sábado, 11 de dezembro de 2021

A vendedora ambulante

O ônibus que eu apanharia apontou no final da rua e avançou rapidamente. Subi no transporte resignado com a longa viagem que teria que enfrentar até atingir o meu destino. Antes de chegar à próxima parada comecei a pensar nas várias tarefas que teria que realizar naquele dia, na requisição que teria que fazer... 

Mas de repente, o motorista freou bruscamente e fez torcer os pescoços de vários dos passageiros. Na parada tentou subir uma senhora com uma caixa repleta de pamonhas e de canjicas. Quando tomo o ônibus das sete, ela sempre sobe nessa parada. Nesse dia a caixa estava aparentemente mais pesada do que de costume e a senhora não conseguia elevá-la acima do primeiro degrau. Ajudei, pois era um dos que se encontravam mais próximos das escadas da subida; fiz um esforço enorme e, com grande dificuldade, conseguimos adentrar os produtos da vendedora ambulante.

Com a vendedora de pamonha subiu também uma outra senhora, talvez sua irmã ou uma amiga, que trazia uma sacola também repleta de produtos. Elas se colocaram na parte traseira do ônibus e começaram uma conversação. Em breve algumas cadeiras ficaram vazias e elas se sentaram lado a lado.

A vendedora falou à companheira como se continuasse uma conversa:

- ... pois na infância eu carregava pequenos fechos de lenha na cabeça e às vezes brincava na beira da lagoa. Lembro também dos mané magos que apareciam aos montes quando o tempo estava bom, das formigas de asas perto de uma chuva forte depois dum tempão seco, de quando a gente ia comprar coisa na bodega, tinha uma balança assim que dum lado o bodegueiro colocava um peso, tu lembra? A gente brincava a tarde toda no areal, mas isso era quando eu não tinha nem dez anos. Quando estava quase de noite, a mamãe mandava tomar banho e se preparar para o jantar. A nossa casinha naquela época era boa, tinha até o retrato da santíssima trindade na sala. Depois que meu pai se foi tudo ficou ruim, a gente se mudou!

Após uma pausa, como se estivesse arrumando os pensamentos, a vendedora então arrematou:

- Meu sonho é me aposentar e o dinheiro que eu apurar nessas vendas seja apenas para comprar as minhas coisinhas. Agora eu tenho que pagar o aluguel, a luz, que atrasei no mês passado, e a comida. Minha filha mais velha mora a duas casas da minha mas não tem coragem de me dar nem um prato de comida. Se Deus quiser, vou me aposentar.

A amiga discorreu um pouco sobre a sua moradia atual no que a vendedora de pamonha retrucou:

- A minha casa é pequena mas o meu sonho é comprar uma casinha lá para a Palpina. Ou então comprar um terreninho, depois arranjar uns tijolos, umas ripas, uns caibros, as telhinhas, você sabe. Mas eu precisaria dessa aposentadoria. Com o dinheiro das vendas, no máximo, às vezes eu vou pintar as unhas. Mas não faço as unhas dos pés. A minha filha mais nova foi num salão de beleza e viu um serviço bem barato e furaram um dedo do pé dela e já tá há um ano inflamado. Agora está também saindo pus. Tô até preocupada, mas o marido dela num tá nem aí, e também a cunhada. Acho que vou ter que levar ela no médico. Não sei como vai ser porque ela está no sétimo mês. Mulher grávida pode tomar antibiótico?

A senhora que estava do outro lado, ao ouvir essa fala, entrou na conversa.

- A gente tem que ter cuidado com as clínicas de beleza baratas. Para mexer nos pés das clientes a pessoa tem que ter um curso de podologia. Eu trabalho em clínicas desde os quatorze anos, estou com trinta anos. Fiz curso de cabeleireiro, tenho o meu diploma, sabe? Na clínica de beleza que trabalho a gente não engana a cliente apenas para ganhar mais dinheiro. Eu digo logo: “olha, esse tratamento não serve para o seu cabelo”. O pessoal diz que tem tratamento sem química, mas isso não existe. Seja alisamento, luzes, permanente, relaxamento, progressiva, tudo tem química, o que difere os tratamentos é a quantidade de química. Tudo tem formol. Por menos que tenha, mas tem formol. A gente tem que ser honesta.

Após um pequeno intervalo para respirar a cabeleireira, que usava grandes óculos e tinha o cabelo ligeiramente estirado, continuou:

- Às vezes a pessoa vai para um lugar mais barato e depois tem que gastar mais dinheiro. É como o povo diz, é o barato que sai caro. Faz uma alisamento de sessenta reais por trinta reais; aí usaram um produto de qualidade inferior, e então, para que serviu a economia? Para fazer a unha, tem que ir a uma podologista, tem que pedir o certificado de curso de podologia. A senhora tem que ir procurar uma podologista para a filha da senhora, ela vai fazer o tratamento correto.

E a amiga da vendedora:

- Como ela está grávida acho que tem que levar num posto de saúde para saber se ela pode tomar o antibiótico.

Enquanto o ônibus avançava num trecho com menos engarrafamento, a conversa parece ter atingido fundo o coração da vendedora e ela repetiu por três vezes:

- Eu vou pagar a consulta para a minha filha. Se eu não ajudar, não tem quem ajude.

E a cabeleireira:

- Eu tenho uma amiga que acho que é a melhor podologista da cidade. Ela trabalha numa clínica que fica atrás do shopping North Paradise. O nome dela é Verinha. A senhora chega lá e procura ela.

