sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

O vapor que se dissipa no ar

Olhando na escala de séculos, o orgulho de um homem não vale muita coisa. "Vaidade das vaidades, tudo é vaidade." Em certas páginas de Em busca do tempo perdido, Proust nos mostra a ilusão da soberba de um nobre que será para sempre esquecido, a vaidade de uma princesa que, duzentos anos após, estará registrada no máximo num livro empoeirado que não será aberto por ninguém, ou as preocupações de um homem que cruzou um caminho, que foi coberto pelo mato e dele não ficou o mínimo registro. Abaixo encontram-se as reproduções de dois momento de "Sodoma e Gomorra", na tradução poética de Mario Quintana" em que afloram, respectivamente, o orgulho e a inveja doentia de um pobre homem e a pseudo-modéstia de uma rica duquesa:

"  O sr. de Froberville forçosamente se havia beneficiado da situação de favor que desde pouco era concedida aos militares na sociedade. Infelizmente, se a mulher a quem desposara era parenta muito legítima dos Guermantes, era também uma parenta extremamente pobre, e como ele próprio perdera a fortuna, não tinham relações quaisquer, e eram dessas pessoas a quem deixavam de lado a não ser nas grandes ocasiões, quando lhes sucedia perderem ou casar algum parente. Então verdadeiramente faziam parte da comunhão do alto mundo, como os católicos de nome que só se aproximam da Santa Mesa uma vez por ano. Sua situação material seria até desastrosa se a sra. de Saint-Euverte, não tivesse auxiliado de todos os modos o casal, fornecendo vestidos e distrações às duas meninas. Mas o coronel, que passava por um bom sujeito, não tinha um coração agradecido. Invejava os esplendores de uma benfeitora que era a primeira a celebrá-los sem trégua e sem medida. A garden-party anual era para ele, sua mulher e seus filhos um prazer maravilhoso que não desejaria perder por todo o ouro do mundo, mas um prazer envenenado pelas satisfações de orgulho que dele tirava a sra. de Saint-Euverte. O anúncio dessa garden-party nos jornais que, em seguida, após um relato detalhado, acrescentavam maquiavelicamente: 'Voltaremos a tratar dessa bela festa', os pormenores complementares sobre as toaletes, dados durante vários dias seguidos, tudo isso fazia tanto mal ao Froberville, que eles, bastante privados de prazeres e sabendo que podiam contar com o daquela festa, chegavam a desejar cada ano que o mau tempo lhe prejudicasse o êxito, consultando o barômetro e antegozando uma tempestade que pudesse fazer gorar a festa."

" - Olhe, sabe a quem foi que causou muito pesar o casamento de Swann? À minha mulher. Oriane tem muitas vezes o que eu chamarei uma afetação de insensibilidade. Mas, no fundo, sabe sentir com uma força extraordinária. - A sra. de Guermantes, encantada com essa análise do seu caráter, escutava-o com ar modesto, mas não dizia palavra, por escrúpulo de aquiescer ao elogio, e principalmente por medo de o interromper. Poderia o sr. de Guermantes falar ainda uma hora sobre o assunto, que ela ainda menos se teria movido, como se lhe tocassem música. - Pois bem! recordo-me de que, ao saber do casamento de Swann, ela sentiu-se melindrada; julgou  que era muito mal feito da parte de uma pessoa a quem testemunháramos tanta amizade. Estimava bstante a Swann, e sentiu muitíssimo. Não foi, Oriane? A sra. de Guermantes julgou que deveria responder a uma interpelação tão direta, sobre um fato concreto que lhe permitiria, sem que o parecesse, confirmar os louvores que sentia terminados. Num tom tímido e simples, e com um ar tanto mais estudado quanto pretendia parecer 'sentido'. - É isso mesmo, Basin, não está enganado."

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Quanto mais sós...

