domingo, 31 de julho de 2016

O anjo exterminador

Quando a porta era aberta lentamente, a pessoa que sonhava observava que atrás dela só existia o negro absoluto, e sentia que de um momento para outro o anjo exterminador sairia para lhe dar cabo da vida. Era o terror absoluto que ele jamais experimentara em sua longa vida. Ao afastar-se da porta recordou-se de uma criança que recostara a cabeça sobre ela e se expressara apenas por um sorriso. Naquela época a criança ainda não sabia falar, ou falava de uma maneira meio atabalhoada. Mais tarde, no seu primeiro dia de aula... Como foi mesmo o primeiro dia de aula? Uma farda um pouco comprida, uma lancheira, um brinquedo preferido. Bem, todas as lembranças desapareceriam no momento exato em que o anjo exterminador golpeasse com a sua espada afiada. Talvez na última fração de segundo ainda desse para recordar a apreensão da realidade expressa por Marcel Proust no volume Sodoma e Gomorra, a quarta parte de Em busca do tempo perdido, na tradução de Mário Quintana:

"O contraste entre a continuação, não só da sua existência, mas da plenitude de suas forças, e o aniquilamento de tantos amigos que eu vira aqui e ali desaparecerem, me dava essa mesma sensação que experimentamos quando, nas últimas notícias dos jornais, lemos justamente a que menos esperávamos, por exemplo, a de um falecimento prematuro e que nos parece fortuito porque as causas de que ele é o desenlace nos permaneceram desconhecidas. Esse sentimento é de que a morte não atinge uniformemente a todos os homens, mas de que uma vaga mais avançada da sua maré trágica carrega uma existência situada ao nível de outras que por muito tempo ainda as vagas seguintes pouparão."

Ou, então, a passagem na qual o jovem personagem Marcel recordava da avó com o remorso por tê-la feito sofrer:

"(...) e ainda pior, eu que agora não podia conceber felicidade senão a de encontrá-la espalhada, em minha lembrança, nas linhas daquele rosto modelado e inclinado pela ternura, tinha dedicado outrora uma insensata fúria em procurar extirpar-lhe os mais pequenos prazeres, tal como no dia em que Saint-Loup tirara o retrato de minha avó e em que, tendo dificuldade em dissimular-lhe a puerilidade quase ridícula da sua coqueteria em posar com um chapéu de abas largas numa penumbra favorável, eu me deixara arrastar a uns resmungos impacientes e ofensivos que, sentira-o por uma contração da sua face, tinham atingido o alvo, tinham-na ferido; era a mim que dilaceravam, agora que era impossível para sempre o consolo de muitos e muitos beijos.

Mas jamais poderia apagar aquela contração de sua face e aquela dor de seu coração, ou antes do meu coração; pois como os mortos não mais existem a não ser em nós, é a nós mesmos que batemos sem trégua quando nos obstinamos em recordar os golpes que lhes assestamos."