sábado, 11 de dezembro de 2021

A vendedora ambulante

O ônibus que eu apanharia apontou no final da rua e avançou rapidamente. Subi no transporte resignado com a longa viagem que teria que enfrentar até atingir o meu destino. Antes de chegar à próxima parada comecei a pensar nas várias tarefas que teria que realizar naquele dia, na requisição que teria que fazer... 

Mas de repente, o motorista freou bruscamente e fez torcer os pescoços de vários dos passageiros. Na parada tentou subir uma senhora com uma caixa repleta de pamonhas e de canjicas. Quando tomo o ônibus das sete, ela sempre sobe nessa parada. Nesse dia a caixa estava aparentemente mais pesada do que de costume e a senhora não conseguia elevá-la acima do primeiro degrau. Ajudei, pois era um dos que se encontravam mais próximos das escadas da subida; fiz um esforço enorme e, com grande dificuldade, conseguimos adentrar os produtos da vendedora ambulante.

Com a vendedora de pamonha subiu também uma outra senhora, talvez sua irmã ou uma amiga, que trazia uma sacola também repleta de produtos. Elas se colocaram na parte traseira do ônibus e começaram uma conversação. Em breve algumas cadeiras ficaram vazias e elas se sentaram lado a lado.

A vendedora falou à companheira como se continuasse uma conversa:

- ... pois na infância eu carregava pequenos fechos de lenha na cabeça e às vezes brincava na beira da lagoa. Lembro também dos mané magos que apareciam aos montes quando o tempo estava bom, das formigas de asas perto de uma chuva forte depois dum tempão seco, de quando a gente ia comprar coisa na bodega, tinha uma balança assim que dum lado o bodegueiro colocava um peso, tu lembra? A gente brincava a tarde toda no areal, mas isso era quando eu não tinha nem dez anos. Quando estava quase de noite, a mamãe mandava tomar banho e se preparar para o jantar. A nossa casinha naquela época era boa, tinha até o retrato da santíssima trindade na sala. Depois que meu pai se foi tudo ficou ruim, a gente se mudou!

Após uma pausa, como se estivesse arrumando os pensamentos, a vendedora então arrematou:

- Meu sonho é me aposentar e o dinheiro que eu apurar nessas vendas seja apenas para comprar as minhas coisinhas. Agora eu tenho que pagar o aluguel, a luz, que atrasei no mês passado, e a comida. Minha filha mais velha mora a duas casas da minha mas não tem coragem de me dar nem um prato de comida. Se Deus quiser, vou me aposentar.

A amiga discorreu um pouco sobre a sua moradia atual no que a vendedora de pamonha retrucou:

- A minha casa é pequena mas o meu sonho é comprar uma casinha lá para a Palpina. Ou então comprar um terreninho, depois arranjar uns tijolos, umas ripas, uns caibros, as telhinhas, você sabe. Mas eu precisaria dessa aposentadoria. Com o dinheiro das vendas, no máximo, às vezes eu vou pintar as unhas. Mas não faço as unhas dos pés. A minha filha mais nova foi num salão de beleza e viu um serviço bem barato e furaram um dedo do pé dela e já tá há um ano inflamado. Agora está também saindo pus. Tô até preocupada, mas o marido dela num tá nem aí, e também a cunhada. Acho que vou ter que levar ela no médico. Não sei como vai ser porque ela está no sétimo mês. Mulher grávida pode tomar antibiótico?

A senhora que estava do outro lado, ao ouvir essa fala, entrou na conversa.

- A gente tem que ter cuidado com as clínicas de beleza baratas. Para mexer nos pés das clientes a pessoa tem que ter um curso de podologia. Eu trabalho em clínicas desde os quatorze anos, estou com trinta anos. Fiz curso de cabeleireiro, tenho o meu diploma, sabe? Na clínica de beleza que trabalho a gente não engana a cliente apenas para ganhar mais dinheiro. Eu digo logo: “olha, esse tratamento não serve para o seu cabelo”. O pessoal diz que tem tratamento sem química, mas isso não existe. Seja alisamento, luzes, permanente, relaxamento, progressiva, tudo tem química, o que difere os tratamentos é a quantidade de química. Tudo tem formol. Por menos que tenha, mas tem formol. A gente tem que ser honesta.

Após um pequeno intervalo para respirar a cabeleireira, que usava grandes óculos e tinha o cabelo ligeiramente estirado, continuou:

- Às vezes a pessoa vai para um lugar mais barato e depois tem que gastar mais dinheiro. É como o povo diz, é o barato que sai caro. Faz uma alisamento de sessenta reais por trinta reais; aí usaram um produto de qualidade inferior, e então, para que serviu a economia? Para fazer a unha, tem que ir a uma podologista, tem que pedir o certificado de curso de podologia. A senhora tem que ir procurar uma podologista para a filha da senhora, ela vai fazer o tratamento correto.

E a amiga da vendedora:

- Como ela está grávida acho que tem que levar num posto de saúde para saber se ela pode tomar o antibiótico.

Enquanto o ônibus avançava num trecho com menos engarrafamento, a conversa parece ter atingido fundo o coração da vendedora e ela repetiu por três vezes:

- Eu vou pagar a consulta para a minha filha. Se eu não ajudar, não tem quem ajude.

E a cabeleireira:

- Eu tenho uma amiga que acho que é a melhor podologista da cidade. Ela trabalha numa clínica que fica atrás do shopping North Paradise. O nome dela é Verinha. A senhora chega lá e procura ela.

No que a vendedora falou:

- Nem que a consulta seja duzentos reais eu vou pagar para a minha filha.

E quando o coletivo quase chegava ao centro da cidade a cabeleireira levantou-se, despediu-se "vá ver a minha amiga", passou a roleta e sumiu na multidão. E a vendedora ficou na sua cadeira, triste, pensativa.

Olhando as calçadas da avenida onde o ônibus agora avançava, chamou a atenção da vendedora um mendigo que dormia sobre papelões na escadaria de imponente prédio pertencente a um banco. A cor de suas vestimentas lembrava a da vendedora de canjica, que se encontrava calada nesse momento. Alguém poderia dizer que se tratava de uma confraria. Uma confraria diferente, forçada, forjada por séculos de excessivos privilégios e exclusões.