A amada que foi levada pelo tempo, que não respondeu a uma carta (um e-mail ou um whatsapp, para os jovens leitores), que faltou a um encontro, que menosprezou um presente, que esnobou um poema, que nem se dignou a cruzar o seu olhar na direção onde o angustiado homem se encontrava, ávido por alguns segundos de atenção... Os encontros e os desencontros da vida novamente na pena ágil de Marcel Proust (O caminho de Guermantes, terceiro volume de Em busca do tempo perdido) na tradução de Mario Quintana:

"E passado o último carro, quando sentimos com dor que ela não mais virá, vamos jantar na ilha; por cima dos álamos trêmulos que recordam sem fim os mistérios do entardecer mais do que respondem a eles, uma nuvem rósea põe uma última cor de vida no céu asserenado. Algumas gotas de chuva caem sem ruído na água, antiga, mas na sua divina infância, que continua sendo da cor do tempo e que esquece a todo instante as imagens das nuvens e das flores. E depois que os gerânios, intensificando a iluminação de suas cores, lutaram inutilmente contra o crepúsculo ensombrecido, uma bruma vem envolver a ilha que adormece, passeamos pela úmida escuridão, pela margem da água, onde, quando muito, a passagem silenciosa de um cisne nos pasma como num leito noturno os olhos abertos um instante e o sorriso de uma criança que não supúnhamos desperta. Então quiséramos tanto mais ter conosco uma amada quanto mais sós nos sentimos e mais longe nos podemos crer.
(...)
Quando me encontrei sozinho em casa, lembrando-me que tinha ido fazer uma excursão vesperal com Albertine, que cearia depois de amanhã em casa da sra. de Guermantes e, de que tinha de responder a uma carta de Gilberte, três mulheres a quem havia querido, considerei que a nossa vida social está cheia, como o estúdio de um artista, de esboços abandonados em que por um momento julgáramos poder plasmar a nossa necessidade de um grande amor, mas não pensei que às vezes, se o esboço não é muito antigo, pode acontecer que o retornemos e façamos dele uma obra muito diferente, e talvez até mais importante do que aquela que havíamos projetado a princípio."

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Ave Maria, cheia de graça!




Ave Maria, cheia de graça!. Sandro Botticelli (1445 - 1510).

No almoço

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Obra de Zinaida Serebriakova(1914). Zinaida Serebriakova foi uma pintora russa que viveu entre 1884 e 1967. Algumas de suas obras mais famosas são Pastores (1914), No almoço (1914) e Retrato de uma jovem mulher (1915). 

domingo, 19 de outubro de 2014

Eco e a questão do narrador

O narrador, em um romance, desempenha um interessante papel no desenvolvimento da história. Umberto Eco dedica parte do primeiro capítulo da sua obra "Seis passeios pelo bosque da ficção" a discutir os conceitos de narrador, autor-modelo, leitor-modelo, etc. Eco cita o início do romance Sylvie, de Gérard de Nerval "Je sortais d'un théâtre où tous les soirs je paraissais aux avant scènes en grande tenue de soupirant [...]" e a seguir comenta:

"Agora vamos examinar o 'je' com o qual a história se inicia. Os livros escritos na primeira pessoa podem levar o leitor ingênuo a pensar que o 'eu' do texto é o autor. Não é, evidentemente: é o narrador, a voz que narra. P.G. Wodehouse certa vez escreveu na primeira pessoa as memórias de um cachorro - uma demonstração incomparável de que a voz que narra não é necessariamente a do autor.

Em  Sylvie, temos que lidar com três entidades. A primeira é um cavalheiro que nasceu em 1808 - e que por acaso se chamava Gèrard de Nerval, mas sim Gèrard Labrunie. Com um guia Michelin na mão, muitos turistas ainda procuram em Paris a rue de la Vieille Lanterne, onde o escritor se enforcou. Alguns deles nunca entenderam a beleza de Sylvie.

A segunda entidade é o homem que diz 'eu' na novela. Essa personagem não é Gérard Labrunie. Tudo que sabemos sobre ele é que nos conta a história e não se mata no final, quando faz a melancólica reflexão: 'As ilusões caem uma após outra, como as cascas de uma fruta, e a fruta é a experiência'.

Meus alunos e eu resolvemos chamá-lo de Je-rard, mas, como esse trocadilho não se pode traduzir em inglês, vamos chamá-lo de narrador. O narrador não é o sr. Labrunie, e a razão disso é a mesma pela qual a pessoa que inicia Viagens de Gulliver dizendo:'Meu pai possuía uma pequena propriedade em Nottinghanshire; eu era o terceiro de cinco filhos. Ele me mandou para o Emanuel-College, em Cambridge, quando tinha catorze anos', não é Jonathan Swift, que estudo no Trinity College, em Dublin. Pede-se ao leitor-modelo que se comova com as ilusões perdidas do narrador, e não com as do sr. Labrunie.

