de pagamento em contratos de prestação de serviços entre a União e instituições financeiras públicas não são operações de crédito.
Insisto, senhoras senadoras e senhores senadores: não sou eu nem tampouco minha defesa que fazemos estas alegações. É o Ministério Público Federal que se recusou a dar sequência ao processo, pela inexistência de crime.
Sobre a mudança de interpretação do TCU, lembro que, ainda antes da decisão final, agi de forma preventiva. Solicitei ao Congresso Nacional a autorização para pagamento dos passivos e defini em decreto prazos de pagamento para as subvenções devidas. Em dezembro de 2015, após a decisão definitiva do TCU e com a autorização do Congresso, saldamos todos os débitos existentes.
Não é possível que não se veja aqui também o arbítrio deste processo e a injustiça também desta acusação.
Este processo de impeachment não é legítimo. Eu não atentei, em nada, em absolutamente nada contra qualquer dos dispositivos da Constituição que, como Presidenta da República, jurei cumprir. Não pratiquei ato ilícito. Está provado que não agi dolosamente em nada. Os atos praticados estavam inteiramente voltados aos interesses da sociedade. Nenhuma lesão trouxeram ao erário ou ao patrimônio público.
Volto a afirmar, como o fez a minha defesa durante todo o tempo, que este processo está marcado, do início ao fim, por um clamoroso desvio de poder.
É isto que explica a absoluta fragilidade das acusações que contra mim são dirigidas.
Tem-se afirmado que este processo de impeachment seria legítimo porque os ritos e prazos teriam sido respeitados. No entanto, para que seja feita justiça e a democracia se imponha, a forma só não basta. É necessário que o conteúdo de uma sentença também seja justo. E no caso, jamais haverá justiça na minha condenação.
Ouso dizer que em vários momentos este processo se desviou, clamorosamente, daquilo que a Constituição e os juristas denominam de “devido processo legal”.
Não há respeito ao devido processo legal quando a opinião condenatória de grande parte dos julgadores é divulgada e registrada pela grande imprensa, antes do exercício final do direito de defesa.
Não há respeito ao devido processo legal quando julgadores afirmam que a condenação não passa de uma questão de tempo, porque votarão contra mim de qualquer jeito.
Nesse caso, o direito de defesa será exercido apenas formalmente, mas não será apreciado substantivamente nos seus argumentos e nas suas provas. A forma existirá apenas para dar aparência de legitimidade ao que é ilegítimo na essência.
Senhoras e senhores senadores,
Nesses meses, me perguntaram inúmeras vezes porque eu não renunciava, para encurtar este capítulo tão difícil de minha vida.
Jamais o faria porque tenho compromisso inarredável com o Estado Democrático de Direito.
Jamais o faria porque nunca renuncio à luta.
Confesso a Vossas Excelências, no entanto, que a traição, as agressões verbais e a violência do preconceito me assombraram e, em alguns momentos, até me magoaram. Mas foram sempre superados, em muito, pela solidariedade, pelo apoio e pela disposição de luta de milhões de brasileiras e brasileiros pelo País afora. Por meio de manifestações de rua, reuniões, seminários, livros, shows, mobilizações na internet, nosso povo esbanjou criatividade e disposição para a luta contra o golpe.
As mulheres brasileiras têm sido, neste período, um esteio fundamental para minha resistência. Me cobriram de flores e me protegeram com sua solidariedade. Parceiras incansáveis de uma batalha em que a misoginia e o preconceito mostraram suas garras, as brasileiras expressaram, neste combate pela democracia e pelos direitos, sua força e resiliência. Bravas mulheres brasileiras, que tenho a honra e o dever de representar como primeira mulher Presidenta do Brasil.
Chego à última etapa desse processo comprometida com a realização de uma demanda da maioria dos brasileiros: convocá-los a decidir, nas urnas, sobre o futuro de nosso País. Diálogo, participação e voto direto e livre são as melhores armas que temos para a preservação da democracia.
Confio que as senhoras senadoras e os senhores senadores farão justiça. Tenho a consciência tranquila. Não pratiquei nenhum crime de responsabilidade. As acusações dirigidas contra mim são injustas e descabidas. Cassar em definitivo meu mandato é como me submeter a uma pena de morte política.
Este é o segundo julgamento a que sou submetida em que a democracia tem assento, junto comigo, no banco dos réus. Na primeira vez, fui condenada por um tribunal de exceção. Daquela época, além das marcas dolorosas da tortura, ficou o registro, em uma foto, da minha presença diante de meus algozes, num momento em que eu os olhava de cabeça erguida enquanto eles escondiam os rostos, com medo de serem reconhecidos e julgados pela história.
Hoje, quatro décadas depois, não há prisão ilegal, não há tortura, meus julgadores chegaram aqui pelo mesmo voto popular que me conduziu à Presidência. Tenho por todos o maior respeito, mas continuo de cabeça erguida, olhando nos olhos dos meus julgadores.
Apesar das diferenças, sofro de novo com o sentimento de injustiça e o receio de que, mais uma vez, a democracia seja condenada junto comigo. E não tenho dúvida que, também desta vez, todos nós seremos julgados pela história.
Por duas vezes vi de perto a face da morte: quando fui torturada por dias seguidos, submetida a sevícias que nos fazem duvidar da humanidade e do próprio sentido da vida; e quando uma doença grave e extremamente dolorosa poderia ter abreviado minha existência.
Hoje eu só temo a morte da democracia, pela qual muitos de nós, aqui neste plenário, lutamos com o melhor dos nossos esforços.
Reitero: respeito os meus julgadores.
Não nutro rancor por aqueles que votarão pela minha destituição.
Respeito e tenho especial apreço por aqueles que têm lutado bravamente pela minha absolvição, aos quais serei eternamente grata.
Neste momento, quero me dirigir aos senadores que, mesmo sendo de oposição a mim e ao meu governo, estão indecisos.
Lembrem-se que, no regime presidencialista e sob a égide da nossa Constituição, uma condenação política exige obrigatoriamente a ocorrência de um crime de responsabilidade, cometido dolosamente e comprovado de forma cabal.
Lembrem-se do terrível precedente que a decisão pode abrir para outros presidentes, governadores e prefeitos. Condenar sem provas substantivas. Condenar um inocente.
Faço um apelo final a todos os senadores: não aceitem um golpe que, em vez de solucionar, agravará a crise brasileira.
Peço que façam justiça a uma presidenta honesta, que jamais cometeu qualquer ato ilegal, na vida pessoal ou nas funções públicas que exerceu. Votem sem ressentimento. O que cada senador sente por mim e o que nós sentimos uns pelos outros importa menos, neste momento, do que aquilo que todos sentimos pelo país e pelo povo brasileiro.
Peço: votem contra o impeachment. Votem pela democracia.
Muito obrigada."