O ônibus terminaria a sua jornada em um terminal no outro lado da cidade. Continuou o seu trajeto por mais uns quinze minutos, período em que a vendedora cochilou e a sua companheira distraiu-se olhando pela janela do outro lado.

Próximo à parada de descida, a vendedora de pamonha ajeitou o seu gigolete, pegou algumas moedas no bolso da calça jeans para pagar a passagem e tentou convencer o trocador de que deveria descer pela porta traseira por causa do peso das pamonhas e das canjicas. Avançava resolutamente em direção a mais um dia de duro trabalho. Seus fregueses certamente a esperavam na porta de uma fábrica ou de uma esquina movimentada. Com sua dor quase solitária, mas se expressando firmemente, ela gritaria:

- Olha a pamonha, olha a canjica. Pamonha e canjica fresquinha!

Entretanto, assim que ela desceu, a tira da sandália esquerda rompeu-se fazendo-a tropeçar e derrubar ao chão parte das pamonhas e das canjicas. Na claridade da manhã pareciam pepitas de ouro que um explorador desastrado derrubara na beira do caminho. Com a ajuda da amiga, com o joelho ralado e uma mão ensanguentada, ela se levantou e enxugou o sangue na lateral da calça. A mulher – toda desejo de liberdade – deixou fugir uma lágrima que correu pelo seu rosto envelhecido.

Enquanto o ônibus se afastava, ainda consegui ver um pouco de canjica derramada na sarjeta e alguns transeuntes que ajudavam a vendedora a juntar as pamonhas e os potinhos que continuavam fechados. 

P.T.C. Freire, agosto de 2021.

Esta crônica foi finalista do II Concurso Literário da Semana do Servidor, promovido pela Secretaria de Cultura Artística da Universidade Federal do Ceará em 2021. Foi publicada no livro "Coletânea Travessias. Contos e Crônicas - Vol. II". Organizadores: Joaquim Melo de Albuquerque, Maria Pinheiro Pessoa, Lady Dayana Oliveira. Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará (UFC), 2021.


domingo, 5 de dezembro de 2021

Todas as cores de 2046

"2046" é um filme dirigido por Wong Kar-Wai, com produção da China, Hong Kong, França, Itália e Alemanha (2004). Antes de falar dele é importante falar do In the mode for love, filme de 2000 (China, Hong Kong, França) do mesmo diretor. A história se passa no início da década de 60 em Hong Kong. O jornalista Sr. Chow (Tony Leung Chiu-Wai)  e a secretária Su Li Zhen, interpretada por Maggie Cheung (que fará grande sucesso no papel de Flying Snow, do filme Herói) descobrem que os seus respectivos cônjuges os estão traindo. Os dois começam a sair para jantar e então inicia-se uma cooperação entre eles na escritura de um livro. O Sr. Chow se apaixona por Su Li, mas a paixão não é correspondida, ou pelo menos, a secretária não permite que o relacionamento seja fortalecido. Decepcionado, o jornalista viaja para Cingapura e perde o contato com a secretária, nunca mais eles conseguem se encontrar. Num dos não encontros ouve-se a música 'Quizas, quizas, quizas'. O filme termina alguns anos depois com a secretária saindo com o seu pequeno filho.


Maggie Cheung, como a secretária Su Li Zhen.

Pois bem, falemos do filme 2046. O número refere-se ao quarto de hotel onde o jornalista Sr. Chow, no passado, escreveu um livro com a secretária Su Li Zhen. Agora ele o utiliza como o título de um conto futurista. O filme trata de amores e perdas (de certa forma é a continuação da história In the mood for love). Como falado num determinado momento da história, 'todas as lembranças são vestígios de lágrimas'. O protagonista busca no futuro algo perdido no passado e o trem que parte para o futuro para recuperar esse passado, jamais o traz de volta. Em novos amores, o Sr. Chow não consegue encontrar a essência do que ficou para trás. No elenco, além de Tony Leung (In the mood for love) que interpreta o jornalista, também estão atrizes de filmes de sucesso como Zhang Liyi (O Tigre e o Dragão, Herói, O Clã das Adagas Voadoras e o menos famoso, mas belíssimo O Caminho para Casa), Gong Li (Lanternas Vermelhas) e Faye Wong (Chungking Express). Dois aspectos que me chamaram particularmente a atenção foram as músicas (há inclusive uma que fez sucesso no Brasil há décadas na voz de Francisco Alves) e as cores dos personagens nos cenários. Um filme com várias matizes.


Faye Wong, como a andróide apaixonada.



Zhang Liyi, como a personagem Bai Ling, na tristeza de sua solidão.


Gong Li, como a personagem Su Li Zhen, lembrança de uma antiga paixão.


quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Duzentos anos na casa dos mortos

Há exatamente 200 anos, em 11 de novembro de 1821, nascia em São Petersburgo, na Rússia, um dos grandes escritores da literatura russa, Fiódor Dostoiévski. Para comemorar, vou fazer um brevíssimo comentário, pequeno resumo na verdade, de sete das primeiras obras do romancista russo.

"Pobre gente" é a história de um velho funcionário público, Makar Alieksiéievith, solteiro, que vive numa pensão miserável e é apaixonado (ou teria uma grande preocupação paternal, não é muito claro) por uma pobre moça, Varvara Aliekséievna. Em cartas trocadas percebe-se a vida dura que eles e os seus conhecidos levam: "também nele [no quarto] se respira um ar um pouco úmido; quero dizer: não pretendo dar a entender que cheira mal nos quartos, mas que... enfim, que exalam um cheiro putrefato (...)". Também são relatadas as tarefas sem sentido que executam: "Sentia-me tão feliz! Ansioso por gastar energias, atirei-me ao trabalho sobre a papelada. E em que acabou afinal tudo isso? Aconteceu que ao relancear a vista à minha volta, tornei a encontrar tudo como dantes... cinzento e insípido". Makar tem saudade da antiga pensão em que morara por vinte anos. Apesar do amor que sente, Makar fala que se sente como um pai para Varvara. Já essa conta por carta e também através de um caderno onde fizera anotações, a sua vida presente e pregressa. Na leitura do caderno descobre-se a grande admiração da moça por um colega de pensão que morrera muito jovem, Pietienhka, um leitor voraz e um amante do grande poeta Púchkin. As trocas de cartas e a sucessão de frustrações por causa da miséria de Makar e de Varvara acaba quando essa última recebe uma proposta de casamento e se muda com o marido para o interior. E nunca mais haverá troca de correspondência. Um triste final.

