sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Segunda instância

Foi um misto de boçalidade, arrogância, escárnio, embromação... Certos tribunais brasileiros são espetacularmente bem qualificados nestes quesitos. Mas o que aconteceu no dia 24 de janeiro, mais do que uma encenação de pessoas bem nascidas – descendentes dos senhores de engenho, dos donos de cafezais e dos oficiais que trucidaram os miseráveis de Canudos – foi uma vingança. Foi uma vendetta rasteira da elite brasileira a uma pessoa de origem humilde que teve a audácia de se intrometer em uma atividade que a princípio ele não poderia ousar nem pensar. O nordestino retirante, trabalhador de chão de fábrica, ousou e ensinou. Os juízes meridionais, pobres diabos da soberba, serão esquecidos pela história; e que lhe caiam todo o peso da terra. 


quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Primeira instância

Perguntando-se o objetivo do golpe parlamentar de 2016 no Brasil, hoje é bastante claro que ele teve três eixos principais: (i) Desnacionalização das riquezas do país, em particular, o cobiçadíssimo petróleo do Pré-Sal; (ii) Proteção de uma série de atores políticos altamente envolvidos em corrupção; (iii) Aggiornamento do capitalismo local, retirando-se descaradamente direitos trabalhistas conquistados há décadas, diminuindo-se radicalmente os investimentos sociais e privatizando-se diversos serviços do estado, em particular, a previdência privada. O discurso do governo golpista é bastante afinado com a mídia patronal (formada por cerca de seis ou sete famílias chefiadas pelos barões da mídia). Este discurso foi preparado ao longo de vários anos, mas não teria tido sucesso se não tivesse o suporte indispensável da justiça parcial e partidária brasileira.

Muita tinta já foi gasta e certamente muitos estudiosos se debruçarão sobre a questão do apoio do poder judiciário ao golpe parlamentar. Para ficar registrada uma rápida análise, mas precisa, de uma faceta deste triste capítulo da nossa história recente, reproduz-se a seguir um texto conciso e claro de Tereza Cruvinel. Ele trata da condenação em primeira instância do ex-presidente Lula ocorrida numa estranha vara de justiça na improvável cidade de Curitiba, onde faltam provas mas abundam convicções preconceituosas e elitistas.

É preciso repetir: sem provas, Moro condenou Lula com base em delação.