Por fim, há uma terceira entidade, em geral difícil de identificar e que eu chamo de autor-modelo, de modo a criar uma simetria com o leitor-modelo. Labrunie pode ter sido um plagiário, e Sylvie poderia ter sido escrita pelo avô de Fernando Pessoa, mas o autor-modelo é a 'voz' anônima que inicia a história com 'Je sortais d'un théâtre' e a encerra fazendo Sylvie dizer: 'Pauvre Adrienne! elle est morte au convent de Saint-S..., vers 1832' ['Pobre Adrienne! Ela morreu no convento de Saint-S..., por volta de 1832']. Nada mais sabemos sobre ele, ou melhor, sabemos apenas o que essa voz diz entre o primeiro e o último capítulos da história. O último capítulo se intitula 'Dernier feuillt', 'Última folha': para além dela tudo que resta é o bosque da narrativa, e cabe a nós entrar e percorrê-lo. Uma vez que aceitamos essa regra do jogo, podemos até tomar a liberdade de dar um nome a essa voz, um nom de plume: com permissão de vocês, acho que encontrei um lindo nome: Nerval. Nerval não é Labrunie, nem o narrador. Nerval não é um ele, assim como George Eliot não é uma ela (só Mary Ann Evans era). Nerval poderia ser es, em alemão, it, em inglês (infelizmente a gramática italiana me obrigaria a dar-lhe um gênero)."

As narrativas literárias, como mostra Umberto Eco, são verdadeiramente ricas. Lembro-me, por exemplo, da "Memórias da Casa dos Mortos", de Fiodor Dostoiévski, que apresenta um aspecto interessante a respeito do narrador. Na verdade, na "Memórias", há dois narradores. A narração dos sofrimentos de uma prisão siberiana, a casa dos mortos, é feita por um velho taciturno, de origem desconhecida, que morreu sozinho e deixou o seu relato em diversos papéis no fundo de um baú. Estes papéis foram encontrados por um outro narrador, que fala da existência do primeiro narrador e dos seus alfarrábios, e resolve levá-los a lume. Destaca-se que o próprio Dostoiévski viveu alguns anos numa prisão na Sibéria, mas nenhum dos dois narradores da "Memórias" se chama Fiodor e, portanto, não pode ser o escrito russo.

Outra obra em que o autor se confunde com o narrador e o autor-modelo é "Em busca do tempo perdido", de Marcel Proust. O narrador da obra, escrita em primeira pessoa, conta a história de um senhor que viveu em Paris, Combray e Balbec, que era filho único, e que se apaixonou por, no mínimo, três mulheres: Gilberte, a Duquesa de Guermantes e Albertine. Embora o narrador também tivesse problemas de saúde como o próprio Proust, ele claramente não é o escritor, uma vez que este tinha um irmão, além de ter tido um relacionamento homossexual. No quarto volume da obra, "Sodoma e Gomorra", Proust apresenta de uma forma absolutamente explícita um discurso entre o autor e o leitor. Na verdade, talvez propositadamente, no final da discussão ele confunde o autor com o próprio narrador. Essa parte do romance mereceria uma discussão mais aprofundada, mas por enquanto, reproduzirei apenas a tradução do texto na pena de Mário Quintana:

"Pois os nomes de etapa por que passamos antes de encontrar o nome verdadeiro são falsos e não nos aproximam dele. Nem são propriamente nomes, mas muita vez simples consoantes que não se encontram no nome reencontrado. Aliás, tão misterioso é esse trabalho do espírito a passar do nada à realidade que afinal de contas é possível que essas consoantes falsas sejam degraus previamente erguidos para nos ajudar a aferrar-nos ao nome exato. 'Tudo isso", dirá o leitor, 'nada nos revela sobre a falta de complacência da referida dama; mas já que vos demorastes tanto tempo, deixai-me, senhor autor, que vos faça perder um minuto mais para dizer-vos ser lamentável que, jovem como éreis (ou como era o vosso herói se ele não for a vossa própria pessoa) tivésseis já tão pouca memória a ponto de não conseguir lembrar o nome de uma dama a quem conhecíeis muito bem'. É muito lamentável, com efeito, senhor leitor. E mais triste do que julgais quando se sente aí o anúncio da época em que os nomes e as palavras desaparecerão da zona clara do pensamento e em que será preciso renunciar para sempre a dizer para nós mesmos o nome daqueles a quem melhor conhecemos. É lamentável com efeito que desde a juventude se necessite desse labor para encontrar nomes bastante conhecidos. Mas se só se desse essa invalidez quanto aos nomes apenas conhecidos, muito naturalmente olvidados e que não se quisesse ter o trabalho de recordar, esse mal não deixaria de ter as suas vantagens. 'E quais são, por favor?' Pois bem, senhor, é que só o mal faz observar e aprender e permite decompor os mecanismos que, sem isso, a gente não ficaria conhecendo. Um homem que cada noite tomba como uma massa no seu leito e não vive até o momento de despertar e levantar-se, esse homem jamais pensará em fazer, se não grandes descobertas, pelo menos pequenas observações sobre o sono. Mal sabe se dorme. Um pouco de insônia não é inútil para apreciar o sono, para projetar alguma luz nessa noite. Uma memória sem desfalecimentos não é um excitante muito poderoso para estudar os fenômenos da memória. 'Mas, afinal, a sra. de Arpajon vos apresentou ao príncipe?' Não, mas calai-vos e deixai-me retomar minha narrativa."