"O duplo" é outra obra muito gostosa de se ler. Conta a história de um funcionário público, esquizofrênico e com outras alterações psicológicas. Logo o primeiro parágrafo suscitaria uma longa discussão. Em primeiro lugar ele mostra um embate entre a realidade do mundo quando alguém está acordado e o mundo dos sonhos. "(...) Durante dois minutos continuou deitado sem fazer um movimento, como alguém que não sabe bem se ainda dorme ou se já está acordado, se já está rodeado do mundo real ou se continuava a sonhar. Em breve, porém, o senhor Goliádkin sentiu claramente que lhe voltavam as impressões habituais. As paredes do pequeno quarto cobertas de pó (...)" Aqui claramente há uma ambiguidade, pois o que significaria 'impressões habituais'? Em segundo lugar ele se relaciona com o início de "Aurélia", de Geràrd de Nerval, obra que relata as impressões de um esquizofrênico. Logo no começo da obra de Nerval aparece uma frase paradigmática: "O sonho é uma segunda vida". Aqui também a questão do que á a realidade dominará toda a história de "Aurélia", em forte correspondência com a obra de Dostoiévski. Enquanto esse último tenha escrito "O duplo" em 1845 e Nervàl tenha publicado a sua obra em 1855, é bem provável que o francês não conhecesse a obra do colega russo. Em terceiro lugar, o parágrafo inicial relata um despertar como também é um despertar o começo do romance "Em busca do tempo perdido", de Proust. Ainda em relação à obra de Proust podemos notar uma semelhança com as incertezas que se dissipam com o acordar, e esse seria o quarto ponto de destaque no parágrafo original de "O duplo". Proust nos fala: "Sem dúvida que eu estava agora bem desperto, meu corpo dera uma última volta e o bom anjo da certeza imobilizara tudo ao redor de mim, deitara-me sob minhas cobertas, em meu quarto, e pusera aproximadamente em seu lugar, no escuro, minha cômoda, minha mesa de trabalho, minha lareira, a janela da rua e as duas portas". Pois bem. O romance "O duplo" é uma sucessão de fatos num período da vida de Iákov Petróvitch Goliádkin, fatos esses caracterizados por uma clara perseguição realizada a ele por um novo funcionário do seu trabalho que tem exatamente a mesma fisionomia, é oriundo da mesma região de Goliádkin e tem exatamente o seu nome. Esse duplo o persegue e o coloca sempre em situações delicadas. Na tentativa de denunciar as vilanias do seu sósia aos seus superiores, o Sr. Goliádkin vai se enrolando numa teia de estranhos acontecimentos que ele não consegue mais sair. Certamente, todos devem tê-lo como um louco e o final de sua história é morar num local isolado, longe da sociedade de São Petersburgo.

"O senhor Prokhártin" é um romance/conto escrito em 1846, que foi todo destroçado pelas tesouras dos censores, de acordo com os estudiosos da obra de Dostoiévski. Segundo o próprio autor, o conto ficou irreconhecível. A censura se deveu ao fato de Dostoiévski tratar dos dias finais da vida de um miserável, enlouquecido e também avarento funcionário público. A pobreza de um funcionário público já havia sido explorada no seu primeiro romance Pobre Gente (1844-46) enquanto que a loucura, também relacionada a um funcionário público (esquizofrênico), fora explorado pelo mestre em O Duplo (1845-46). A edição brasileira preparada por Natália Nunes e Oscar Mendes para a Nova Aguilar, mostra que o senhor Siemion Ivânovitch Prokhártchin, mora no mais sombrio e humilde canto de uma pensão e vive com poucos recursos por causa de seu baixo salário. Ao morrer deixa uns poucos objetos num velho baú e algum dinheiro no interior de um colchão. No leito fúnebre, parece que as preocupações abandonam definitivamente o velho funcionário. "Ali estava, muito tranquilo, como quem tem a consciência em paz, como se não tivesse sido o autor de todas aquelas partidas para enganar as pessoas de bem da maneira mais ignóbil. Já não ouvia o pranto de sua desamparada hospedeira (...). Parecia ter ganho muito em inteligência e conservava o olho direito meio fechado, como se tivesse querido agarrar à pressa alguma ideia muito importante que não tivera tempo de desembrulhar..."

Na "A dona da casa" Dostoiévski apresenta uma bela história de um jovem apaixonado. Vassíli Ordínov é o jovem que se apaixona pela bela Ekatierina, esposa do velho Iliá Murin. Ekatierina foi raptada pelo velho Murin quando seus pais estavam morrendo, numa noite verdadeiramente tenebrosa. "O coração me dizia que algum acontecimento grave se ia dar em nossa casa. Por isso não nos deitamos. A noite passou devagar. De novo na escuridão se levantou um temporal e a minha alma encheu-se de inquietação. Abri a janela... tinha o rosto em fogo e o meu coração não podia achar sossego". Murin leva Ekatierina para a cidade e lá a mantém sob o seu domínio como se ela estivesse presa por algum sortilégio. Na cidade, muito tempo depois, Ordínov encontrará Ekatierina mas será afastado contundentemente por Murin. O estudante irá morar num quarto na casa do casal e lá terá a oportunidade de ver que Ekatierina carrega uma culpa e chora e reza frequentemente em frente às imagens para expiá-la. A fixação de Ordínov por Ekatierina o levará para muito próximo da loucura. Assim, Ordínov abandonará a sua paixão pela ciência, a sua obstinação pela leitura sistemática, o seu desejo de organizar as suas ideias num livro. "Quem sabe se ele teria podido dar ao mundo qualquer ideia grande, original e nova! Talvez estivesse destinado a evidenciar-se na ciência. Pelo menos tinha chegado a pensar nisso, noutro tempo. E uma fé sincera torna-se por si uma garantia para o futuro. Agora, porém, ria-se daquela sua confiança e... não avançava um passo". Ordínov perderá, sem chegar a conquistá-la, Ekatierina. Para sempre. 

"Um romance em nove cartas" é uma brevíssima história apreendida entre nove cartas trocadas por dois amigos que vão se agredindo por um mal entendido até se tornarem inimigos: Piotr Ivânovitch e Ivan Pietóvitch. O nome dos amigos parece já uma pilhéria. A partir das cartas eles marcam encontros para se explicarem um ao outro, mas por motivos variados eles nunca acontecem. Parece ser um treinamento de escrita do grande escritor que está aprendendo com a lida.

