segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

Juliana e o dia dos mil mortos

Hoje, dia de Natal, lembrei-me da pequena Juliana, uma criança de sete anos que morreu em dezembro de 1999 esmagada por um caminhão enquanto atravessa uma avenida para apanhar um pãozinho jogado por pessoas de um carro no outro lado da via. Faltavam dois dias para o Natal (A notícia do milênio: crianças sonham, no Longarinas em 06/02/2014). Juliana agora teria vinte e cinco anos. Teria apenas mendigado num sinal qualquer da cidade? Teria a pequena estudado muito com o programa de governo a ser instalado quatro anos depois? Teria conseguido entrar em uma universidade e se tornado uma historiadora, uma questionadora do sistema? Uma matemática, uma cientista, uma médica ou uma enfermeira? Teria se tornado uma mãe zelosa?

Na sociedade de castas em que se vive no Brasil, há pouco espaço para se pensar sobre o destino da Juliana. A mãe de Juliana, se conseguiu ajuda do governo após 2003, certamente foi chamada de vagabunda por ter recebido um subsídio para não morrer de fome. Não importa e não vem ao caso se quem a rotula negativamente é da casta que sonega imposto e que explora os seus funcionários acima do limite do indecorosamente permitido; da casta que gosta de dar lição de moral mas que recebendo salário público acima do constitucionalmente permitido, compra casas populares para especular futuramente; da casta que é contra a corrupção mas que conta vantagem por ter burlado o seguro; da casta que sempre vence na justiça e, quando flagrado no crime, ainda possui a carreira elogiada pelos tribunais superiores. Claro, estes aspectos pitorescos da classe dominante são características particulares de uma sociedade na qual se espera (pelo menos por alguns de nós) que em um determinado tempo futuro os operários se transformem em cidadãos de pleno direito, para usar a ideia de certos sociólogos.

Conectado à morte da Juliana através de um fio transparente estão centenas de fatos do nosso passado de pessoas sofridas e de oligarquias sorridentes. O estado miserável secular alimentou e enriqueceu a elite que nunca sentiu os efeitos dos fenômenos da natureza, como a seca que periodicamente assola a região e traz consigo efeitos devastadores. Seca que já matou milhares de pessoas ao longo dos séculos, por fome, por peste, por miséria. 
      
No próximo ano, por exemplo, terão se passado 140 anos da grande peste de varíola que assolou a cidade de Fortaleza, fruto da pobreza e reunião de 110.000 retirantes famintos que vieram para a capital com a esperança de não morrerem de fome com a grande seca. Retirantes famintos que se encontraram com o vírus da varíola, tendo como consequência um resultado devastador. Abaixo reproduzimos pequeno texto do escritor Lira Neto na sua obra “O poder e a peste – a vida de Rodolfo Teófilo”, no qual são descritos detalhes sobre a peste de varíola, no meio da grande seca de 1877 a 1879, que dizimou num único dia em Fortaleza, mais de mil pessoas. Esse dia ficou conhecido como o dia dos mil mortos.

"Não havia quem os convencesse do contrário. Nem que o diabo tocasse rabeca . . . . [Os retirantes] não iam deixar ninguém lhes espetar no braço, assim sem mais nem menos, uma mentira de remédio [vacina], que diziam ser preparado com o próprio veneno da Peste . . . . Não adiantava chamar a polícia, escorraça-los em praça pública, ameaça-los de prisão. Nada, nem ninguém, os dobraria.

Desgraça só quer mesmo princípio. De fato, a Peste não demorou muito a mostrar toda a força que tinha.

Do balcão da farmácia ...  Rodolfo observava aqueles cortejos com horror e reprovação. Os cadáveres dos variolosos, decompostos pelas feridas da doença, eram conduzidos a céu aberto. Muitos corpos, em que a varíola havia separado a carne dos ossos, eram socados em sacos de estopa, que depois se amarravam a um pau para facilitar o transporte.

Os defuntos mais inteiros, aqueles que podiam ser transportados amarrando-lhes mãos e pés a uma vara, iam cobertos por ligeiros trapos, que mal lhe escondiam as vergonhas.

Foi no dia 10 de dezembro [de 1878], quinzena antes do Natal. Aquele seria o dia do cão. Ninguém nunca mais poderia esquecer. O dia inteiro, não houve único minuto em que não chegasse pelo menos um defunto para ser enterrado na Lagoa Funda. Os carregadores precisavam fazer filas para despejar os corpos.