terça-feira, 26 de agosto de 2014

Pequena cidade...

Alguns romances começam com belas descrições de espaços onde os dramas dos personagens se desenvolverão. Memória da Casa dos Mortos; Os Noivos; O Vermelho e o Negro, são alguns poucos exemplos. A seguir reproduzimos as frases iniciais de "O Vermelho e o Negro" de Stendhal, ou, singelas descrições iniciais de um grande romance.

"A pequena cidade de Verrières pode passar por uma das mais bonitas do Franco-Condado. Suas casas de tetos em ponta, de telhas vermelhas, se estendem pela encosta de uma colina, cujas menores sinuosidades são marcadas por tufos de vigorosos castanheiros. O Doubs corre a algumas centenas de pés abaixo das suas fortificações, construídas, outrora, pelos espanhóis, e hoje em ruínas.
Verrières é abrigada, do lado do norte, por uma alta montanha; é um dos ramais do Jura. Os cimos alcantilados do Verra cobrem-se de neve desde os primeiros frios de outubro. Uma torrente que se precipita da montanha atravessa-a antes de lançar-se no Doubs e dá força motriz a grande número de serrarias; é uma indústria muito simples e que proporciona certo bem-estar à maior parte dos habitantes, mais camponeses do que burgueses."

Língua-mar

Língua-mar é um belo poema do escritor cearense Adriano Espínola, publicado no seu livro "Beira-Sol".

A língua em que navego, marinheiro,
na proa das vogais e consoantes,
é a que me chega em ondas incessantes
à praia deste poema aventureiro.
É a língua portuguesa a que primeiro
transpôs o abismo e as dores velejantes,
no mistério das águas mais distantes,
e que agora me banha por inteiro.
Língua de sol, espuma e maresia,
que a nau dos sonhadores navegantes
atravessa a caminho dos instantes,
cruzando o Bojador de cada dia.
Ó língua-mar, viajando em todos nós.
No teu sal, singra errante a minha voz.

quinta-feira, 10 de julho de 2014

As crianças de Canaã

Em agosto de 2006 aviões de Israel bombardearam parte da Palestina e, em Canaã, muitas crianças que se encontravam num subterrâneo, morreram. Como o massacre das bombas israelenses se repete neste julho de 2014, resolvi colocar no blog este pequeno texto de oito anos atrás.

                 As crianças de Canaã

É muito fácil, de um avião, jogar uma bomba
Jogar uma bomba onde num subterrâneo
Brincam crianças escondidas do fogo da barbárie.

É muito fácil, de um avião,

Interromper as alegrias singelas das crianças
Que se divertem com um nada qualquer.

As crianças ouvirão, pela última vez,

O canto seco de um pássaro estranho
Que traz consigo a morte em suas asas.

As crianças sentirão o cheiro do explosivo,

Da fumaça, da pólvora, da poeira
E das próprias carnes dilaceradas.

O silêncio, depois, será profundo

E todas as riquezas daquelas vidas
Não mais serão.

É muito fácil, de um avião,

Ser herói matando crianças.

As crianças de Canaã apodrecerão

Numa vala rasa, escondidas e esquecidas
Em página secundária da história.

Agosto de 2006.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Na tempestade...

Há exatamente 450 anos nascia William Shakespeare.

