domingo, 19 de outubro de 2014

Eco e a questão do narrador

O narrador, em um romance, desempenha um interessante papel no desenvolvimento da história. Umberto Eco dedica parte do primeiro capítulo da sua obra "Seis passeios pelo bosque da ficção" a discutir os conceitos de narrador, autor-modelo, leitor-modelo, etc. Eco cita o início do romance Sylvie, de Gérard de Nerval "Je sortais d'un théâtre où tous les soirs je paraissais aux avant scènes en grande tenue de soupirant [...]" e a seguir comenta:

"Agora vamos examinar o 'je' com o qual a história se inicia. Os livros escritos na primeira pessoa podem levar o leitor ingênuo a pensar que o 'eu' do texto é o autor. Não é, evidentemente: é o narrador, a voz que narra. P.G. Wodehouse certa vez escreveu na primeira pessoa as memórias de um cachorro - uma demonstração incomparável de que a voz que narra não é necessariamente a do autor.

Em  Sylvie, temos que lidar com três entidades. A primeira é um cavalheiro que nasceu em 1808 - e que por acaso se chamava Gèrard de Nerval, mas sim Gèrard Labrunie. Com um guia Michelin na mão, muitos turistas ainda procuram em Paris a rue de la Vieille Lanterne, onde o escritor se enforcou. Alguns deles nunca entenderam a beleza de Sylvie.

A segunda entidade é o homem que diz 'eu' na novela. Essa personagem não é Gérard Labrunie. Tudo que sabemos sobre ele é que nos conta a história e não se mata no final, quando faz a melancólica reflexão: 'As ilusões caem uma após outra, como as cascas de uma fruta, e a fruta é a experiência'.

Meus alunos e eu resolvemos chamá-lo de Je-rard, mas, como esse trocadilho não se pode traduzir em inglês, vamos chamá-lo de narrador. O narrador não é o sr. Labrunie, e a razão disso é a mesma pela qual a pessoa que inicia Viagens de Gulliver dizendo:'Meu pai possuía uma pequena propriedade em Nottinghanshire; eu era o terceiro de cinco filhos. Ele me mandou para o Emanuel-College, em Cambridge, quando tinha catorze anos', não é Jonathan Swift, que estudo no Trinity College, em Dublin. Pede-se ao leitor-modelo que se comova com as ilusões perdidas do narrador, e não com as do sr. Labrunie.

Por fim, há uma terceira entidade, em geral difícil de identificar e que eu chamo de autor-modelo, de modo a criar uma simetria com o leitor-modelo. Labrunie pode ter sido um plagiário, e Sylvie poderia ter sido escrita pelo avô de Fernando Pessoa, mas o autor-modelo é a 'voz' anônima que inicia a história com 'Je sortais d'un théâtre' e a encerra fazendo Sylvie dizer: 'Pauvre Adrienne! elle est morte au convent de Saint-S..., vers 1832' ['Pobre Adrienne! Ela morreu no convento de Saint-S..., por volta de 1832']. Nada mais sabemos sobre ele, ou melhor, sabemos apenas o que essa voz diz entre o primeiro e o último capítulos da história. O último capítulo se intitula 'Dernier feuillt', 'Última folha': para além dela tudo que resta é o bosque da narrativa, e cabe a nós entrar e percorrê-lo. Uma vez que aceitamos essa regra do jogo, podemos até tomar a liberdade de dar um nome a essa voz, um nom de plume: com permissão de vocês, acho que encontrei um lindo nome: Nerval. Nerval não é Labrunie, nem o narrador. Nerval não é um ele, assim como George Eliot não é uma ela (só Mary Ann Evans era). Nerval poderia ser es, em alemão, it, em inglês (infelizmente a gramática italiana me obrigaria a dar-lhe um gênero)."