"Polzunkov" é um conto bem curto no qual é relatada a história, pelo próprio personagem Polzunkov, que ganhava a vida fazendo palhaçadas na rua, como el quase conseguira se casar e o porquê de não ter dado certo o seu casamento. O fracasso nessa tentativa, a demissão do emprego e a vida de quase mendigo que levava eram aspectos distintos de uma mesma realidade: "Naquela cara podia observar-se tudo: vergonha, descaramento, cólera, o abatimento do fracasso, súplicas de perdão, a consciência do próprio valor e, ao mesmo tempo, a plena consciência da própria insignificância... Tudo isso passava em relâmpagos por aquele semblante."

"Coração Frágil" se refere à história de um pobre funcionário, Vássia Chumkov, e de seu amigo, também funcionário, Arkádi Ivânovitch. Se um leitor aprecia a obra de Dostoiévski e a explora na ordem cronológica de sua escritura percebe que o tema 'funcionário modesto', que aparece nessa obra, revisita os personagens Makar Alieksiéievitch (Pobre Gente), o senhor Goliádkin (O dublo) e Prokhártchin (O senhor Prokhártchin). Vássia ganha um dinheirinho extra copiando documentos em sua casa à noite ou nos finais de semana, o que permite que ele fique noivo de uma moça muito bondosa, Lisanhka. Este representa um momento de grande felicidade, mas o medo imenso de não conseguir finalizar um trabalho e ele perder os recursos extras faz com que ele enlouqueça. Levado para um abrigo para doentes mentais, o casamento jamais acontecerá. Lisa casará com outra pessoa, apesar do amor que ela sentia por Vássia, e Arkádi perderá para sempre o amigo. "Um sentimento estranho se apoderou do desventurado amigo do pobre Vássia (...) Compreendeu de repente o sentido de tudo o que acontecera, compreendeu por que é que Vássia não tinha podido resistir à felicidade e perdera a razão. Tremiam-lhe os lábios, brilhavam-lhe os olhos, empalidecia perante aquela novidade que se revelava".

Uma saudação, então, ao grande Dostoiévski, eterno sobrevivente da casa dos mortos!


domingo, 19 de setembro de 2021

Centenário: Paulo Freire

Hoje comemoramos os 100 anos de nascimento do educador Paulo Freire. 

Paulo Freire afirmava que o povo deveria ser reconhecido na sua criatividade, na sua capacidade de produzir conhecimento, de criar arte; aquilo que o movia era uma compreensão crítica da educação, da prática educativa. Ele acreditava na tarefa histórica dos oprimidos libertarem-se a si próprios e aos opressores. Esses últimos precisam que a injustiça não tenha fim para manterem a falsa generosidade. "A ordem social injusta é a fonte geradora, permanente, dessa 'generosidade' que se nutre da morte, do desalento e da miséria".

Para Paulo Freire a conscientização do oprimido possibilita o povo inserir-se no processo histórico como sujeito. A pedagogia tem que enfrentar o dilema do oprimido, querer ser livre e ao mesmo tempo temer a liberdade, entre dizer a palavra ou não ter voz. A superação passa necessariamente pelo reconhecimento de que a realidade opressora lhe impõe um limite. E a luz da consciência é produzida através dos sons e palavras dos fonemas de objetos ligados à vida cotidiana dos camponeses e trabalhadores.

A educação popular, como instrumento da organização social, envolvendo movimentos sociais, pastorais, ONGs, entidades de direitos humanos, tem portanto o objetivo de dar voz e vez aos pequenos e humildes, ampliando os seus direitos e dando autonomia e verdadeira liberdade às pessoas. 

Encerro essas brevíssimas linhas com uma pequena reflexão sobre o ensinar, do livro "Pedagogia da Autonomia": 

Ensinar exige risco, aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de discriminação É próprio do pensar certo a disponibilidade ao risco, a aceitação do novo que não pode ser negado ou acolhido só porque é novo, assim como o critério de recusa ao velho não é apenas o cronológico. O velho que preserva sua validade ou que encarna uma tradição ou marca uma presença no tempo continua novo. Faz parte igualmente do pensar certo a rejeição mais decidida a qualquer forma de discriminação. A prática preconceituosa de raça, de classe, de gênero ofende a substantividade do ser humano e nega radicalmente a democracia. Quão longe dela nos achamos quando vivemos a impunidade dos que matam meninos nas ruas, dos que assassinam camponeses que lutam por seus direitos, dos que discriminam os negros, dos que inferiorizam as mulheres. Quão ausentes da democracia se acham os que queimam igrejas de negros porque, certamente, negros não têm alma. Negros não rezam. Com sua negritude, os negros sujam a branquitude das orações... A mim me dá pena e não raiva, quando vejo a arrogância com que a branquitude de sociedades em que se faz isso, em que se queimam igrejas de negros, se apresenta ao mundo como pedagoga da democracia. Pensar e fazer errado, pelo visto, não têm mesmo nada que ver com a humildade que o pensar certo exige. Não têm nada que ver com o bom senso que regula nossos exageros e evita as nossas caminhadas até o ridículo e a insensatez.

domingo, 4 de julho de 2021

O sacrifício

O Sacrifício (Suécia, 1986) é o último filme dirigido pelo diretor russo Andrei Tarkovski, que teve a fotografia de Sven Nykvist e a atuação de Erland Josephson, Susan Fleetwood, Valérie Mairesse, Allan Edwall, Gúdrun Gisladóttir, Sven Wolker, Filippa Franzén e Tommy Kjellqvist. O filme começa com a obra inacabada de Leonardo da Vinci, "A adoração dos reis magos", e parte da "Paixão segundo Mateus" de Johann Sebastian Bach, claríssimas referências religiosas que vão ser contrapostas logo na sequência com a fala ateísta do personagem Alexander, um antigo escritor, famoso jornalista, ator e crítico teatral. Ele mora numa ilha com sua mulher Adelaide, a filha Julia e um pequeno garoto que é mudo. Alexander está plantando uma árvore seca com a ajuda do seu filho e conta ao pequeno a história de um monge que assegurou ao discípulo que se ele regasse uma árvore seca, ela poderia renascer; após três anos regando diariamente a árvore ressequida, numa certa manhã o monge enxerga flores que nascem dos seus galhos. 