"Agora, todos os meus sortilégios foram destruídos e, por força, só possuo a minha mesma que é bem fraca! Neste momento, em verdade, preciso ficar aqui como vosso prisioneiro ou, então, ser enviado para Nápoles. Como consegui recobrar meu ducado e perdoei ao traidor, não deixeis que eu continue preso nesta ilha deserta por meio de vosso sortilégio, mas libertai-me de tudo o que me prende com o auxílio de vossas boas mãos. Que vosso doce alento enfune minhas velas ou, então falharão meus propósitos que eram de causar-vos prazer. Agora, não tenho mais espíritos que me ajudem, arte para encantar e meu fim será o desespero, a não ser que a oração venha em meu auxílio tão penetrante que assalte a própria Clemência e liberte todas as faltas. Se quiserdes que vossos pecados sejam perdoados, deixai que vossa indulgência me absolva."

segunda-feira, 3 de março de 2014

Do trem de Bombaim a Madras

Antonio Tabucchi foi um escritor italiano que por causa de sua paixão por Fernando Pessoa, se tornou um grande conhecedor da língua portuguesa, chegando a ser professor de português na Universidade de Siena. Entre suas obras, a maioria contos e romances, encontra-se "Noturno Indiano", que ficou famosa após o filme homônimo de Alain Corneau, de 1989. "Noturno Indiano" foi publicado em 1984 e conta a história de uma busca na qual o personagem parte de Bombaim à Goa passando por Madras. Entre os livros de contos de Tabucchi pode-se citar Piccoli equivoci senza importanza, que foi publicado em 1985. Um dos contos deste último livro, I treni que vanno a Madras, de certa forma, retorna ao tema da viagem, desta feita, contando brevemente uma viagem de Bombaim (Mumbai) a Madras (Chennai), passando por Bangarole. O final do conto, como em  alguns dos grandes contos universais, possui sutilezas e deixa margem para diversas interpretações do leitor. Abaixo, uma versão que fizemos para o início do conto.
 
"Os trens que vão de Bombaim para Madras partem da estação Vitória. O meu guia assegurava que uma partida da estação Vitória vale sozinha uma viagem à Índia, e esta era a primeira motivação que me havia feito preferir o trem ao avião. O meu guia era um livrinho um pouco excêntrico que dava conselhos perfeitamente incongruentes, e eu o estava seguindo ao pé da letra. O fato era que também a minha viagem era perfeitamente incongruente, assim aquele era o livro feito propositadamente para mim. Tratava o viajante não como um predador ávido de imagens esteriotipadas, ao qual se sugerem três ou quatro itinerários obrigatórios como nos grandes muséus visitados às pressas, mas na mesma medida de um ser errante e ilógico, disponível ao ócio e ao erro."

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Mudanças, Camões

Luís Vaz de Camões, poeta português que viveu no século XVI, é famoso, entre outros, por seus belos sonetos que versam sobre diversos temas. Abaixo, um de seus mais famosos sonetos.

Soneto LVII

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

Amor: Petrarca e Camões

Francesco Petrarca foi contemporâneo de Dante Alighiere, viveu eternamente apaixonado por Laura de Novaes, ou simplesmente, Laura, para quem o poeta produziu dezenas de sonetos e poemas. Petrarca parece ter sido uma das grandes referência do grande poeta português Luís de Camões. Nesta postagem apresentamos um soneto de cada um dos dois poetas, cujo tema é exatamente o Amor.

           
           O amor, segundo Petrarca:
Se amor não é qual é este sentimento?
Mas se é amor, por Deus, que cousa é a tal?
Se boa por que tem ação mortal?
Se má por que é tão doce o seu tormento?

Se eu ardo por querer por que o lamento?
Se sem querer o lamentar que val?
Ó viva morte, ó deleitoso mal,
Tanto podes sem meu consentimento.

E se eu consinto sem razão pranteio.
A tão contrário vento em frágil barca,
Eu vou para o alto mar e sem governo.

É tão grave de error, de ciência é parca
Que eu mesmo não sei bem o que eu anseio
E tremo em pleno estio e ardo no inverno.

O amor, segundo Camões:
Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Sonetos para a amada

Na postagem anterior o tema "Amor" é explorado por meio de sonetos tanto por Petrarca quanto por Camões, onde se pode inferir sobre a influência do primeiro sobre o segundo. Mas esta influência fica mais explícita quando o tema é a morte de suas amadas. Abaixo, momentos distintos (e ao mesmo tempo similares) de grandes poesias.



                        Soneto para Laura, que se encontrava doente.

                        Francesco Petrarca:


A alma minha gentil que agora parte
Tão cedo deste mundo à outra vida,
Terá certo no céu grata acolhida,
Indo habitar sua mais beata parte.

Ficando entre o terceiro lume e Marte,
Será a vista do sol escurecida,
Virá depois, muita alma ao céu subida,
Vê-la – portento de natural e arte.