domingo, 31 de julho de 2016

O anjo exterminador

Quando a porta era aberta lentamente, a pessoa que sonhava observava que atrás dela só existia o negro absoluto, e sentia que de um momento para outro o anjo exterminador sairia para lhe dar cabo da vida. Era o terror absoluto que ele jamais experimentara em sua longa vida. Ao afastar-se da porta recordou-se de uma criança que recostara a cabeça sobre ela e se expressara apenas por um sorriso. Naquela época a criança ainda não sabia falar, ou falava de uma maneira meio atabalhoada. Mais tarde, no seu primeiro dia de aula... Como foi mesmo o primeiro dia de aula? Uma farda um pouco comprida, uma lancheira, um brinquedo preferido. Bem, todas as lembranças desapareceriam no momento exato em que o anjo exterminador golpeasse com a sua espada afiada. Talvez na última fração de segundo ainda desse para recordar a apreensão da realidade expressa por Marcel Proust no volume Sodoma e Gomorra, a quarta parte de Em busca do tempo perdido, na tradução de Mário Quintana:

"O contraste entre a continuação, não só da sua existência, mas da plenitude de suas forças, e o aniquilamento de tantos amigos que eu vira aqui e ali desaparecerem, me dava essa mesma sensação que experimentamos quando, nas últimas notícias dos jornais, lemos justamente a que menos esperávamos, por exemplo, a de um falecimento prematuro e que nos parece fortuito porque as causas de que ele é o desenlace nos permaneceram desconhecidas. Esse sentimento é de que a morte não atinge uniformemente a todos os homens, mas de que uma vaga mais avançada da sua maré trágica carrega uma existência situada ao nível de outras que por muito tempo ainda as vagas seguintes pouparão."