Alexander chegou à ilha há algum tempo, e fala ao filho pequeno enquanto o vento balança o capim no campo aberto: "Fiquei triste porque esse lugar não era nosso (...) Então, pensei que se morasse aqui poderia ser feliz até a morte. Não tenho medo, a morte não existe. Não, existe o medo da morte e é um medo horrível. Faz as pessoas fazerem o que não devem". 


Hoje é o aniversário de Alexander e à noite haverá um jantar para a família, o carteiro Otto e um médico amigo, Viktor. Otto presenteia o aniversariante com um belo quadro com o mapa da Europa do século XVII e ao ouvir dele que não precisava ter feito esse sacrifício, Otto assevera que qualquer presente representa um sacrifício. Otto enxerga uma reprodução da obra "A adoração dos reis magos" e se afasta revelando ao anfitrião que ele sempre tivera medo de Leonardo.

Otto e Adelaide possuem duas ajudantes em sua casa, Marta e Maria. Maria cuida do jantar e das atividades relacionadas à cozinha, enquanto que Marta trabalha mais com os cuidados ao pequeno garoto filho do casal. Os nomes das empregadas não deve ser uma mera coincidência, mas uma referência à Marta e Maria que aparecem no evangelho que conta a vida de Jesus. Após Maria preparar tudo para o jantar, pede licença e vai para sua casa que fica do outro lado do lago. Enquanto todos aguardam o jantar, aparece na televisão a notícia do começo de uma guerra nuclear e o consequente fim da humanidade. Adelaide tem uma crise de nervos e tem que ser acalmada com um medicamento do doutor Viktor. Alexander e Otto bebem um conhaque enquanto tentam entender a situação extraordinária. Alexander, que era ateu, sobe ao primeiro andar e pede a Deus que o terrível fim não se abata sobre todos e, em troca, promete abandonar tudo o que ele ama. Otto, que também estuda e coleciona fatos estranhos e inexplicáveis, avisa a Alexander que a única maneira de salvar o mundo é o ex-jornalista dormir com Maria, pois ele sabe que se trata de uma feiticeira poderosa, mas de bom coração. Otto acrescenta ainda que não há outra alternativa para salvar o mundo.



Alexander vai à casa de Maria e conta a triste história de sua mãe. Depois chora e implora à Maria que o ame. Maria o abraço e diz que o vai proteger, deitando-se com Alexander na cama que começa a flutuar. Quando Alexander acorda encontra-se novamente em sua casa e ainda é a manhã do dia em que aconteceria o início da guerra total que destruiria a vida na Terra. Ele percebe que conseguiu reverter a catástrofe e agora precisa pagar a sua promessa com Deus (e aqui é irrelevante se os fatos da noite anterior aconteceram mesmo ou foram criações de uma mente atormentada pelo pressentimento da aproximação da morte). Quando todos estão fora da casa, Alexander coloca fogo numa toalha que rapidamente se alastra e consome toda a casa. Todos retornam e vêem a casa em chamas. Pouco depois uma ambulância chega e leva Alexander, que perde além da casa, a sua família que ele tanto amava.


Quando a ambulância que encaminha Alexander ao hospício passa pela árvore seca, o pequeno filho está aguando-a e, milagrosamente, fala: "No início era o verbo". Maria, a feiticeira, assiste a cena e se afasta solitariamente pela estrada.

terça-feira, 22 de junho de 2021

Stalker

Um professor e um escritor, conduzidos por um guia - o Stalker - vão para uma região misteriosa, conhecida como a Zona. Nessa região, completamente vigiada pelo exército para impedir o acesso de qualquer aventureiro, dizem que existe um quarto onde todos os desejos mais ardorosos e sinceros das pessoas são realizados. Entretanto, a viagem até ele é cheia de dificuldades, em primeiro lugar porque os eventuais visitantes necessitam fugir das balas das metralhadoras dos soldados que vigiam a entrada, e em segundo porque na Zona há armadilhas misteriosas e às vezes mortais construídas pela própria Zona. Na viagem o Stalker, o professor e o escritor fazem diversas reflexões sobre a vida, incluindo uma sobre o desejo, que segundo um deles, são coisas efêmeras e basta dar-lhes um nome para perderem o sentido. Quanto mais próximos da região central da Zona, mais complexos os caminhos vão se tornando, mas os acontecimentos que lá ocorrem dependem mais das pessoas que entram do que da Zona propriamente dita.




Para auxiliar nas muitas reflexões ao longo do caminho até chegar ao quarto misterioso no coração da Zona, poemas de dois poetas russos, Arseni Tarkovski (pai do diretor) e Fyodor Tyuchev, são declamados pelos personagens ou sussurrados por um narrador. De Arseni Tarkovski: "Agora o verão se foi e poderia nunca ter vindo. No sol está quente, mas tem que haver mais./ Tudo aconteceu, Tudo caiu em minhas mãos como uma folha de cinco pontas, mas tem de haver mais./ Nada de mau se perdeu, nada de bom foi em vão, uma luz clara ilumina tudo, mas tem de haver mais./ A vida me recolheu à segurança de suas asas, minha sorte nunca falhou, mas tem de have mais./ Nem uma folha queimada, nem um graveto partido, claro como um vidro é o dia, mas tem de haver mais."




Ao chegarem finalmente na entrada do quarto dos desejos, após o escritor refletir sobre o martírio e o suplício que é para ele produzir os seus livros e do professor e cientista recordar sobre a sua trajetória que ao fim e ao cabo não tem muito sentido, mesmo que ganhe um prêmio Nobel, ambos desistem de ultrapassar a porta. A viagem está concluída e a história termina com o Stalker em sua casa, completamente esgotado, ao lado da esposa e da filha pequena. 