A confusão era total. Enquanto aguardavam a vez, bêbados de não se aguentar em pé, os carregadores deitavam no chão os cadáveres, que já começavam a apodrecer. No final da tarde, os registros oficiais indicavam que o cemitério recebera, só naquele dia, nada menos de 1.004 cadáveres. Nunca se tinha visto, em tempo algum, morrer tanta gente junta. Talvez Deus tivesse fechado de vez os olhos para aquela gente. Ou então era o Dia do Juízo Final. O Dia dos Mil Mortos.”

sábado, 23 de dezembro de 2017

Parafuso de cabo de serrote

Há regiões de um Brasil distante, profundo, em que caminham Severinos e Conselheiros, onde se mata a fome à cartucheira, onde se ara na pedreira e se dá água de mandacaru para os bichos. Ali a vida é austera, as dificuldades são imensas e o sofrimento é parte do cotidiano. Durante toda a história do país os governos foram na sua esmagadora maioria excludentes e cegos, mudos e surdos às necessidades desses locais (as poucas exceções estão aí para dar um tabefe na cara da regra). Mas nesse mar de dificuldades e indiferenças existem as pequenas ilhas de resistência – poetas, cantadores e cancioneiros populares – que tentam resgatar e manter a cultura e a memória desse povo, como se fossem contra-molas ao ataque permanente da elite egocêntrica, criminosa e ignorante.

Para lembrar essa resistência, dos cantadores de longa tradição no interior nordestino, reproduzimos o poema “Parafuso de Cabo de Serrote” do poeta paraibano Jessier Quirino:


Tem uma placa de Fanta encardida
A bodega da rua enladeirada
Meia dúzia de portas arqueadas
E uma grande ingazeira na esquina
A ladeira pra frente se declina
E a calçada vai reta nivelada
Forma palmos de altura de calçada
Que nos dias de feira o bodegueiro
Faz comércio rasteiro e barateiro
Num assoalho de lona amarelada.

Se espalha uma colcha de mangalho:
É cabestro, é cangalha e é peixeira
Urupema, pilão, desnatadeira
Candeeiro, cabaço e armador
Enxadeco, fueiro, e amolador
Alpercata, chicote e landuá
Arataca, bisaco e alguidar
Pé de cabra, chocalho e dobradiça
Se olhar duma vez dá uma doidiça
Que é capaz do matuto se endoidar.

É bodega pequena cor de gis
Sortimento surtindo grande efeito
Meia dúzia de frascos de confeito
Carrossel de açúcar dos guris
Querosene se encontra nos barris
Onde a gata amamenta a gataiada
Sacaria de boca arregaçada
Gargarejo de milhos e farelos
Dois ou três tamboretes em flagelo
Pro conforto de toda freguesada.

No balcão de madeira descascada
Duas torres de vidro são vitrines
A de cá mais parece um magazine
Com perfume e cartelas de Gillete
Brilhantina safada, canivete
Sabonete, batom... tudo entrempado
Filizolla balança bem ao lado
Seus dois pratos com pesos reluzentes
Dá justeza de peso a toda gente
Convencendo o freguês desconfiado.

A Segunda vitrine é de pão doce
É tareco, siquilho e cocorote
Broa, solda, bolacha de pacote
Bolo fofo e jaú esfarofado
Um porrete serrado e lapidado
Faz o peso prum março de papel
Se embrulha de tudo a granel
E por dentro se encontra uma gaveta
Donde desembainha-se a caderneta
Do freguês pagador e mais fiel.

Prateleiras são tábuas enjanbradas
Com um caibro servindo de escora
Tem também não sei qual Nossa Senhora
Com um jarrinho de louça bem do lado
Um trapézio de flandres areados
Um jirau com manteiga de latão
Encostado ao lado do balcão
Um caneiro embicando uma lapada
Passa as costas da mão pelas beiçadas
Se apruma e sai dando trupicão.

Tem cabides de copos pendurados
E um curral de cachaça e de conhaque
Logo ao lado se vê carne de charque
Tira gosto dos goles caneados
Pelotões de garrafas bem fardados
Nas paredes e dentro dos caixotes
Uma rodilha de fumo dando um bote
E um trinchete enfiado num sabão
E o bodegueiro despacha ao artesão

Um parafuso de cabo de serrote.