Ou, então, a passagem na qual o jovem personagem Marcel recordava da avó com o remorso por tê-la feito sofrer:

"(...) e ainda pior, eu que agora não podia conceber felicidade senão a de encontrá-la espalhada, em minha lembrança, nas linhas daquele rosto modelado e inclinado pela ternura, tinha dedicado outrora uma insensata fúria em procurar extirpar-lhe os mais pequenos prazeres, tal como no dia em que Saint-Loup tirara o retrato de minha avó e em que, tendo dificuldade em dissimular-lhe a puerilidade quase ridícula da sua coqueteria em posar com um chapéu de abas largas numa penumbra favorável, eu me deixara arrastar a uns resmungos impacientes e ofensivos que, sentira-o por uma contração da sua face, tinham atingido o alvo, tinham-na ferido; era a mim que dilaceravam, agora que era impossível para sempre o consolo de muitos e muitos beijos.

Mas jamais poderia apagar aquela contração de sua face e aquela dor de seu coração, ou antes do meu coração; pois como os mortos não mais existem a não ser em nós, é a nós mesmos que batemos sem trégua quando nos obstinamos em recordar os golpes que lhes assestamos."



quinta-feira, 30 de junho de 2016

A flor de "champa"

Nesses dias em que um usurpador brinca de ser rei, um pedaço de poesia de Tagore, para se ter um pouco de alento. A flor de 'champa'.

Tagore

Supondo, por gracejo, que eu me transformasse em uma flor de "champa" crescesse em um dos mais altos ramos da árvore, entre novos rebentos e que o vento alegre me balançasse; tu me reconhecerias, mãe?

Tu me chamarias: "Onde estás, filhinho?"

Eu riria para mim mesmo e ficaria escondido, escondido. Depois devagar eu abriria as minhas pétalas e te olharia, enquanto trabalhavas.

Quando depois do banho, os cabelos úmidos sobre as espáduas, passasses à sombra da árvore de "champa", no pátio onde dizes as tuas orações, tu sentirias o perfume da flor, mas não saberias que o perfume saía de mim.

E, quando, depois do meio-dia, tu te sentasses à janela, tendo o Ramaiana, e a sombra da árvore caísse sobre a tua cabeça e o colo, eu gostaria de projetar minha diminuta sombra na página aberta do livro que estivesses lendo.

Mas adivinharias o teu filho naquela pequeníssima sombra?

À noite, quando andasses pela vacaria, segurando a lâmpada luminosa, eu gostaria de voltar à terra, ser outra vez o teu filho e pedir-te que me contasses uma estória.

"Onde estiveste, filho mau?"

"Não quero dizer, mãe". E seria isso tudo quanto diríamos um ao outro.

sábado, 23 de abril de 2016

Hienas atacam o Brasil

O dia 17 de abril de 2016 ficará marcado para sempre pela ultrajante atitude perpetrada pela Câmara dos Deputados ao aprovar a admissibilidade de crime de responsabilidade da Presidenta Dilma Rousseff e encaminhar a análise de impedimento ao Senado Federal. A referida sessão da Câmara pode ser vista como uma peça mal escrita, encenada por atores medíocres que fremiam e tremiam no palco (Macbeth com o seu dedo em riste) enquanto vomitavam no público indisfarçáveis hipocrisias.  

Deputados reconhecidamente envolvidos em crimes de lavagem de dinheiro e desvio de verbas públicas votando contra a corrupção. Desprezíveis acompanhantes de prostitutas oferecendo votos para as esposas e os filhos. Contumazes achacadores e ladrões votando em nome de Deus e da ética. Como disse a deputada do PCdoB-AP, Professora Marcivânia, nunca se viu tanta hipocrisisa por metro quadrado quanto naquela sessão circense.

Muito foi escrito sobre aquela tarde triste. Escolhi para deixar registrado nesse blog, que apresenta textos de literatura e história, um escrito de Pepe Escobar, escrito originalmente para o Resistir.Info. O título é “Guerra híbrida das hienas dilacera o Brasil” e, com exceção do que o autor escreve sobre a Dilma gestora – que não concordo absolutamente – acredito que é um texto que mostra bem os interesses escondidos na farsa do impedimento. Isso é o que conseguimos enxergar hoje, apenas seis dias após o golpe ter sido dado.
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Guerra híbrida das hienas dilacera o Brasil 
Pepe Escobar

A sombria e repulsiva noite em que a presidente da 7ª maior economia do mundo foi a vítima escolhida para um linchamento de hienas num insípido e provinciano Circo Máximo viverá para sempre na infâmia.Por 367 votos a 137, o impeachment/golpe/mudança de regime contra Dilma Rousseff foi aprovado pelo circo parlamentar brasileiro e agora irá ao Senado, onde uma “comissão especial” será instituída. Se este for aprovado, Rousseff será então marginalizada durante 180 dias e um ordinário Brutus tropical, o vice-presidente Michel Temer, ascenderá ao poder até o veredito final do Senado.

