terça-feira, 24 de março de 2015

Procura-se

Tarso Freire *

     O conto reproduzido abaixo possui uma história bastante interessante: certa vez na cantina do IFCH bati um longo papo com uma aluna de Filosofia, a qual não citarei nome pois o que relatarei a seguir é não autorizado. Na conversa descobrimos que havíamos habitado, quando de nossa chegada à Campinas (em épocas diferentes, naturalmente), o mesmo familiar hotel. Mas a maior coincidência é que havíamos ficado exatamente no mesmo quarto. Isto porque só havia um quarto no sótão do casarão. Mas o quarto era cheio de coisas velhas, com dezenas de livros, cujas páginas quebravam-se ao contato com as mãos, além de centenas de papéis rabiscados. Quando retirou-se do hotel, contou-me a garota, levou uma pasta repleta destes papéis velhos, pura travessura. Por ter sido obrigada a fazer uma viagem em agosto do ano passado, a filósofa deixou-me a pasta com os tais papéis e, arrependida, pediu-me que encontrasse o verdadeiro dono. Nesta pasta havia dois contos, um dos quais é reproduzido abaixo, uma carta endereçada a uma certa Maria Filomena, e setenta e três aquarelas belíssimas, todas assinadas por H.S.S.P. Voce. Como elas devem valer um dinheiro razoável no mercado de arte, retornei para devolver a algum dos donos do hotel, mas para minha surpresa o prédio situado na avenida Morais Sales havia sido demolido. Procurei achar alguém com o sobrenome Voce. Na lista telefônica de Campinas de 94 não existia ninguém com este sobrenome. Mas folheando na Telesp listas antigas encontrei um assinante chamado J.P. Voce. O nome deste assinante constava até o ano de 1989, depois do qual desapareceu das listas. Mesmo assim, telefonando para o número de 89 fui informado de que se tratava de uma loja de livros antigos especializada em religiões antigas e sociedades secretas, que ninguém ali conhecia o Sr. Voce e que o telefone pertencia à loja desde 1982!!! Descobri, no acervo histórico do IFCH, que um certo senhor Ferdinando Castilho Voce, havia trabalhado para o Sr. Barão Geraldo há muito tempo atrás, quando Campinas não passava de uma cidadezinha. Corria a lenda, na época, que o Sr. Ferdinando possuía minas de diamantes lá nas Gerais, como está escrito num livro sobre o interior paulista no início do século. Mas os descendentes deste Sr. Voce estão desaparecidos, ou talvez, este H.S.S.P. Voce tenha sido a última pessoa da família. (Gostaria de destacar que os papéis referentes ao Sr. Ferdinando não estavam mais disponíveis ao público na semana seguinte. Indagando o porquê, recebi como resposta da bibliotecária que aqueles papéis haviam sido requisitados por um pesquisador da USP!?) Por isto publico o conto abaixo: na esperança de encontrar uma pessoa que possua verdadeiros direitos sobre as aquarelas. Então, se o leitor tiver informação a respeito de alguém que assine com o sobrenome Voce, eu agradeceria imensamente. Atenciosamente, P.T.C. Freire. (observações - a: as informações a este respeito podem ser enviadas para o endereço eletrônico da APGF; b: a grafia das palavras do conto foram atualizadas, evitando-se assim os "l"s dobrados, os "ph"s no lugar de f, os "ct" e coisas do gênero, para facilitar a vida do leitor; c: no final do texto, escrito claramente com tinta diferente e na diagonal da folha de papel foram rabiscadas as letras Sá. - Si., que devido não se encaixarem no contexto do conto, foram suprimidas na reprodução).

