quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Tempo de cavalos bêbados

Esse foi um ano verdadeiramente duro para os brasileiros. Teve a pandemia, teve a devastação da riqueza da biodiversidade, teve o sofrimento da legião de desempregados em filas quilométricas para receberem esmola do governo federal, teve a fome e teve o aumento da miséria. Na reunião presidencial do dia 22 de abril, o ministro Paulo Guedes, amigo dos banqueiros e do capital internacional, assim falou em relação aos funcionários públicos: "E é nessa confusão toda, todo mundo achando que estamos distraídos, abraçaram a gente, enrolaram com a gente, nós já botamos a granada no bolso do inimigo, dois anos sem aumento do salário". Um equino relinchando alegremente como se tivesse acabado de se fartar de grama. Vender carteiras de banco público subavaliadas para bancos privados terem lucros astronômicos é a face cruel da moeda; a outra face é acabar com os serviços públicos massacrando os funcionários e a população. É o governo que agiganta as consequências da reforma trabalhista, da reforma da previdência e da PEC dos gastos. A fome, a peste e a morte avançando como cavaleiros do Apocalípse ávidos por destruição, soldados frios e indiferentes, agentes do grande capital... 

Por coincidência, ontem assisti a um filme - o último do ano - que apresenta um enredo sobre sofrimento e superação. "Tempo de embebedar cavalos", (Irã, 2000) dirigido por Bahman Ghobadi, conta a história de cinco órfãos que moram numa vila miserável na fronteira entre o Irã e o Iraque. Os irmãos Ayoub (Ayoub Ahmadi) e Ameneh (Amaneh Ekhtiar-Dini) cuidam de um caçula doente, Madi (Madi Ekhtiar-Dini), enquanto trabalham numa cidade distante. Num dos retornos para casa, os três e mais outras crianças são barrados num posto de fiscalização e têm que vencer o gelo da montanha para chegarem às suas casas. Lá a irmã mais velha, Rojin (Rojin Younessi) cuida da irmãzinha caçula. A doença de Madi piora e para tentar salvar a criança será necessário que Rojin se submeta a um casamento com um iraquiano da fronteira e que Ayoub transporte mercadorias em trilhas com emboscadas entre os dois países. Nessa travessia perigosa, com caminhos repletos de gelo, para os cavalos suportarem o frio intenso, recebem bebida alcóolica. Mas eventualmente, os cavalos acabam ficando embriagados. Em uma das travessias, para fugir dos saqueadores, Ayoub conta apenas com o seu próprio cavalo bêbado. 

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Centenário de Eric Rohmer

Esse ano comemorou-se o centenário de nascimento de Eric Rohmer, nascido em 21 de março de 1920 como Jean-Marie Maurice Schérer, importante cineasta francês que foi um dos participantes do grupo denominado Nouvelle Vague e editor da influente revista Cahiers du Cinéma. Entre as várias obras do diretor destacam-se seis dirigidas por ele na década de 1980, que ele denominou de "Comédias e Provérbios". Os filmes dessa série são os seguintes: A mulher do aviador (1981), O casamento perfeito (1982), Pauline na praia (1983), As noites de lua cheia (1984), O raio verde (1986) e O amigo de minha amiga (1987). Abaixo, um breve resumo de cada um deles. 

O primeiro da série, A mulher do aviador, é um ótimo filme. Baseado no provérbio "É impossível não pensar em nada", trata de um dia na vida de um jovem apaixonado, que está sendo corroído pelo ciúme. Sobre esse filme já fizemos uma postagem para esse blog (12/10/2020). De certa forma, essa primeira película revisita uma obra de 1967 de Eric Rohmer, A Colecionadora, com Patrick Bouchou, Haydée Politoff e Daniel Pommereulle, na qual o enredo também gira em torno de um triângulo amoroso (tema que aparecerá novamente em Pauline na Praia).

O segundo filme da série, O casamento perfeito, está baseado em um provérbio de La Fontaine, "Quel esprit ne bat la campagne? Qui ne fait châteaux en Espagne?", ou "Qual o espírito que não divaga? Que não constrói castelos na Espanha?" É a história de uma jovem estudante de arte que sonha em realizar um bom casamento apesar das decepções amorosas que acumula ao longo do tempo. Sabine (Béatrice Romand) rompe com o seu amante e resolve se casar, mesmo que seja com alguém que ela não conheça bem. Obviamente, a chance de uma tal atitude dar certo não é muito grande, e com ela vêm novas decepções.

O terceiro filme, Pauline na Praia, é baseado no provérbio de Chr. de Troyes, "Qui trop, parole, il se mesfait", ou "Quem muito fala, prejudica a si mesmo". As atrizes principais são Amanda Langlet e Arielle Dombasle. Logo no início do filme destaca-se o enquadramento das duas moças de branco queconversam no jardim entre flores roxas, lembrando um quadro a óleo antigo. Também são de destaque as paisagens na cidade praiana. Mas o destaque é um acontecimento que é interpretado de diferentes maneiras pelas várias pessoas que têm a oportunidade de observá-lo. A história girará em torno de sentimentos baseados em interpretações diversas, às vezes contraditórias, da realidade.