Stalker. Direção: Andrei Tarkovsky, Roteiro: Arcady Strugatsky e Boris Strugatsky, Música: Eduard Artemyov. Atores: Alexander Kaidanovski, Anatoli Solonitsyn, Nikolai Grinko, Alisa Freindlich, Natacha Abramova. (URSS, 1979).

segunda-feira, 14 de junho de 2021

Solaris

Solaris pode ser visto de várias formas, como o dilema entre a lógica e conhecimento e a humanidade do ser humano. "Na busca pela verdade, o homem encontra o conhecimento". A busca não é fácil, é bem difícil na verdade, é angustiante. Angustiante como a viagem de carro que o psicólogo Kris faz de uma cidade a outra, ainda na Terra. Além disso, no caminho da verdade, o homem tem que superar os seus medos (um pouco como o garotinho que fala para a sua mãe do medo que sente do cavalo, para ele desconhecido, que encontrava-se no fundo da casa) e a depressão oriunda da falta de esperança no futuro. O suicídio como a resposta última ao absurdo da vida, ao peso do fardo de se respirar e não ter uma plena consciência do seu passado e, portanto, de possuir um desconhecimento de si mesmo no presente. A ressurreição como símbolo da transcendência da vida; e o amor, que vence as barreiras do tempo e da morte, como se fosse o único remédio para a angústia da vida.

Numa estação espacial em torno de Solaris, um planeta com um oceano que, sob nuvens, muda constantemente de aspecto, as pessoas começam a enlouquecer. O psicólogo Kris é escalado para investigar. Lá chegando descobre que acontecimentos estranhos começaram a ocorrer após a estação realizar pesados bombardeios de raios-X sobre o planeta. As poucas pessoas que ainda encontram-se na estação acreditam que o oceano é um ser vivo que materializa imagens para os astronautas da estação, de acordo com os seus medos e os seus desejos. Kris encontra a sua esposa Karin, morta há dez anos, em seu quarto. Ele tenta se livrar dela, lançando-a ao espaço, mas ela retorna. No retorno, Karin morre novamente, mas ressuscita. Sendo uma materialização criada pela inteligência do planeta, ela não lembra bem de certos detalhes de sua vida passada com Kris. Isso lhe dá tristeza e também uma consciência de que não é completamente humana. Mas ela reconhece que com a tristeza que sente e as lembranças de sofrimentos, está se tornando humana. Eis um rápido resumo do enredo de Solaris, de Andrei Tarkovski.


O conhecimento pode ser conquistado a qualquer custo ou o conhecimento só é válido quando baseado na moralidade? Tem o homem o direito de destruir outras formas de vida? Essas são algumas poucas questões numa história com mistérios, milagres e dúvidas a respeito do que realmente significa sermos humanos. E também sobre os limites entre a realidade e os desejos.


Ficha técnica: Solaris. Direção: Andrei Tarkovski (Itália, 1972, 165 min). Roteiro: Andrei Tarkovski, Fridrich Gorenchtein, com argumento baseado no romance homônimo de Stanislaw Lem. Fotografia: Vadim Yusov; música: Eduard Artemev; cenografia: Micahil Romadin. Atores: Donatas Banionis, Natalia Bondarchuk, Yuri Yarvet, Anatoli Yarvet, Anatoli Solonitsyn. 

terça-feira, 8 de junho de 2021

Funeral de estado

State Funeral, de Sergei Loznitsa (Holanda, Lituânia, 2019) é um interessante documentário sobre o funeral do líder soviético Josef Stalin, sob a perspectiva dos cineastas da antiga União Soviética. Na verdade, trata-se de partes de filmes feitos por cerca de uns 200 diferentes profissionais que registraram esse momento marcante da história do país. De acordo com o diretor, são filmagens que se encontravam em diversos arquivos, realizadas com filme de 35 mm Kodak, AGFA e da própria União Soviética, que cobrem os poucos dias entre o anúncio da morte do líder e o seu sepultamento. O que se destaca nas filmagens é a tristeza da população, além da exaltação nos alto-falantes das cidades à imagem do Presidente do Conselho de Ministros da URSS e do Soviete Supremo.




Essa exaltação à imagem do líder permeia todos as filmagens. Isso é reforçado pelos comentários que se ouvem em áudios recuperados da época: "Pela primeira vez na vida, com todo o meu coração e mente eu entendo essa palavra misteriosa: imortalidade! (...) É verdade que Josef Vissariónovitch Stalin faleceu. É verdade que seu coração parou de bater. Seu coração dedicado ao povo. (...) Sua cabeça imóvel repousa sobre o travesseiro. Ela nunca mais abrigará outro pensamento genial. Tantos pensamentos preciosos nasceram em seu cérebro genial! (...) A imortalidade de Stalin está em seus atos." 


Todas as imagens foram digitalizadas pela equipe do diretor Sergei Loznitsa. Destacam-se também no filme outros detalhes mais sutis, captados com muita maestria pelos diretores de filmagem da época: as coroas de flores jazendo em fila em torno de um prédio numa noite de ruas vazias; a ponte sobre um rio congelado e as pessoas concentrados na praça de uma cidade num dia frio castigadas pela neve que cai; as torres de petróleo do Ilyich Harbour sob  pesadas nuvens de chuva no Azerbaijão; os cavaleiros atravessando uma montanha coberta de gelo e o trenó puxado por renas no Distrito Autônomo de Yamalo-Nenets; a multidão no centro de Vladivostok; os caminhões e carros que atravessam a cidade e as árvores desfolhadas numa larga calçada onde caminham transeuntes apressados...


Outro destaque das filmagens do velório são as muitas crianças que aparecem em diversas cidades acompanhando os seus pais nas homenagens a Stalin ou em fila indiana carregando flores, guiadas pela professora. Os diretores das filmagens talvez quisessem mostrar que toda a sociedade estava unida naquele momento, certamente crítico, com a tensão não muito explícita entre lideranças que procuravam consolidar o poder central. Independentemente das ideologias e das ideias que os profissionais das filmagens queriam mostrar, tratam-se de belas filmagens de grandes cineastas. Grande filme, na minha modesta opinião.





sábado, 15 de maio de 2021

A onda gigante

Quando a onda gigante se forma em alto mar, ela quebra irremediavelmente na praia. O tsunami da ignorância, da arrogância e da pilhagem está batendo com força na costa do Brasil. Depois, aos sobreviventes, só restará tentar reconstruir o que foi destruído. 


The great wave at Kanagawa, Hokusai Katsushika.


sexta-feira, 23 de abril de 2021

O artista de Chauvet

Werner Herzog é um cineasta alemão conhecido por diversos documentários como Fata Morgana (1970) e filmes com personagens marcantes, como "Aguirre, a ira de Deus" (1972) e "Fitzcarraldo" (1982). Um de seus últimos filmes é a "A caverna dos sonhos esquecidos" (2010), um belo documentário sobre a caverna Chauvet, no sul da França, que apresenta as mais antigas pinturas rupestres descobertas até hoje. De fato, como se mostra no documentário, datação por intermédio da técnica de carbono 14 indicam que as pinturas na parede da caverna têm cerca de 32.000 anos. Esse tempo representa cerca de sete vezes o tempo entre a construção das grandes pirâmides e os dias de hoje.

