O ônibus que eu apanharia apontou no final da rua e
avançou rapidamente. Subi no transporte resignado com a longa viagem que teria
que enfrentar até atingir o meu destino. Antes de chegar à próxima parada
comecei a pensar nas várias tarefas que teria que realizar naquele dia, na
requisição que teria que fazer...
Mas de repente, o motorista freou bruscamente e fez
torcer os pescoços de vários dos passageiros. Na parada tentou subir uma
senhora com uma caixa repleta de pamonhas e de canjicas. Quando tomo o ônibus
das sete, ela sempre sobe nessa parada. Nesse dia a caixa estava aparentemente
mais pesada do que de costume e a senhora não conseguia elevá-la acima do
primeiro degrau. Ajudei, pois era um dos que se encontravam mais próximos das
escadas da subida; fiz um esforço enorme e, com grande dificuldade, conseguimos
adentrar os produtos da vendedora ambulante.
Com a vendedora de pamonha subiu também uma outra
senhora, talvez sua irmã ou uma amiga, que trazia uma sacola também repleta de
produtos. Elas se colocaram na parte traseira do ônibus e começaram uma
conversação. Em breve algumas cadeiras ficaram vazias e elas se sentaram lado a
lado.
A vendedora falou à companheira como se continuasse
uma conversa:
- ... pois na infância eu carregava pequenos fechos
de lenha na cabeça e às vezes brincava na beira da lagoa. Lembro também dos
mané magos que apareciam aos montes quando o tempo estava bom, das formigas de
asas perto de uma chuva forte depois dum tempão seco, de quando a gente ia
comprar coisa na bodega, tinha uma balança assim que dum lado o bodegueiro
colocava um peso, tu lembra? A gente brincava a tarde toda no areal, mas isso
era quando eu não tinha nem dez anos. Quando estava quase de noite, a mamãe
mandava tomar banho e se preparar para o jantar. A nossa casinha naquela época
era boa, tinha até o retrato da santíssima trindade na sala. Depois que meu pai
se foi tudo ficou ruim, a gente se mudou!
Após uma pausa, como se estivesse arrumando os
pensamentos, a vendedora então arrematou:
- Meu sonho é me aposentar e o dinheiro que eu
apurar nessas vendas seja apenas para comprar as minhas coisinhas. Agora eu
tenho que pagar o aluguel, a luz, que atrasei no mês passado, e a comida. Minha
filha mais velha mora a duas casas da minha mas não tem coragem de me dar nem
um prato de comida. Se Deus quiser, vou me aposentar.
A amiga discorreu um pouco sobre a sua moradia
atual no que a vendedora de pamonha retrucou:
- A minha casa é pequena mas o meu sonho é comprar
uma casinha lá para a Palpina. Ou então comprar um terreninho, depois arranjar
uns tijolos, umas ripas, uns caibros, as telhinhas, você sabe. Mas eu
precisaria dessa aposentadoria. Com o dinheiro das vendas, no máximo, às vezes
eu vou pintar as unhas. Mas não faço as unhas dos pés. A minha filha mais nova foi
num salão de beleza e viu um serviço bem barato e furaram um dedo do pé dela e
já tá há um ano inflamado. Agora está também saindo pus. Tô até preocupada, mas
o marido dela num tá nem aí, e também a cunhada. Acho que vou ter que levar ela
no médico. Não sei como vai ser porque ela está no sétimo mês. Mulher grávida
pode tomar antibiótico?
A senhora que estava do outro lado, ao ouvir essa
fala, entrou na conversa.
- A gente tem que ter cuidado com as clínicas de
beleza baratas. Para mexer nos pés das clientes a pessoa tem que ter um curso
de podologia. Eu trabalho em clínicas desde os quatorze anos, estou com trinta
anos. Fiz curso de cabeleireiro, tenho o meu diploma, sabe? Na clínica de
beleza que trabalho a gente não engana a cliente apenas para ganhar mais
dinheiro. Eu digo logo: “olha, esse tratamento não serve para o seu cabelo”. O
pessoal diz que tem tratamento sem química, mas isso não existe. Seja
alisamento, luzes, permanente, relaxamento, progressiva, tudo tem química, o
que difere os tratamentos é a quantidade de química. Tudo tem formol. Por menos
que tenha, mas tem formol. A gente tem que ser honesta.