Esta farsa desprezível deveria servir como um alerta não só aos BRICS, mas a todo o Sul Global.Quem é que precisa de NATO, R2P (“responsability to protect”) ou “rebeldes moderados” quando pode obter a sua mudança de regime apenas com o ajustamento do sistema político/judicial de um país?

O Supremo Tribunal brasileiro não analisou o mérito da questão – pelo menos ainda não.Não há qualquer evidência sólida de que Rousseff tenha cometido um “crime de responsabilidade”. Ela fez o que todo presidente norte-americano desde Reagan tem feito – para não mencionar líderes de todo o mundo: juntamente com o vice-presidente, o desprezível Brutus, Rousseff foi ligeiramente criativa com os números do orçamento federal.

O golpe foi patrocinado por um vigarista certificado, o presidente da câmara baixa Eduardo Cunha, confirmadamente possuidor de várias contas ilegais na Suíça, listado nos Panama Papers e sob investigação do Supremo Tribunal. Ao invés de reger hienas quase analfabetas num circo racista, em grande medida cripto-fascista, ele deveria estar atrás das grades. Custa crer que o Supremo Tribunal não tenha lançado ação legal contra Cunha.

O segredo do seu poder sobre o circo é um gigantesco esquema de corrupção que perdura há muitos anos, caracterizado pelas contribuições corporativas para o financiamento das suas campanhas e de outros. E aqui está a beleza de uma mudança de regime light, uma revolução colorida da Guerra Híbrida, quando encenada numa nação tão dinamicamente criativa como o Brasil. A galeria de espelhos produz um simulacro político que teria levado descontrucionistas como Jean Braudrillard e Umberto Eco, se vivos fossem, a ficarem verdes de inveja.

Um Congresso atulhado com palhaços/tolos/traidores/vigaristas, alguns dos quais investigados por corrupção, conspirou para depor uma presidente que não está sob qualquer investigação formal de corrupção – e que não cometeu qualquer “crime de responsabilidade”.

A restauração neoliberal

Ainda assim, sem um voto popular, os maciçamente rejeitados gêmeos Brutus tropicais, Temer e Cunha, descobrirão que é impossível governar, muito embora eles encarnassem perfeitamente o projeto das imensamente arrogantes e ignorantes elites brasileiras.

Um triunfo neoliberal, com a “democracia” brasileira espezinhada abaixo do chão. É impossível entender o que aconteceu no Circo Máximo neste domingo sem saber que há um rebanho de partidos políticos brasileiros que está gravemente ameaçado pelos vazamentos ininterruptos da Lava Jato.

Para assegurar a sobrevivência deles, a Lava Jato deve ser “suspensa”; e isto será feito sob a falsa “unidade nacional” proposta pelo desprezível Brutus Temer. Mas antes a Lava Jato deve produzir um escalpe ostensivo. E este tem de ser Lula na prisão – comparado ao qual a crucificação de Rousseff é uma fábula de Esopo. Os media corporativos, conduzidos pelo venenoso império Globo, saudariam isto como a vitória final — e ninguém se preocuparia com a aposentadoria da Lava Jato.

Os mais de 54 milhões que em 2014 votaram pela reeleição de Roussef votaram errado. O “projeto” global é um governo sem voto e sem povo; um sistema parlamentar de estilo brasileiro, sem aborrecimentos com “eleições” incômodas e, crucialmente, campanhas de financiamento muito “generosas” e flexibilidade que não obrigue a incriminar companhias/corporações poderosas.

Em resumo, o objetivo final é “alinhar” perfeitamente os interesses do Executivo, Legislativo, Judiciário e media corporativos. A democracia é para otários. As elites brasileiras que fazem o controle remoto das hienas sabem muito bem que se Lula concorrer outra vez em 2018, vencerá. E Lula já advertiu; ele não endossará qualquer “unidade nacional” sem sentido; estará de volta às ruas para combater qualquer governo ilegítimo que surja.