      A morte do escritor
         H.S.S.P. Voce

    O Escritor pegou o resultado do exame feito com células do tumor que o incomodava há tempos, dobrou-o, colocou-o no bolso da calça um pouco velha e foi em direção ao bar mais agitado do centro da cidade. A cidade lhe dava forças e a praça central era o símbolo dentro do símbolo. Ele já possuía a frase com que começaria o seu próximo livro: "Qualquer forma de amor que possua algum resquício de egoismo, mesmo estando a um milhão de anos luz de distância, já está contaminado e não é mais verdadeiro." Era sua prática pensar durante algum tempo em cada frase antes de escrevê-la. "Qualquer forma de amor... parece-me bom", e assim pensando chegou ao bar e pediu a sua bebida preferida. Seria bom olhar o anúncio de uma eventual desgraça com o conforto do álcool amigo.
    O ambiente por alguns segundos pareceu-lhe estranho, como se os clientes, os garçons, copos, garrafas, fumaça, nada daquilo pertencesse ao mundo, ou então, que ele é que fosse o intruso no ambiente. A entrada de um mendigo pedindo um copo de aguardente destruiu a sua estranheza do mundo. Com aquela imagem o escritor imaginou que a dor da úlcera daquele pobre homem seria um conforto para suas mágoas e seus sofrimentos; até a própria dor para ele poderia ser um remédio, uma espécie de analgésico para uma dor maior. O pobre diabo deu um ligeiro sorriso para um copo vazio.
    Mas enquanto o mendigo tratava de encher o seu copo para novamente deixá-lo repleto de ar, o escritor colocou a mão no bolso e começou a desenrolar o papel com o resultado do seu exame. Estava um clima quente e seco e sem nenhuma razão aparente veio-lhe à mente "As flores do mal" e sentiu a presença iluminada do outro poeta. Uma estrela, um coração sangrando - a luz, era necessário luz!
    A sua vida não havia sido muito boa até aquele momento. Era um eufemismo. A vida havia sido um passear por sarjetas, embora aqueles momentos de boa leitura lhe dessem um prazer que o ar não lhe dava, um prazer maior que escrever os seus livros. E escrever livros era, na verdade, a ilusão de um escritor que era o narrador de um livro que começaria com a frase "Qualquer forma de amor...", livro este que contaria a história de um escritor que estava com cancro.
    Por causa disso ele poderia ser chamado de farsante, embora ele se sentisse apenas como uma pessoa que rasgava, desesperadamente, uma após outra, as cortinas da mentira. Mesmo sabendo que o número delas era infinito.
    O mendigo virou novamente o copo com uma vontade absurda. O mundo que dava voltas iguais para ele era o mundo que girava igual e cinicamente para todos. O suicídio lento e silencioso do pobre diabo era apenas o pungente grito de revolta contra a situação que o estava conduzindo à morte.
    Leu o escritor o resultado: era maligno! Neste momento foi como se o mundo todo acabasse e restassem apenas ele e aquela maldita folha de papel. Apesar de saber da possibilidade de poder receber a pior notícia, ele possuía a secreta certeza de que esta jamais viria. A sentença em suas mãos silenciou para sempre o mundo: nunca os verdes olhos de que Camões cantara possuiria mais a mesma beleza e nunca mais ele se permitiria atravessar a barreira dos cristalinos e tentar compreender as manifestações irracionais, ou não, dos que cruzavam o seu caminho.
    E escreveu esta carta:
    "Minha adorável e doce senhora Marta, agora que o mundo faz menos sentido ainda, vou partir. Ter que suportar o fardo desta... a falta de ar, estes ambientes sufocantes, estes quartos sujos, a eterna queda em direção à lama que poderia inclusive purificar o mais sujo dos humanos, purificá-lo de sua angústia esmagadora, de sua consciência do ... vazio, do nada que o chama como a chama luminosa que atrai as feras na floresta em noite escura; eu gostaria que minha carta testamento tivesse a eloquência do silêncio: que nesta noite tenebrosa de agosto de novecentos e quatorze não dissesse absolutamente nada!
    João Ladino Péricles, o seu criado que parte."
    A vila de São Carlos é testemunha. O escritor João Péricles desapareceu pouco a pouco consubstanciando-se no vácuo, como se fosse uma sombra que se dissolve vagarosamente com o cair da tarde, assustada com a chegada da noite...


* Este texto foi publicado originalmente no Jornal da APGF (Associação de Pós-Graduandos de Física da Unicamp), em janeiro de 1995. Durante uma mudança, quando deixei a cidade de Campinas - em julho de 1995 - todas as aquarelas e muitos livros que possuía foram extraviados. Mas fiquei acompanhando notícias sobre exposições de pinturas e aquarelas que ocorriam pelo Brasil durante muito tempo, na expectativa de encontrar algum indício que me levasse de volta às belas aquarelas. Tive a sorte de reconhecer numa chamada de uma exposição em determinado museu de arte moderna, uma das aquarelas (ou algo muito semelhante) desaparecida dez anos antes. Como a exposição ocorrera em uma cidade bastante distante de onde morava na época, não foi possível conferir se se tratava de uma das aquarelas extraviadas. Posteriormente, ao relatar estes acontecimentos para um colega que pesquisa sobre sociedades secretas existentes desde a Idade Média - não que eu acredite que exista alguma mínima relação entre elas e esta história - ele comentou que "Sá - Si" poderia ser interpretado como Sábios de Sião, uma misteriosa sociedade secreta secular com origem na Europa e com possível ramificação aqui no Brasil trazida por algum membro da corte de D. João VI. Embora crível, preferi descartar tal hipótese. Dei, então, por encerrada esta história.