Após um pequeno intervalo para respirar a
cabeleireira, que usava grandes óculos e tinha o cabelo ligeiramente estirado,
continuou:
- Às vezes a pessoa vai para um lugar mais barato e
depois tem que gastar mais dinheiro. É como o povo diz, é o barato que sai
caro. Faz uma alisamento de sessenta reais por trinta reais; aí usaram um
produto de qualidade inferior, e então, para que serviu a economia? Para fazer
a unha, tem que ir a uma podologista, tem que pedir o certificado de curso de
podologia. A senhora tem que ir procurar uma podologista para a filha da
senhora, ela vai fazer o tratamento correto.
E a amiga da vendedora:
- Como ela está grávida acho que tem que levar num
posto de saúde para saber se ela pode tomar o antibiótico.
Enquanto o ônibus avançava num trecho com menos
engarrafamento, a conversa parece ter atingido fundo o coração da vendedora e
ela repetiu por três vezes:
- Eu vou pagar a consulta para a minha filha. Se eu
não ajudar, não tem quem ajude.
E a cabeleireira:
- Eu tenho uma amiga que acho que é a melhor
podologista da cidade. Ela trabalha numa clínica que fica atrás do shopping North
Paradise. O nome dela é Verinha. A senhora chega lá e procura ela.
No que a vendedora falou:
- Nem que a consulta seja duzentos reais eu vou
pagar para a minha filha.
E quando o coletivo quase chegava ao centro da
cidade a cabeleireira levantou-se, despediu-se "vá ver a minha
amiga", passou a roleta e sumiu na multidão. E a vendedora ficou na sua
cadeira, triste, pensativa.
Olhando as calçadas da avenida onde o ônibus agora
avançava, chamou a atenção da vendedora um mendigo que dormia sobre papelões na
escadaria de imponente prédio pertencente a um banco. A cor de suas vestimentas
lembrava a da vendedora de canjica, que se encontrava calada nesse momento.
Alguém poderia dizer que se tratava de uma confraria. Uma confraria diferente,
forçada, forjada por séculos de excessivos privilégios e exclusões.
O ônibus terminaria a sua jornada em um terminal no
outro lado da cidade. Continuou o seu trajeto por mais uns quinze minutos,
período em que a vendedora cochilou e a sua companheira distraiu-se olhando
pela janela do outro lado.
Próximo à parada de descida, a vendedora de pamonha
ajeitou o seu gigolete, pegou algumas moedas no bolso da calça jeans para
pagar a passagem e tentou convencer o trocador de que deveria descer pela porta
traseira por causa do peso das pamonhas e das canjicas. Avançava resolutamente
em direção a mais um dia de duro trabalho. Seus fregueses certamente a
esperavam na porta de uma fábrica ou de uma esquina movimentada. Com sua dor
quase solitária, mas se expressando firmemente, ela gritaria:
- Olha a pamonha, olha a canjica. Pamonha e canjica
fresquinha!
Entretanto,
assim que ela desceu, a tira da sandália esquerda rompeu-se fazendo-a tropeçar
e derrubar ao chão parte das pamonhas e das canjicas. Na claridade da manhã
pareciam pepitas de ouro que um explorador desastrado derrubara na beira do
caminho. Com a ajuda da amiga, com o joelho ralado e uma mão ensanguentada, ela
se levantou e enxugou o sangue na lateral da calça. A mulher – toda desejo de
liberdade – deixou fugir uma lágrima que correu pelo seu rosto envelhecido.
Enquanto
o ônibus se afastava, ainda consegui ver um pouco de canjica derramada na
sarjeta e alguns transeuntes que ajudavam a vendedora a juntar as pamonhas e os
potinhos que continuavam fechados.
P.T.C. Freire, agosto de 2021.
Esta crônica foi finalista do II Concurso Literário da Semana do
Servidor, promovido pela Secretaria de Cultura Artística da Universidade
Federal do Ceará em 2021. Foi publicada no livro "Coletânea Travessias.
Contos e Crônicas - Vol. II". Organizadores: Joaquim Melo de
Albuquerque, Maria Pinheiro Pessoa, Lady Dayana Oliveira. Imprensa
Universitária da Universidade Federal do Ceará (UFC), 2021.