E se pousasse entre Mercúrio e Luz,
Brilhara mais do que eles nossa bela,
Como só se espalhara a fama sua.

A Marte certo não chegara ela.
Mas se mais alto o seu vulto flutua,
Vencera Jove e qualquer outra estrela
            Soneto para uma jovem, que pereceu num naufrágio.
            Luís de Camões:
Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida descontente,
Repousa lá no Céu eternamente,
E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento Etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente,
Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
Algũa cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,

Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.




Manhã em Hiroshima

Após a primeira arma de destruição em massa ter sido lançada sobre Hiroshima, em 1945, o poeta japonês Sankichi Toge escreveu o belo poema Manhã, reproduzido abaixo. Ele é um verdadeiro libelo a favor de que os frutos da ciência sejam usados apenas em benefício da humanidade. Aproveitando o tema reproduzimos também o poema Rosa de Hiroshima, escrito por Vinicius de Moraes e musicado por Gerson Conrad. Rosa de Hiroshima fez muito sucesso nos anos de 1973 e 1974 na voz do vocalista do grupo Secos e Molhados, Ney Matogrosso.


Manhã
Sankichi Toge

Eles sonham:
Um trabalhador sonha, baixando a picareta,
o suor transformado em cicatrizes pelo clarão.
Uma esposa sonha, dobrada sobre a máquina de costura,
entre o odor doentio da sua pele aberta.
Uma empregada de bilheteira sonha,
as suas cicatrizes escondidas,
como pinças de caranguejo, nos dois braços.
Um vendedor de fósforos sonha,
com pedaços de vidro partido cravados no pescoço.

Eles sonham:
Que bandeiras festivas tremulem
à sombra das árvores, onde os trabalhadores repousam
e as lendas de Hiroshima
são contadas por lábios suaves.

Eles sonham:
Que esses suínos com forma de homem
que não sabem como utilizar o poder
do centro da Terra senão para a carnificina.
Apenas sobrevivam em livros ilustrados
para as crianças.
Que a energia de dez milhões de cavalos-vapor por grama,
mil vezes mais forte que um poderoso explosivo.
Passe do átomo para as mãos do povo.
Que a colheita rica da ciência seja levada, em paz, ao povo
Como cachos de uvas suculentas
Húmidas de orvalho
Apanhadas
Ao amanhecer.


Rosa de Hiroshima
Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas, oh, não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroshima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa, sem nada

Quatro poetas brasileiros

Sob a sombra de velhas árvores discutem otimistas inveterados a respeito da vida. Ao lado, taças de cicuta.


Velhice / Alberto de Oliveira

Água do rio Letes, onde passas?
Venha a mim o teu curso benfazejo
Que sepulta alegrias ou desgraças
No mesmo esquecimento sem desejo.

Quero beber-te por contínuas taças...
E às horas do passado que revejo,
Pedir-te que as afogues e desfaças
Na carícia e na esmola do teu beijo!

Quem de si nunca esteve satisfeito
E com novas empresas só procura
Corrigir seu engano ou seu defeito,

Não pode recordar sem amargura
Que a mais nenhum esforço tem direito
Na ruína presente e na futura...


As Pombas / Raimundo Correia

Vai-se a primeira pomba despertada...
Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas
Das pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sangüinea e fresca a madrugada.

E à tarde, quando a rígida nortada
Sopra, aos pombais, de novo elas, serenas,
Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Voltam todas em bando e em revoada...

Também dos corações onde abotoam
Os sonhos, um a um, céleres voam,
Como voam as pombas dos pombais;

No azul da adolescência as asas soltam,
Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos corações não voltam mais.


Remorso / Olavo Bilac

Às vezes uma dor me desespera...
Nestas ânsias e dúvidas em que ando,
Cismo e padeço, neste outono, quando
Calculo o que perdi na primavera.

Versos e amores sufoquei calando,
Sem os gozar numa explosão sincera...
Ah ! Mais cem vidas ! com que ardor quisera
Mais viver, mais penar e amar cantando !

Sinto o que desperdicei na juventude;
Choro neste começo de velhice,
Mártir da hipocrisia ou da virtude.

Os beijos que não tive por tolice,
Por timidez o que sofrer não pude,
E por pudor os versos que não disse!


Velho Tema I / Vicente de Carvalho

Só a leve esperança, em toda a vida,
Disfarça a pena de viver, mais nada;
Nem é mais a existência, resumida,
Que uma grande esperança malograda.