O quarto filme, As noites de lua cheia, é baseado no provérbio "Quem tem duas mulheres perde a alma, quem tem duas casas perde a razão". É estrelado por Pascale Ogier, Tcheky Karyo e Fabrice Luchine. Como outros filme de Rohmer, os personagens fazem várias reflexões sobre o amor e a solidão. Louise é uma jovem que vive entre a sua casa em Paris e o apartamento do namorado no subúrbio, além de ter um amigo que está sempre próximo. Ela quer um certo sacrifício do namorado e pergunta: "Por que ele não pode fazer algo enorme por mim, se me ama tanto quanto diz?" A vida entre os dois apartamentos eventualmente trás problemas, que como em muitas ocasiões na vida, não estavam previstos.

O quinto filme, O raio verde, é baseado num poema de Rimbaud, "Que chegue o tempo quando os corações estão apaixonados". A película fala sobre uma féria de verão de Delphine (Marie Rivière) quando ela tem a expectativa de conhecer alguém ou mesmo se divertir com os seus amigos. Mas a realidade destrói os sonhos impiedosamente. Não se encontrando em nenhum dos locais por onde anda, Delphine tem a esperança de num dos últimos momentos do verão conseguir enxergar o raio verde, um fenômeno raro que pode acontecer eventualmente no final do pôr do sol em condições atmosféricas raras. Mas dizem os mais velhos que aquele que conseguir enxergar o raio verde, aquele último raio de sol com coloração excepcional, terá sorte. Assim, assistir a um pôr do sol será a maneira de Delphine descobrir se o seu verão terá sido irremediavelmente perdido ou não.

O amigo de minha amiga é o sexto filme da série "Comédias e Provérbios", nesse caso baseado no dito "Os amigos dos meus amigos são meus amigos". O filme é estrelado por Emmanuele Chaulet, Sophie Renoir, François-Eric Gendron, Eric Viellard e Anne-Laure Meury. Ele conta a história de duas amigas, uma das quais possui um namorado e um amigo que produz uma certa atração na outra. As circunstâncias diversas fazem com que os sentimentos fiquem mudando, intercalando-se paixões e amizades. Como os outros filmes da série, são reflexões sobre o amor na França durante a penúltima década do século XX.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Velho camarada


De "O tempo redescoberto", sétimo volume do "Em busca do tempo perdido", de Marcel Proust, na tradução de Lúcia Miguel Pereira. Ainda na matinée na casa da princesa de Guermantes, o narrador continua a encontrar pessoas completamente irreconhecíveis pelo passar do tempo. A partir do maior ou menor encanecimento, o narrador infere a quantidade de anos que se passaram. E se detém em detalhes que contam muito de uma vida, como os olhos fundos em olheiras da viscondessa de Saint-Fiacre, a face pálida de um triste fantasma que substitui o outrora garboso Sr. Legrandin. Com um antigo amigo, o narrador apresenta um momento de hesitação: a pessoa com quem tem a oportunidade de conversar, quase nada possui do colega que ele conhecera no passado. 

"Encontrei ali um antigo camarada que, durante dez anos, eu vira quase diariamente. Alguém nos quis apresentar de novo. Encaminhei-me então para ele, e ouvi-o dizer, numa voz que logo reconheci: "É para mim um grande prazer, depois de tantos anos". Mas que surpresa a minha! A voz parecia emitida por um fonógrafo aperfeiçoado, porque, se era a de meu amigo, provinha de um sujeito corpulento e grisalho, para mim desconhecido, dando portanto a impressão de ter sido alojada artificialmente, por engenho mecâncio, nesse velho gordo igual a tantos outros. (...) Decididamente, parecia-me outro, quando, de súbito, ouvi, provocada por palavras minhas, sua risada, sua risada solta de antigamente, a que correspondia à perene mobilidade do olhar."

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Pálpebras cerradas

Na última parte do "Em busca do tempo perdido", O tempo redescoberto, de Marcel Proust, na tradução de Lúcia Miguel Pereira, há uma longa reflexão acerca do passar do tempo e do seu efeito inexorável sobre as pessoas que conseguem resistir ao açoite da morte, o envelhecimento. Nessa passagem, numa matinée na casa da princesa de Guermantes, o narrador relata o encontro com várias pessoas da sociedade que ele frequentava quando moço, só os reconhecendo através de alguns traços remanentes ou pelos harmônicos característicos das vozes que permanecem praticamente imutáveis com o passar do tempo. Um nobre orgulhoso que não apresentava mais tanta soberba, vaidade e arrogância, um velho irreconhecível que ainda possuía vivacidade apesar da fisionomia modificada, uma velha bruxa com o seu cabelo branco e miríades de pessoas com as faces deformadas, os abdômens arredondados, os antigos esbeltos corpos curvados. São páginas chocantes que mostram ao narrador, e ao leitor, as consequências do passar dos anos.

"Logo se verificava não ser devido a nenhum acidente de carro, mas a um ataque, o coxear de alguns homens que já tinham, como se diz, um pé na sepultura. Da sua, entreaberta, certas mulheres meio paralíticas, como a sra. de Franquetot, pareciam não poder soltar inteiramente os vestidos presos na lápide, e, incapazes de aprumar-se, infletidas, de cabeça baixa, descreviam uma curva que era de fato sua posição atual entre a vida e a morte, à espera da queda final. Nada impediria o movimento da parábola que as arrebatava, elas tremiam se tentavam erguer-se, e seus dedos já não conseguiam segurar coisa alguma.

Embuçados nas cãs, alguns semblantes já tinham a rigidez, as pálpebras cerradas dos moribundos, e os lábios, agitados por perpétuo tremor, pareciam murmurar as orações dos agonizantes."