Agora estamos abertos à pilhagem

No pé em que está, Rousseff corre o risco de se tornar a primeira grande baixa da investigação Lava Jato, com origem na NSA [National Security Agency, dos Estados Unidos], que perdura há dois anos. A presidente, reconhecidamente uma gestora econômica incompetente e sem as qualificações de um político mestre, acreditou que a Lava Jato – que praticamente a impediu de governar – não a atingiria porque ela é pessoalmente honesta. Mas a agenda não tão oculta da Lava Jato foi sempre a mudança de regime.

Quem se importa se no processo o país for deixado à beira de ser controlado exatamente por muitos daqueles acusados de corrupção? O desprezível Brutus Temer – uma versão fútil de Macri da Argentina – é o condutor perfeito para a implementação da mudança de regime. Ele representa o poderoso lobby bancário, o poderoso lobby do agronegócio e a poderosa federação de indústrias do líder econômico do Brasil, o Estado de São Paulo.

O projeto neo-desenvolvimentista para a América Latina – pelo menos unindo algumas das elites locais, investindo no desenvolvimento de mercados internos, em associação com as classes trabalhadoras – agora está morto, porque o que pode ser definido como capitalismo sub-hegemônico, ou periférico, está atolado na crise após a derrocada de 2008 provocada por Wall Street.

O que resta é apenas restauração neoliberal, a TINA (“there is no alternative”). Isto implica, no caso brasileiro, a reversão selvagem do legado de Lula: políticas sociais, políticas tecnológicas, o impulso para expandir globalmente grandes companhias brasileiras competitivas, mais universidades públicas, melhores salários.

Numa mensagem à Nação, Brutus Temer admitiu isto; a “esperança” de que o pós-impeachment será absolutamente excelente para o “investimento estrangeiro”, pois lhe permitirá pilhar a colonia à vontade; um retorno à tradição histórica do Brasil desde 1500. De modo que Wall Street, o Big Oil dos EUA e os proverbiais “American interests” vencem este round no circo – graças às, mais uma vez proverbiais, elites vassalas/compradoras.

Executivos da Chevron já estão a salivar com a perspectiva de porem as mãos nas reservas de petróleo do pré sal; que já foram prometidas por um vassalo confiável, integrante da oposição brasileira. O golpe continua. As hienas reais ainda não atacaram. De modo que isto está longe de ter terminado.”


quarta-feira, 13 de abril de 2016

Praça do Ferreira em 02/04/2016

No final do século XIX e começo do século XX existiam quatro restaurantes nas quinas da praça do Ferreira. Segundo o Prof. Nirez Azevedo, no canto noroeste ficava o Café do Comércio; no canto nordeste da praça ficava o Café Java onde o pessoal da Padaria Espiritual se reunia; no canto sudoeste ficava o Restaurante Iracema, onde se encontravam os membros da Academia Rebarbativa, e no canto sudeste da praça, o Café Elegante (na verdade este foi o último a surgir, apenas em 1902). Era uma época em que os homens andavam de paletó e gravata, não necessariamente de black tie, pois o clima não permitia. Mas a praça do Ferreira era um local de encontros, de discussões, de discursos, enfim, um local onde as pessoas podiam expressar democraticamente suas opiniões.

A Bellé époque passou. Os cafés foram derrubados e nunca mais o pessoal da Padaria Espiritual caminhou pela praça. Várias reformas aconteceram durante o século XX...

Mas apesar das mudanças, as pessoas continuaram utilizando a praça como um local de encontro e de discussão. No começo do mês de abril do presente ano, 52 após o golpe militar de 1964, o país passa novamente por uma grande crise política. Trata-se da tentativa da elite brasileira e dos capitalistas da ocasião (e não os acusaria de utilizarem simultaneamente todas as formas de acumulação de riqueza como contrabando, roubo, tráfico, corrupção, empréstimos camaradas de bancos estatais, sonegação de impostos, ciranda financeira, agiotagem oficializada, jogatinas e a maravilhosa mais valia) de voltarem a comandar o país na esfera federal através de um golpe jurídico-midiático. 

Nos treze anos de presidência de Lula e Dilma, uma série de programas sociais foi implementada no país. Estes programas possuem nome e sobrenome: Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, Fies, ProUni, Pronatec, Sisu, Ciência sem Fronteiras, Programa Luz Para Todos, Samu, Mais Médicos, Rede Cegonha, Brasil Sorridente, Farmácia Popular, Pro Jovem Urbano, Brasil Conectado, Cidades Digitais, Projeto Jovem Aprendiz, Programa Água Para Todos, Brasil Sem Miséria, Aqui Tem Agricultura Familiar, Casa da Mulher Brasileira, entre outros.