Num momento do documentário o diretor nos lembra que nós somos prisioneiros da história, enquanto que o artista do paleolítico era livre, estando além dos parâmetros que definem a nossa civilização. Imaginei, então, que o artista do passado é como se fosse um deus ex-machina do antigo teatro grego, que introduz a sua obra na nossa história como se fosse um elemento completamente extemporâneo. O artista desenhou, aproveitando-se das anfractuosidades e relevos da rocha, belíssimos cavalos, bisões, rinocerontes, leões e outros animais nas paredes da caverna. Certos cavalos estão correndo, a imagem das patas em duplicatas parece nos mostrar o movimento que ficará claro para nós apenas com o advento do cinema. Ele deixou também a pintura de sua mão, que tinha o dedo mínimo ligeiramente torto. É a assinatura de um artista trezentos séculos antes de surgirem e perecerem quase que instantaneamente nessa escala temporal estranha, Michelângelo, Leonardo, Caravaggio e outros grandes pintores da cultura ocidental. Vindo diretamente do passado através de sua obra, o artista afirma a magia da arte, a magia no sentido de que embora nós, humanos, sejamos absolutamente passageiros, a obra de arte é eterna.



À respeito das pinturas, o escritor Roger Lombardot, que escreveu duas peças inspiradas na caverna Chauvet, asseverou: "Chego ao painel do cavalo ... E lá estou eu diante do improvável. Tanto a precisão da linha como o realismo da expressão ... Sem dúvida! ... Os artistas que ali criaram eram gênios ... No sentido de que tinham visão admirável. Como os pintores do Renascimento ... sei que estou diante da arte universal. Isso que o verdadeiro pintor, o verdadeiro artista, sempre pode fazer. Isso ele sempre fará. Encontramos pessoas capazes disso o tempo todo. Mas encontrá-los lá, já! ... Que bofetada para os nossos preconceitos ... o clichê do homem das cavernas limitado à pele de um animal e de um porrete. Como fica claro, à luz dessas pinturas, que quem as pintou possuía uma sensibilidade que os homens mais evoluídos da atualidade não negariam. Eu me sinto esmagado novamente. Minúsculo. Eu, de quem está excluído que algum dia possa sair de um desenho a ideia de vida… E então… que história fabulosa!… Imagens que passaram milênios para chegar intactas até nós… Melhor! Instantâneo… Porque, repito, tudo pode levar a crer que os artistas acabaram de desistir do pincel… Olha!… As partículas evacuadas pelo arranhão continuam em suspensão… É como se tivéssemos acabado de enviar estas imagens por telecomunicação desde o passado ... Além dos milênios ... Imagine o choque temporal! Vertigem! ... E o seguinte choque ... A consciência de estar diante da mais antiga manifestação conhecida do pensamento humano ..." (La Rose, Les Cahiers de l’Égaré, 2003).

 



sábado, 27 de março de 2021

Siemion Ivânovitch

De acordo com alguns estudiosos o conto "O senhor Prokhártchin", escrito em 1846 por Fiódor Dostoiévski, foi todo destroçado pelas tesouras dos censores. Segundo o próprio escritor disse a amigos, o conto ficou irreconhecível. A censura se deveu ao fato de Dostoiévski tratar dos dias finais de vida da um miserável, enlouquecido e também avarento funcionário público. A pobreza de um funcionário público já havia sido explorada no seu primeiro romance "Pobre Gente" (1844-46) enquanto que a loucura, também relativa a um funcionário público esquizofrênico, fora explorada por Dostoiévski em "O Duplo" (1845-46). 

A edição brasileira, preparada por Natália Nunes e Oscar Mendes, mostra que o senhor Siemion Ivânovitch Prokhártchin, mora no mais sombrio e humilde canto de uma pensão e vive com poucos recursos por causa de seu baixo salário. Ao morrer deixa uns poucos objetos num velho baú e algum dinheiro no interior de um colchão. No leito fúnebre, parece que as preocupações abandonam definitivamente o velho funcionário:

"Aliás, Siemion Ivânovitch tinha antes o ar de um velho egoísta ou de qualquer pardal ladrão. Ali estava, muito tranquilo, como quem tem a consciência em paz, como se não tivesse sido o autor de todas aquelas partidas para enganar as pessoas de bem da maneira mais ignóbil. Já não ouvia o pranto da sua desamparada hospedeira. Muto pelo contrário, tal como um capitalista maldoso, decidido até ao túmulo a não perder o tempo na inatividade, tê-lo-iam julgado completamente absorvido por cálculos de especulação. O seu rosto exprimia uma meditação profunda e os lábios comprimiam-se num ar de gravidade, de que nunca ninguém o teria julgado capaz enquanto vivo. Parecia ter ganho muito em inteligência e conservava o olho direito meio fechado, como se tivesse querido agarrar à pressa alguma ideia muito importante que não tivera tempo desembrulhar..."

sexta-feira, 5 de março de 2021

150 anos de Rosa

Há 150 anos nascia Rosa Luxemburgo. Rosa (Róza Kuksemburg, em polonês) que nasceu na cidade de Zamosc foi uma teórica marxista, com grande atuação na Alemanha principalmente durante a Primeira Guerra Mundial. Rosa estudou inicialmente na sua terra natal e completou os seus estudos em Direito e Economia em Zurique, onde produziu uma tese de doutorado sobre o desenvolvimento industrial da Polônia e que, de acordo com W. Stark [1], mostrou a integração entre a indústria polonesa e o sistema econômico da Rússia no final do século XIX. Após esse estudo, Rosa Luxemburgo mudou-se para a Alemanha. Participou de manifestações em Varsóvia e também do Congresso Internacional Socialista de 1907 que ocorreu em Stuttgart. Nesse congresso redigiu com Vladimir Lenin uma resolução que conclamava os trabalhadores do mundo a transformar qualquer guerra numa oportunidade para destruir o sistema capitalista. Durante a Primeira Guerra Mundial esteve presa ou em custódia, mas mesmo assim fundou a Liga Spartacus, que seria a célula original do Partido Comunista da Alemanha. Rosa Luxemburgo foi morta em janeiro de 1919, juntamente com o seu companheiro, por paramilitares que receberam ordens dos social-democratas que encontravam-se no poder. Rosa foi espancada, baleada e seu corpo jogado num canal de Berlim.