O eterno sonho da alma desterrada,
Sonho que a traz ansiosa e embevecida,
É uma hora feliz, sempre adiada
E que não chega nunca em toda a vida.

Essa felicidade que supomos,
Árvore milagrosa que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos,

Existe, sim: mas nós não a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos.

Quatro poetas franceses

Num lugar lúgubre, uma carniça jaz sob uma mesa verde, quatro homens conversam à luz de velas sob o olhar atento de um corvo assombroso... Bate à porta uma vendedora de roupas. Alguém diz: "Entra".



O Albatroz / Charles Baudelaire

Às vezes, por prazer, os homens de equipagem
Pegam um albatroz, enorme ave marinha,
Que segue, companheiro indolente de viagem,
O navio que sobre os abismos caminha.

Mal o põem no convés por sobre as pranchas rasas,
Esse senhor do azul, sem jeito e envergonhado,
Deixa doridamente as grandes e alvas asas
Como remos cair e arrastar-se a seu lado.

Que sem graça é o viajor alado sem seu nimbo!
Ave tão bela, como está cômica e feia!
Um o irrita chegando ao seu bico em cachimbo,
Outro põe-se a imitar o enfermo que coxeia!

O poeta é semelhante ao príncipe da altura
Que busca a tempestade e ri da flecha no ar;
Exilado no chão, em meio à corja impura,
As asas de gigante impedem-no de andar.

Delírios II Alquimia do Verbo / Arthur Rimbaud 

Para mim. A história das minhas loucu-
ras.    Há muito me gabava de possuir todas as
paisagens possíveis, e julgava irrisórias as celebridades
da pintura e da poesia mo-
derna.     Gostava das pinturas idiotas, em por-
tas,  decorações, telas circenses, placas, iluminuras populares;
a literatura fora de moda, o latim da igreja,
livros eróticos sem ortografia,
romances de nossos antepassa-
dos, contos de fadas, pequenos livros in-
fantis, velhas óperas, estribilhos ingênuos,
rítmos ingênuos.      Sonhava  com as cruzadas,
viagens de descobertas de que não existem relatos, re-
públicas sem histórias, guerras de religião esmagadas,
revoluções de costumes, des-
locamentos de raças e continentes: acredi-
tava em todas as magias.      Inventava a cor das vogais!
- negro E branco, I vermelho, O azul, U ver-
de. Regulava a forma e o movimento de cada consoante, e,
com ritmos institivos, me vangloriava de 
ter inventado um verbo poético acessível, um dia ou outro,
a todos os sentidos. Era comigo traduzí-los.
Foi primeiro um experimento. Escre-
via silêncios, noites, anotava o inexprimível.
Fixava vertigens. 
(Tradução de Paulo Hecker Filho)

Aparição / Stéphane Mallarmé

A lua estava triste. Arcanjos sonhadores
Em pranto, o arco nas mãos, no sossego das flores
Aéreas, vinham tirar de evanescentes violas
Alvos ais resvalando entre o azul das corolas.
– Era o dia feliz de teu primeiro beijo.
Para me torturar, meu sonho, meu desejo
Embriagavam-se bem do perfume de queixa
Que mesmo sem remorso e sem motivo deixa,
No coração que o colhe, a colheita de um sonho.
Eu ia à toa, o olhar no chão velho e tristonho,
Quando trazendo nos cabelos um sol lindo,
Na alameda e na tarde apareceste rindo.
E eu julguei ver, com seu chapéu de luz, a fada
Que nos meus sonhos bons de criança mimada
Sempre deixou nevar dentre as mãos mal fechadas
Punhados celestiais de estrelas perfumadas.

O amor no chão / Paul Verlaine

O vento da outra noite derrubou o Amor
Que, no mais misterioso recanto do parque,
Nos sorria, ao esticar malignamente o arco,
E cujo ar nos fez meditar com fervor!

O vento da outra noite derrubou-o! O mármore
com o sopro da manhã, disperso, gira. É triste
Olhar o pedestal, onde o nome do artista
Se lê com muito esforço à sombra de uma árvore,

É triste ver em pé, sozinho, o pedestal!
Melancólicos vêm e vão pensamentos
No meu sonho, onde o mais profundo sofrimento
Evoca um solitário futuro fatal.

É triste! — E mesmo tu, não é? ficas tocada
Plo cenário dolente, embora te divirtas
Com a borboleta rubra e de oiro, que se agita
Sobre a alameda, além, de destroços juncada.