Tais programas, que permitiram que, entre outros números impressionantes, 32 milhões de pessoas saíssem da miséria, e que o Brasil deixasse o mapa da fome da ONU, maltratou bastante a classe dominante do país. Através dos meios de comunicação e de parte do judiciário (isso renderá diversas dissertações e teses ao longo de várias décadas) acusou-se o ex-presidente Lula e o partido da presidenta Dilma de estarem atolados em corrupção (palavra mágica que quando gritada e cuspida pela classe média - que inadvertidamente se apropria de um discurso criado pela classe dominante - a um partido político em particular, a faz se sentir diferenciada, pura e santificada). 

Entretanto, observemos com atenção esses dados, os governos de Lula e Dilma criaram diversas ações para combater exatamente a corrupção; outros tiveram oportunidade de fazê-lo e não o fizeram. Em 2003 a Controladoria Geral da União teve seu status elevado a Ministério; em 2004 foi criado o Portal da Transparência; em 2005 foi feita a regulamentação dos Pregões Eletrônicos; em 2008 foi criado o Cadastro de Empresas Inidôneas e Suspensas (CEIS); em 2012 foi aprovada a Lei de Acesso à Informação e em 2013 foi aprovada a Lei Anticorrupção. Vários mecanismos, portanto, foram criados pelos dois presidentes visando combater um dos males que a classe dominante é useira e vezeira em participar. Talvez aí se encontre um dos grandes empecilhos à governabilidade. 

E a governabilidade começou a ser minada por pessoas que ao invés de estarem falando em acabar a "corrupção" (não tem para onde fugir, é um mantra) deveriam estar respondendo pela prática de ações bastante obscuras. Quem se informa por fontes alternativas à grande imprensa familiar tem conhecimento das off-shores de Paulo Henrique Cardoso, filho de FHC; das contas secretas de Aécio Neves e familiares em Liechteinstein; do apartamento em Miami comprado por um ex-juiz do STF através de off-shore nas Ilhas Virgens Britânicas; da mansão de Paula Azevedo Marinho, herdeira da Rede Globo, numa praia em região de preservação ambiental, adquirida também por off-shore. Essas estranhas transações estão todas documentadas. Causam indignação e textos de reprovação - como este - mas, infelizmente, podem ser considerados como filigrana num quadro bem mais complexo. Se preferirmos, podemos dizer que são apenas exemplos da hipocrisia da classe dominante e de alguns de seus representantes.

Hipocrisia que nem original chega a ser. Já no Brasil do século XVII, o padre Antonio Vieira, nos seus famosos sermões, mostrava numa retórica inigualável quão hipócritas eram os donos dos engenhos e os senhores fazendeiros que exploravam o trabalho escravo e semi-escravo durante a semana e no domingo iam ouvir a palavra de Cristo. "Se as galas, as jóias e as baixelas, ou no Reino, ou fora dele, foram adquiridas com tanta injustiça e crueldade, que o ouro e a prata derretidos, e as sedas se se espremeram, haviam de verter sangue; como se há-de ver a fé nessa falsa riqueza? Se as vossas paredes estão vestidas de preciosas tapeçarias, e os miseráveis a quem despistes para as vestir a elas, estão nus e morrendo de frio; como se há-de ver a fé, nem pintada nas vossas paredes? (...) Se as pedras da mesma casa em que viveis, desde os telhados até os alicerces estão chovendo os suores dos jornaleiros, a quem não fazíeis féria, e, se queiram buscar a vida a outra parte, os prendíeis e obrigáveis por força; como se há-de ver a fé, nem sombra dela na vossa casa?" A hipocrisia da classe dominante é uma herança.

