sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Eppur si muove

Affonso Romano de Sant’ Anna

Não se pode calar um  homem 
Tirem-lhe a voz, restará o nome.
Tirem-lhe o nome 
e em nossa boca restará
a sua antiga fome.

Matar, sim, se pode.
Se pode matar um homem.
Mas sua voz, como os peixes,
nada contra a corrente
a procriar verdades novas
na direção contrária à foz.


Mente quem fala que quem cala consente.
Quem cala, às vezes, re-sente,
Por trás dos muros dos dentes, 
edifica-se um discurso tranparente.

Um homem não se cala
com um tiro ou mordaça. A ameaça
só faz falar nele
o que nele está latente.


Ninguém cala ninguém,
pois existe o inconsciente.
Só se deixa enganar assim
quem age medievalmente.
Como se faz para calar o vento
quando ele sopra
com a força do pensamento?
Não se pode cassar a palavra a um homem,
como se caçam às feras o pêlo e o chifre
na emboscada das savanas.
Não se pode, como a um pássaro,
aprisionar a voz humana
A gaiola só é prisão
para quem não entende
a liberdade do não.
Se a palavra é uma chave,
que fala de prisão, o silêncio
é uma ave- que canta na escuridão.


A ausência da voz
é, mesmo assim, um discurso.
É um rio vazio, cujas margens sem água
dão notícia de seu curso.

No princípio era o Verbo
- bem se pode interpretar:
no princípio era o Verbo
e o Verbo do silêncio
só fazia verberar.
Na verdade, na verdade vos digo:
mais perturbador que a fala do sábio
é seu sábio silêncio,
con-sentido.

O que fazer de um discurso interrompido?
Hibernou? Secou na boca, contido?
Ah, o silêncio é um discurso invertido,
modo de falar alto
- o proibido.

O silêncio
depois da fala
não é mais inteiro.
Passa a ter duplo sentido.
É como o fruto proibido, comido
não pela boca,
mas pela fome do ouvido.

Se um silêncio é demais,
quando é de dois, geminado,
mais que silêncio
- é perigo,
é uma forma de ruído.


Por isso que o silêncio
de algumas consciências,
quando passa a ser ouvido
não é silêncio
- É estampido.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

O livro do viajante

Depois de uma longa viagem o viajante chegava a uma cidade estranha. Depois de uma noite de descanso e já estando quase para deixar o hotel, avistava um antigo amigo que se encontrava na janela de um apartamento de um prédio vizinho. Isso revelava-se como uma grande surpresa, mas os dois conversavam sobre as novidades da vida. Então o viajante falava que quando visitara a sua mãe, aproveitara a oportunidade para visitar a avó e a mãe do amigo que moravam próximas na cidade natal. E o viajante lembrava de Teresa, que andava com calça jeans riscada, usava todas as gírias da juventude de sua época, colecionava posteres de bandas de rock e tinha uma coleção de borboletas. Também devido à beleza das flores, principalmente daquelas que cresciam no jardim da casa de seus pais, Teresa resolvia estudar biologia, mas não conseguia terminar o curso de bacharelado. Casava-se com um velho marinheiro que tocava viola e ficava deprimido sempre na época de lua cheia. Dizia-se que era mal de família, mas nenhum dos seus companheiros chegara a conhecer um único de seus familiares. Após o casamente, ela se mudava e ia morar em uma cidade bem distante, mas a bem da verdade, o viajante não sabia o porquê do amigo ter contado este particular de sua irmã. Muito provavelmente o viajante e Teresa jamais se veriam novamente. Ele despedia-se do amigo e ia ao parque onde tinha um encontro.

No caminho para o parque percebia que as folhas de todas as árvores estavam absolutamente imóveis, não havia o menor indício de vento na rua que levaria ao seu objetivo. Depois de caminhar umas duas quadras, o viajante tinha a sensação de estar sendo perseguido, mas alguns passos depois convencia-se que era apenas uma impressão. Chegava ao lugar marcado e sentava-se num banco afastado no centro da praça bastante arborizada. O chão tinha folhas secas, parecia que havia vários dias que não era varrido. O contato que o viajante esperava chegava vagarosamente. No silêncio em que estava, afastou-se, após deixar um embrulho nas mãos do que esperava. Um policial que encontrava-se a uma certa distância parecia estar observando a cena disfarçadamente. O viajante pegava o embrulho e seguia o seu caminho. Um vento forte soprava repentinamente ao que vieram se juntar raios e trovões. Quase que imediatamente, uma chuva forte caía sobre a cidade.

Ao chegar ao seu quarto no hotel, molhado e cansado, ele abria o embrulho e descobria um pequeno livro com letras pintadas de roxo formando três palavras em uma língua desconhecida. Por que razão lhe passaram aquele livro? No seu interior havia um texto incompreensível e uma folha de papel amassada com um mapa que ele reconheceu como o da cidade onde ele se encontrava. O viajante jogava o livro sobre a mesa e começava a rabiscar um relatório. O vento voltava a soprar e a janela ficava batendo repetidamente no parapeito do quarto. O viajante descia e iniciava uma breve caminhada, parando na entrada de um prédio que parecia ser um pequeno colégio e que estava marcado no mapa recebido. Ele entrava cautelosamente e, ao atravessar um longo corredor, saía numa rua cujo calçamento era todo de pedra. Diferentemente da rua onde tivera acesso ao prédio, aquela rua possuía pouquíssimas casas. O viajante parecia reconhecer um bairro onde ele morara durante a sua infância. É como se ele tivesse voltado ao passado, com as mesmas ruas vazias compostas por poucas casas, cachorros que perambulavam pelas calçadas, carroças que eram puxadas por burros e crianças que corriam sem preocupação. Uma das casas era exatamente igual a de uma velha senhora que dava esmola para pobres indigentes que chegavam do interior fugindo da seca. Duas árvores frondosas formavam um túnel de folhas na entrada da casa que possuía um alpendre com bancos cinzas feitos de pedra. Na época das chuvas, ele lembra bem, aqueles bancos ficavam cobertos de formigas de asas. E a janela com quatro bibelôs era uma marca registrada: com certeza não havia nenhuma igual aquela em todo o mundo. Ao olhar as crianças que corriam de pega-pega o viajante conseguia reconhecer a pequena Teresa com os seus oito aninhos de vida. Aquilo era absolutamente inacreditável. Ele acabara de voltar ao passado ao atravessar o corredor de um prédio quase abandonado em uma cidade perdida no meio do mapa e do tempo.

O prédio do longo corredor desapareceu após uma leve neblina se dissipar e uma chuva forte voltar a cair. Que pena do viajante. Saiu para recuperar um livro incompreensível e ficou preso para sempre no passado.