segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Personagens reais?

Na obra Em busca do tempo perdido, Proust consegue algumas vezes separar o personagem principal do autor da obra. Parece que você está enxergando o movimento de um personagem e, de repente, da figura ficcional se separa o autor, ou um pseudo-autor, como se os dois estivessem amalgamados e de repente eles se destacassem um do outro. Como já comentado anteriormente, há duas passagens em que o autor se confunde com o escritor e ele explica que o seu nome é Marcel. No sétimo e último volume da obra, O tempo redescoberto, na tradução de Lúcia Miguel Pereira, o autor novamente se separa do personagem. Este último está falando sobre alguns parentes de Françoise, quando de repente, afirma:

"Neste livro, onde não há um fato que não seja fictício, nem uma só personagem real, onde tudo foi inventado por mim segundo as necessidades do que pretendia demonstrar, devo declarar, em louvor de minha terra, que só os parentes milionários de Françoise, renunciando à aposentadoria para auxiliar a sobrinha desamparada, só eles são pessoas verdadeiras, só eles de fato existem."

terça-feira, 10 de novembro de 2020

Uma velha história

Uma velha história contada como se tivesse uma mensagem. Mas, não! É apenas uma velha história. 

Um homem ia por um caminho e foi assaltado. Levaram os seus bens, deram-lhe uma surra e o deixaram caído na margem da estrada. 

Por ali passou um legislador, o homem que fazia as leis da cidade e tinha um belo discurso de homem correto e amante do direito. Ele participava anualmente de todas as convenções e sempre brindava o público com ideias fabulosas de como melhorar a vida dos cidadãos. Era atencioso e tinha inclusive um programa de televisão para ajudar semanalmente alguns miseráveis. Mas o legislador olhou para o lado, viu o homem caído e simplesmente o ignorou.

Depois passou um homem religioso. Ele conhecia em detalhes o livro de sua religião e todos os seus amigos sabiam que ele gostava de fazer caridade. Ao ver o pobre infeliz jogado no caminho pensou em ajudar. Entretanto, lembrou-se que se o fizesse, a sua vida sairia da rotina, ele teria despesas adicionais e durante a recuperação, sendo um desconhecido, poderia ser bastante impertinente. Com a mente repleta desses pensamentos, o homem religioso também passou adiante.

Por fim passou um homem que dizia que não acreditava em Deus. Ao ver a pessoa caída e sangrando, apiedou-se. Deu-lhe água, o ajudou a se levantar e o levou para casa. Lá chegando, chamou um médico, alimentou o pobre homem e, junto à sua esposa, ficou ao pé da cama durante a lenta recuperação, escutando com paciência os lamentos do convalescente. 

O que podemos dizer a mais? Hoje, o homem do caminho está recuperado, o ateu continua com a sua descrença, o homem religioso fazendo caridade, o legislador fazendo belos discursos e do bando de assaltantes um foi morto, outro está preso e o último continua prescrutando o caminho. Dizem que também havia um quarto assaltante, mas que voltou para o interior e hoje trabalha com o seu pai num pequeno roçado; mas isso não foi confirmado pelo rapaz que encontra-se preso. 

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

A Minha Cantiga

O poema a seguir, A Minha Cantiga, de Rabindranath Tagore, é dedicado àquelas antigas crianças que subiam no barco que iria partir, que dormiam com o balanço da rede ouvindo a história da Chapeuzinho Vermelho repetida centenas deliciosas vezes, que assistiam ao desenho animado da Branca de Neve, que esperavam o pai para tirar uma dúvida em qualquer matéria que ele dizia invariavelmente que era a sua especialidade, que arrodeavam o estacionamento do prédio ouvindo uma história dos 'dois irmãos' e suas capas de invisibilidade. É dedicado às crianças que se divertiram tomando banho numa piscina armada no meio de um quarto e que contavam o resumo das histórias das primeiras leituras. Eis o poema:

Esta minha cantiga estende a sua música em torno de ti, meu filho, como afetuosos abraços de amor.

Esta minha cantiga passa pelo teu rosto como um beijo de bênção.

Quando estás sozinho, ela está perto de ti e murmura ao teu ouvido. Quando estás na multidão, ela te protege.

A minha canção é como as asas do teu sonho e transporta teu coração aos limites do desconhecido.

Enquanto a noite escura envolve a estrada, ela brilha sobre tua cabeça como estrela fiel.

A minha canção está na pupila dos teus olhos e leva-te longe, revelando-te o coração das coisas. E quando a minha voz estiver muda na morte, a minha cantiga ainda viverá em teu coração.