No que a vendedora falou:

- Nem que a consulta seja duzentos reais eu vou pagar para a minha filha.

E quando o coletivo quase chegava ao centro da cidade a cabeleireira levantou-se, despediu-se "vá ver a minha amiga", passou a roleta e sumiu na multidão. E a vendedora ficou na sua cadeira, triste, pensativa.

Olhando as calçadas da avenida onde o ônibus agora avançava, chamou a atenção da vendedora um mendigo que dormia sobre papelões na escadaria de imponente prédio pertencente a um banco. A cor de suas vestimentas lembrava a da vendedora de canjica, que se encontrava calada nesse momento. Alguém poderia dizer que se tratava de uma confraria. Uma confraria diferente, forçada, forjada por séculos de excessivos privilégios e exclusões.

O ônibus terminaria a sua jornada em um terminal no outro lado da cidade. Continuou o seu trajeto por mais uns quinze minutos, período em que a vendedora cochilou e a sua companheira distraiu-se olhando pela janela do outro lado.

Próximo à parada de descida, a vendedora de pamonha ajeitou o seu gigolete, pegou algumas moedas no bolso da calça jeans para pagar a passagem e tentou convencer o trocador de que deveria descer pela porta traseira por causa do peso das pamonhas e das canjicas. Avançava resolutamente em direção a mais um dia de duro trabalho. Seus fregueses certamente a esperavam na porta de uma fábrica ou de uma esquina movimentada. Com sua dor quase solitária, mas se expressando firmemente, ela gritaria:

- Olha a pamonha, olha a canjica. Pamonha e canjica fresquinha!

Entretanto, assim que ela desceu, a tira da sandália esquerda rompeu-se fazendo-a tropeçar e derrubar ao chão parte das pamonhas e das canjicas. Na claridade da manhã pareciam pepitas de ouro que um explorador desastrado derrubara na beira do caminho. Com a ajuda da amiga, com o joelho ralado e uma mão ensanguentada, ela se levantou e enxugou o sangue na lateral da calça. A mulher – toda desejo de liberdade – deixou fugir uma lágrima que correu pelo seu rosto envelhecido.

Enquanto o ônibus se afastava, ainda consegui ver um pouco de canjica derramada na sarjeta e alguns transeuntes que ajudavam a vendedora a juntar as pamonhas e os potinhos que continuavam fechados. 

P.T.C. Freire, agosto de 2021.

Esta crônica foi finalista do II Concurso Literário da Semana do Servidor, promovido pela Secretaria de Cultura Artística da Universidade Federal do Ceará em 2021. Foi publicada no livro "Coletânea Travessias. Contos e Crônicas - Vol. II". Organizadores: Joaquim Melo de Albuquerque, Maria Pinheiro Pessoa, Lady Dayana Oliveira. Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará (UFC), 2021.


domingo, 5 de dezembro de 2021

Todas as cores de 2046

"2046" é um filme dirigido por Wong Kar-Wai, com produção da China, Hong Kong, França, Itália e Alemanha (2004). Antes de falar dele é importante falar do In the mode for love, filme de 2000 (China, Hong Kong, França) do mesmo diretor. A história se passa no início da década de 60 em Hong Kong. O jornalista Sr. Chow (Tony Leung Chiu-Wai)  e a secretária Su Li Zhen, interpretada por Maggie Cheung (que fará grande sucesso no papel de Flying Snow, do filme Herói) descobrem que os seus respectivos cônjuges os estão traindo. Os dois começam a sair para jantar e então inicia-se uma cooperação entre eles na escritura de um livro. O Sr. Chow se apaixona por Su Li, mas a paixão não é correspondida, ou pelo menos, a secretária não permite que o relacionamento seja fortalecido. Decepcionado, o jornalista viaja para Cingapura e perde o contato com a secretária, nunca mais eles conseguem se encontrar. Num dos não encontros ouve-se a música 'Quizas, quizas, quizas'. O filme termina alguns anos depois com a secretária saindo com o seu pequeno filho.


Maggie Cheung, como a secretária Su Li Zhen.

Pois bem, falemos do filme 2046. O número refere-se ao quarto de hotel onde o jornalista Sr. Chow, no passado, escreveu um livro com a secretária Su Li Zhen. Agora ele o utiliza como o título de um conto futurista. O filme trata de amores e perdas (de certa forma é a continuação da história In the mood for love). Como falado num determinado momento da história, 'todas as lembranças são vestígios de lágrimas'. O protagonista busca no futuro algo perdido no passado e o trem que parte para o futuro para recuperar esse passado, jamais o traz de volta. Em novos amores, o Sr. Chow não consegue encontrar a essência do que ficou para trás. No elenco, além de Tony Leung (In the mood for love) que interpreta o jornalista, também estão atrizes de filmes de sucesso como Zhang Liyi (O Tigre e o Dragão, Herói, O Clã das Adagas Voadoras e o menos famoso, mas belíssimo O Caminho para Casa), Gong Li (Lanternas Vermelhas) e Faye Wong (Chungking Express). Dois aspectos que me chamaram particularmente a atenção foram as músicas (há inclusive uma que fez sucesso no Brasil há décadas na voz de Francisco Alves) e as cores dos personagens nos cenários. Um filme com várias matizes.


Faye Wong, como a andróide apaixonada.



Zhang Liyi, como a personagem Bai Ling, na tristeza de sua solidão.


Gong Li, como a personagem Su Li Zhen, lembrança de uma antiga paixão.