As narrativas literárias, como mostra Umberto Eco, são verdadeiramente ricas. Lembro-me, por exemplo, da "Memórias da Casa dos Mortos", de Fiodor Dostoiévski, que apresenta um aspecto interessante a respeito do narrador. Na verdade, na "Memórias", há dois narradores. A narração dos sofrimentos de uma prisão siberiana, a casa dos mortos, é feita por um velho taciturno, de origem desconhecida, que morreu sozinho e deixou o seu relato em diversos papéis no fundo de um baú. Estes papéis foram encontrados por um outro narrador, que fala da existência do primeiro narrador e dos seus alfarrábios, e resolve levá-los a lume. Destaca-se que o próprio Dostoiévski viveu alguns anos numa prisão na Sibéria, mas nenhum dos dois narradores da "Memórias" se chama Fiodor e, portanto, não pode ser o escrito russo.

Outra obra em que o autor se confunde com o narrador e o autor-modelo é "Em busca do tempo perdido", de Marcel Proust. O narrador da obra, escrita em primeira pessoa, conta a história de um senhor que viveu em Paris, Combray e Balbec, que era filho único, e que se apaixonou por, no mínimo, três mulheres: Gilberte, a Duquesa de Guermantes e Albertine. Embora o narrador também tivesse problemas de saúde como o próprio Proust, ele claramente não é o escritor, uma vez que este tinha um irmão, além de ter tido um relacionamento homossexual. No quarto volume da obra, "Sodoma e Gomorra", Proust apresenta de uma forma absolutamente explícita um discurso entre o autor e o leitor. Na verdade, talvez propositadamente, no final da discussão ele confunde o autor com o próprio narrador. Essa parte do romance mereceria uma discussão mais aprofundada, mas por enquanto, reproduzirei apenas a tradução do texto na pena de Mário Quintana:

"Pois os nomes de etapa por que passamos antes de encontrar o nome verdadeiro são falsos e não nos aproximam dele. Nem são propriamente nomes, mas muita vez simples consoantes que não se encontram no nome reencontrado. Aliás, tão misterioso é esse trabalho do espírito a passar do nada à realidade que afinal de contas é possível que essas consoantes falsas sejam degraus previamente erguidos para nos ajudar a aferrar-nos ao nome exato. 'Tudo isso", dirá o leitor, 'nada nos revela sobre a falta de complacência da referida dama; mas já que vos demorastes tanto tempo, deixai-me, senhor autor, que vos faça perder um minuto mais para dizer-vos ser lamentável que, jovem como éreis (ou como era o vosso herói se ele não for a vossa própria pessoa) tivésseis já tão pouca memória a ponto de não conseguir lembrar o nome de uma dama a quem conhecíeis muito bem'. É muito lamentável, com efeito, senhor leitor. E mais triste do que julgais quando se sente aí o anúncio da época em que os nomes e as palavras desaparecerão da zona clara do pensamento e em que será preciso renunciar para sempre a dizer para nós mesmos o nome daqueles a quem melhor conhecemos. É lamentável com efeito que desde a juventude se necessite desse labor para encontrar nomes bastante conhecidos. Mas se só se desse essa invalidez quanto aos nomes apenas conhecidos, muito naturalmente olvidados e que não se quisesse ter o trabalho de recordar, esse mal não deixaria de ter as suas vantagens. 'E quais são, por favor?' Pois bem, senhor, é que só o mal faz observar e aprender e permite decompor os mecanismos que, sem isso, a gente não ficaria conhecendo. Um homem que cada noite tomba como uma massa no seu leito e não vive até o momento de despertar e levantar-se, esse homem jamais pensará em fazer, se não grandes descobertas, pelo menos pequenas observações sobre o sono. Mal sabe se dorme. Um pouco de insônia não é inútil para apreciar o sono, para projetar alguma luz nessa noite. Uma memória sem desfalecimentos não é um excitante muito poderoso para estudar os fenômenos da memória. 'Mas, afinal, a sra. de Arpajon vos apresentou ao príncipe?' Não, mas calai-vos e deixai-me retomar minha narrativa."