Tereza Cruvinel, em 08/01/2018
Todos sabem por que o TRF-4 acelerou seu calendário e marcou para o dia 24 o julgamento do recurso do ex-presidente Lula contra a condenação do juiz Sérgio Moro. A coalizão do golpe, não tendo produzido um candidato conservador capaz de derrotar Lula, precisa tirá-lo da disputa presidencial. Seu retorno representaria não apenas o fracasso completo do golpe mas a interrupção de seu programa neoliberal anti-povo e anti-nacional. Parece também claro que não se pode esperar um julgamento justo e imparcial dos três togados de um tribunal cujo presidente já considerou “a priori” a sentença de Moro como irretocável, e  em que a chefe de gabinete faz proselitismo contra o ex-presidente em rede social. Mas, para ampliar a compreensão popular sobre a perseguição orquestrada contra Lula, sobre o que seja o lawfare de que falam seus advogados, não basta proclamar que ele foi condenado sem provas, por um crime inexistente: a posse de um apartamento que não possui, nem de fato nem no papel. É preciso recordar que Moro, não tendo provas, condenou-o baseando-se unicamente  na palavra de um delator. Em uma delação que foi arrancada a fórceps, numa prolongada tortura moral e psicológica contra o ex-presidente da OAS, Leo Pinheiro. 
 Uma enxurrada de denúncias contra Lula foi atirada contra a população nos últimos anos, através de um noticiário caudaloso na televisão e em todas as mídias. As acusações foram sendo lançadas em série, de modo que ele fosse percebido como o grande malfeitor, embora o quadrilhão esteja no governo  e o próprio presidente do golpe siga sendo investigado por ilícitos graves. Agora, por favorecimento a empresas de portos, depois de escapar de duas denúncias comprando votos. Neste torvelinho, muitos já não sabem de que trata a sentença que estará em discussão no dia 24, e mesmo assim, declaram a preferência por Lula nas pesquisas eleitorais. É preciso recordar que, para garantir sua condenação, a Lava Jato  buscou caprichosamente  a delação de Leo Pinheiro, numa sequência de fatos já esquecidos que não deixam dúvidas sobre o objetivo: sem provas, só a delação permitiria a condenação de Lula, e por decorrência, sua inelegibilidade.
Recordemos a sequência que levou Léo Pinheiro, até então amigo do ex-presidente, a se tornar um delator-traidor.
  1. Ele foi preso pela primeira vez em novembro de 2014 mas em abril de 2015 o STF determinou que fosse posto em prisão domiciliar.  Condenado a 16 anos de prisão por Moro, começou a negociar um acordo de delação premiada que permitiria a redução de sua pena.
  2. Em junho de 2016 Pinheiro prestou depoimento a Moro e aos procuradores da Lava Jato, em que antecipou as linhas gerais da delação que faria, revelando pagamentos da empreiteira a muitos políticos. Mas como não haveria nenhuma referência a Lula,  o acordo proposto foi recusado.  Em agosto as negociações sobre delação foram encerradas. A defesa de Lula requereu esclarecimentos sobre notícias de que isso teria ocorrido porque o delator não se dispôs a incriminá-lo.
  3. Duas semanas depois, Leo Pinheiro foi novamente preso, segundo Moro em nome da “garantia da ordem pública, conveniência da instrução criminal e segurança da aplicação da lei penal”. Começava aí a pressão para que ele delatasse Lula e o apontasse como dono do apartamento do Guarujá.
  4. Em novembro, sua pena foi aumentada em 10 anos, subindo para 26 anos.
  5. Em abril de 2017, finalmente Leo Pinheiro se rende a Moro e atende à Lava Jato. Ele declara que, quando a OAS adquiriu o empreendimento, soube que o tríplex estava reservado ao ex-presidente e que só tratou do assunto com João Vacari, nunca com Lula. Que na OAS, só ele tratou deste assunto. Que foram feitas as reformas e abatidas da propina que o PT tinha a receber da OAS.
A defesa de Lula apresentou o documento pelo qual a OAS havia dado o apartamento como garantia a uma instituição bancária. Esta era uma prova viva de que a OAS continuava sendo a dona do imóvel mas não foi levada em conta. Mesmo dizendo que o apartamento era de Lula, Pinheiro diz que não o consultou a emitir do documento em que o dava como garantia.
Com base unicamente na delação de Pinheiro, ignorando outros depoimentos de funcionários da OAS e as 87 testemunhas de defesa apresentadas por Lula, Moro o condenou por corrupção passiva e lavagem de dinheiro a 9,5 anos dee prisão. Somou o valor do apartamento com o das reformas para apontar o valor da suposta propina.
Leo Pinheiro fez ainda outra acusação a Lula. A de que, tendo perguntado se havia feito pagamentos ao PT, e diante da resposta afirmativa, mandou que destruísse as provas e registros que tivesse.
Seu depoimento ainda não tinha terminado quando os portais de notícias em tempo real começaram a publicar trechos de sua delação, especialmente o que se relacionava com o apartamento. Faltaram apenas os fogos.
Agora, falta a confirmação da sentença, baseada unicamente numa delação, pelo TRF-4,  para que o jogo seja concluído e Lula esteja fora da disputa eleitoral.  A fragilidade da sentença de Moro, assentada unicamente na delação de um homem desesperado para reduzir uma pena de 26 anos de prisão, precisa ser recordada e denunciada aos quatro cantos do mundo, ampliando a insurgência  contra a injustiça e a perseguição, como fazem os juristas, intelectuais, políticos e artistas que assinaram o  manifesto “Eleição sem Lula é fraude”.
O uso da delação premiada como prova única para condenar é criticado por  juristas de renome mas vou pinçar apenas a citação do processualista Geraldo Prado:
“Não há, na delação premiada, nada que possa, sequer timidamente, associá-la ao modelo acusatório do processo penal. Pelo contrário, os antecedentes menos remotos deste instituto podem ser pesquisados no Manual dos Inquisidores. Jogar o peso da pesquisa dos fatos no ombro de suspeitos e cancelar, arbitrariamente, a condição que todas as pessoas têm, sem exceção, de serem titulares de direitos fundamentais, é trilhar o caminho de volta à Inquisição. Em tempos de neofeudalismo,  isso não surpreende."
Não surpreende, mas deve indignar os que não compactuam com a tirania, mesmo togada.