A questão básica é que esta mesma classe dominante, além de possuir os meios de produção e os bancos, detém os meios de comunicação e o coração e a mente da maior parte do judiciário. Os exemplos que ilustram esta afirmação são muitíssimos e certamente serão exploradas pelos pesquisadores das áreas de humanas no futuro. Mas tem um caso particular que ainda hoje acho absolutamente inacreditável, o do tal juiz Sérgio Moro, que mandou grampear a conversa de um ex-presidente da República com a atual presidenta. Para ver o absurdo da situação, imaginemos um juiz de uma cidade do Wyoming ordenar a um policial do FBI o grampo de uma conversa entre o ex-presidente Bill Clinton com o atual presidente dos Estados Unidos, Barak Obama, e entregar a gravação no mesmo dia à rede ABC, ou à Fox, e elas divulgarem - participando de um crime contra a Segurança Nacional - no telejornal da noite! Isso nunca aconteceria. Nunca, never, jamais, mai... 

Como consequência, distorcem-se acontecimentos, inventam-se fatos, manipula-se descaradamente a opinião pública escondendo-se crimes que deveriam ser condenados exemplarmente. E condenam-se pessoas sem provas a troco de prêmios fajutos ou aparições ridículas em chamadas ao vivo de telejornais ou em capas de revistas sem nenhuma credibilidade. A verdade dos fatos, infelizmente, parece estar escondida no helicóptero do senador da República no qual foram encontrados os 450 kg de pasta base de cocaína e que a grande imprensa brasileira misteriosamente não noticiou.

Então de um lado há uma presidenta que aposta alto nos programas sociais e no combate à corrupção; e do outro lado há os que têm interesses exatamente antagônicos. Dilma é uma pedra no meio do caminho que precisa ser retirada de qualquer forma, até por golpe, se for preciso. Para perpetrar o golpe final na presidenta eleita com mais de 54 milhões de votos, sem nenhum crime pesando sobre ela, um sujeito condenado pelo STF recebe as bênçãos dos meios de comunicação, dos bancos, das redes de supermercados, de empresas de telefonia, da FIESP, enfim, de todos aqueles que lucram com os mecanismos bem conhecidos de enriquecimento do nosso sistema capitalista. 

Tudo parecia favas contadas. Parecia que o golpe seria inevitável. Mas durante o mês de março de 2016, duas grandes manifestações ocorreram em diversas cidades do país, uma no dia 18 e outra no dia 31, todos falando claramente que no Brasil não há mais espaço para aventuras de malandros que querem alcançar o poder de uma forma absolutamente espúria.

Chegamos, então, no início de abril de 2016 e Lula vem ao Ceará para um comício a favor da democracia e contra o golpe que parte do Congresso, que incrivelmente não está representando os interesses da maior parte da população, pretende perpetrar contra a presidenta Dilma. A acolhedora praça do Ferreira foi o local escolhido para a manifestação daqueles que acreditam no valor de ser governado por alguém que venceu uma eleição legítima através de regras democráticas previamente estabelecidas.

A chuva e a emoção na velha praça do Ferreira marcaram de forma inesquecível o segundo dia do mês de abril. Trabalhadores vindos de várias cidades do Ceará, perfazendo um total de quase 20.000 pessoas assistiram ao discurso de um Lula quase sem voz, mas com muita vontade de defender a decisão popular traduzida no mandato da presidenta Dilma. Entre várias frases, Lula expressou: "E eu às vezes fico vendo televisão, as revistas e os jornais e fico me perguntando por que tanto ódio? Será que é ódio porque a empregada doméstica passou a ter direito neste País? Porque filho de pobre negro da periferia passou a fazer universidade nesse País? Porque em apenas 12 anos geramos 22 milhões de empregos nesse País? Será que é porque durante 12 anos todos os trabalhadores organizados tiveram aumento de salário? Porque nós criamos o FIES e colocamos milhões de jovens na universidade? Por causa do Pronatec, das escolas técnicas, do programa de aquisição de alimentos, do Minha Casa Minha Vida, do Bolsa-Família, do aumento do salário mínimo? Eles precisam explicar poque tanto ódio da primeira mulher que governa este País".

O dia 02 de abril de 2016 ficou definitivamente marcado na história da praça do Ferreira e na história da cidade de Fortaleza. Foi como se as vozes de milhares, milhões de pessoas dissessem aos golpistas de todas as matizes: Não Vai Ter Golpe!




Foto da Praça do Ferreira na manhã do dia 02 de abril de 2016, quando cerca de 30.000 pessoas, juntamente com o ex-presidente Lula e vários políticos protestaram contra o golpe na presidenta Dilma Rousseff. 


Notas:
1. O texto do professor Nirez que serviu de embasamento para o início deste texto foi publicado no "folha DO CENTRO", número 42, setembro de 96.