[1] Rosa Luxemburg, The Accumulation of Capital, in Rare Masterpieces of Philosophy and Science, Ed. Dr. W. Stark, London (1951).

domingo, 31 de janeiro de 2021

Tempo de cajus

 "Fatos são pedras duras. Não há como fugir. Fatos são palavras ditas pelo mundo."  Clarice Lispector, in "A hora da estrela".


Por esses dias caiu-me às mãos o comunicado da morte de uma importante figura da sociedade, muito conhecido por sua grande exposição nos meios de comunicação. Era um homem cristão, caridoso, um verdadeiro cidadão de bem, como diria o senso comum. Jamais seria visto em algum programa policial sendo humilhado pelo apresentador. Comparecia semanalmente à igreja acompanhado de sua esposa, muito educado, um tanto reservado, embora não dispensasse uma posição de destaque em qualquer oportunidade. Antigo leitor de jornais e agora de grandes portais de notícias, se indignava bastante com reportagens que versassem sobre a política e a corrupção. Tinha lá os seus caprichos, como ter preferência em frequentar ambientes selecionados, como ele chamava. Se se atrevesse a aparecer um esfarrapado perto dele, ele exorcizava a imagem falando categoricamente: 'isso é um comunista'.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

O tempo recuperado

O vício da preguiça, uma alegada falta de tempo, a incapacidade de superar obstáculos, há toda uma série de desculpas para não se realizar uma tarefa. Refiro-me, especificamente nesse ponto, à leitura do "Em busca do tempo perdido", de Marcel Proust, que distribuído em sete volume, ou cerca de três mil páginas - da edição publicada pela Editora Globo - utilizei 29 anos para a conclusão de sua leitura (23/12/1991 - 03/01/2021). Na obra, desfilam e se entrelaçam as vidas de diversos personagens, como os artistas: o escritor Bergotte, o músico Sr. Vinteuil, o pintor Elstir, a atriz Berma, o pianista Dechambre, o violinista Morel; pessoas da classe média como o engenheiro Legrandin, dr. Cottard, o professor Brichót, da Sorbonne, o Sr. de Bontemps, Diretor do Gabinete do Ministro, além de uma figura importantíssima na trama - Charles Swann - conhecido vendedor de obras de arte que trafegava com desenvoltura entre a burguesia e a aristocracia parisiense; muitos trabalhadores, como o ascensorista e os garçons do hotel de Balbec, a florista, o entregador de alimentos na casa de Combray, os mordomos das grandes mansões, os vários mensageiros, a vendedora de café numa estação de trens,  os criados, os cobradores, os jardineiros, Jupien, Françoise; Marcel (o narrador), sua mãe, seu pai e sua avó; Gilberte e sua mãe Odette, Albertine, Andrée, Gisèle, Miss Rosemond, Sr. e Sra. Verdurin; Robert de Saint-Loup e Bloch; e os aristocratas: o duque e a duquesa de Guermantes, Princesa Marie-Gilbert Guermantes, princesa de Parma, marquesa Sra. de Villeparisis, conde de Crécy, condessa de Molé, viscondessa de Saint-Fiacre, Barão de Charlus e dezenas, talvez centenas de outros tipos. "Em busca do tempo perdido" é a história de um escritor que quer começar a sua obra, mas nunca tem força suficiente para realizá-la, consumindo o seu tempo em conversas com amigos, em reuniões nos salões chiques da alta aristocracia ou, movido pelo ciúme, em perseguição à mulher amada. Três lugares, localizados no espaço, no tempo e na memória - voluntária e involuntária - servirão de cenários principais para os acontecimentos do romance: Combray, Balbec e Paris. Quando pequeno, em Combray, o narrador acreditava que o caminho que levava à terra dos Guermantes era inconciliável com o caminho que levava à Méséglise, o caminho de Swann, uma vez que estavam localizados em direções opostas. De fato, pelos campos ao redor da cidade poderiam ser feitos dois passeios a partir da casa da família do narrador: saindo pelo portão principal percorria-se o caminho que passava pela propriedade do Sr. Swann; saindo pelo portão dos fundos ia-se por um alameda que passava pela propriedade dos Guermantes, ricos aristocratas de longa tradição. O caminho de Guermantes representava algo inacessível, abstrato, ideal, enquanto que o caminho de Swann, margeando casas de pessoas conhecidas e repleto de cores e aromas de flores, representava  objetivos acessíveis e concretos. Muitos anos depois, Gilberte, o amor da infância do narrador, mostrou-lhe que era possível numa tarde, fazer o passeio pelos dois caminhos; a incompatibilidade, ao final, era pura ilusão. A burguesia e a aristocracia - que também poderiam ser simbolizadas pelos dois caminhos - convergiriam mais adiante na filha de Gilberte Swann e Robert de Saint-Loup. Na cidade praiana de Balbec, o narrador encontrará as moças em flor e se apaixonará por Albertine, com quem terá uma relação doentia de amor e ciúme até a morte trágica da mulher. Também encontrará o pintor que destruía a realidade em um segundo e criava uma nova em seu lugar para satisfazer apenas o seu ideal de beleza, um resumo do artista e de sua obra. Em Paris, as relações hipócritas, superficiais e de conveniência da aristocracia serão registradas pelo narrador como se ele possuísse o dom de fotografar e congelar a alma e os mais secretos desejos dos personagens. Na tentativa de apreender todos os acontecimentos do passado e resignificar o tempo que se foi, o narrador encontra na literatura a maneira de fazê-lo. Através de elementos retirados da memória, ele consegue construir um quadro onde o tempo é o senhor soberano da vida e da sociedade, levando orgulhosos senhores ao esquecimento, elevando figuras degradadas às mais altas posições, destruindo fortunas, nobrezas e os pormenores das genealogias, permitindo que os erros sejam transformados em poeira imperceptível, e que homens e mulheres outrora insuportáveis percam os seus defeitos como fruto de conquistas ou frustrações. Na obra que deixaria para as gerações futuras, o narrador redescobriria a realidade esquecida, amalgamando sensações e lembranças, recuperando, de certa forma, o tempo perdido.