(Tradução de Fernando Pinto do Amaral)

A morte de Nanã

Patativa do Assaré é o nome artístico de Antônio Gonçalves da Silva, grande poeta nordestino. Teve educação formal, em escola, por apenas três meses durante toda a sua longa vida de agricultor. Produziu os seus mais de 1000 poemas (que sabia de cabeça) enquanto trabalhava no seu roçado, no interior do estado do Ceará. Abaixo reproduzimos um dos seus poemas, “A morte de Nanã”, que consiste em 210 versos heptassílabos, distribuídos em 21 estrofes de 10 versos. Poesia em estado bruto.

A morte de Nanã

Eu vou contá uma história
Que eu não sei como comece,
Pruquê meu coração chora,
A dor no meu peito cresce,
Aumenta o meu sofrimento
E fico ouvindo o lamento
De minha alma dolorida,
Pois é bem triste a sentença,
De quem perdeu na existência
O que mais amou na vida.


Já tô véio, acabrunhado,
Mas em riba deste chão,
Fui o mais afortunado
De todos filhos de Adão.
Dentro da minha pobreza,
Eu tinha grande riqueza:
Era uma querida filha,
Porém morreu muito nova.
Foi sacudida na cova
Com seis ano e doze dia.


Morreu na sua inocência
Aquele anjo encantadô,
Que foi na sua existência,
A cura da minha dor
E a vida do meu vivê.
Eu beijava, com prazê,
Todo dia de manhã,
Sua face pura e bela.
Era Ana o nome dela,
Mas eu chamava Nanã.


Nanã tinha mais primô
Do que as mais bonita jóia,
Mais linda do que as fulô
De um tá de Jardim de Tróia
Que fala o doutô Conrado.
Seu cabelo cacheado,
Preto da cor de veludo.
Nanã era meu tesouro,
Meu diamante, meu ouro,
Meu anjo, meu céu, meu tudo.


Pelo terreiro corria,
Sempre se rindo e cantando,
Era nutrida e sadia,
Pois, mesmo se alimentando
Com feijão, milho e farinha,
Era gorda, bem gordinha
Minha querida Nanã,
Tão gorda que reluzia.
O seu corpo parecia
Uma banana maçã.


Todo dia, todo dia,
Quando eu voltava da roça,
Na mais completa alegria,
Dentro da minha paioça
Minha Nanã eu achava.
Por isso, eu não invejava
Riqueza nem posição
Dos grande deste país,
Pois eu era o mais feliz
De todos filho de Adão.


Mas, neste mundo de Cristo,
Pobre não pode gozá.
Eu, quando me lembro disto,
Dá vontade de chorá.
Quando há seca no sertão,
Ao pobre falta feijão,
Farinha, milho e arroz.
Foi isso que aconteceu:
A minha filha morreu,
Na seca de trinta e dois.


Vendo que não tinha inverno,
O meu patrão, um tirano,
Sem temê Deus nem o inferno,
Me deixou no desengano,
Sem nada mais me arranjá.
Teve que se alimentá,
Minha querida Nanã,
No mais penoso maltrato,
Comendo caça do mato
E goma de mucunã.


E com as braba comida,
Aquela pobre inocente
Foi mudando a sua vida,
Foi ficando diferente.
Não se ria nem brincava,
Bem pouco se alimentava
E enquanto a sua gordura
No corpo diminuía,
No meu coração crescia
A minha grande tortura.


Quando ela via o angu,
Todo dia de manhã,
Ou mesmo o rôxo bêjú
Da goma da mucunã,
Sem a comida querer,
Oiava pro de comê,
Depois oiava pra mim
E o meu coração doía,
Quando Nanã me dizia:
Papai, ô comida ruim!


Se passava o dia inteiro
E a coitada não comia,
Não brincava no terreiro
Nem cantava de alegria,
Pois a falta de alimento
Acaba o contentamento,
Tudo destrói e consome.
Não saía da tipóia
A minha adorada jóia,
Enfraquecida de fome.


Daqueles óio tão lindo
Eu via a luz se apagando
E tudo diminuíndo.
Quando eu tava reparando
Os oínho da criança,
Vinha na minha lembrança
Um candieiro vazio
Com uma tochinha acesa
Representando a tristeza
Bem na ponta do pavio.


E, numa noite de agosto,
Noite escura e sem luá,
Eu vi crescer meu desgosto,
Eu vi crescer meu pená.
Naquela noite, a criança
Se achava sem esperança.
E quando veio o rompê
Da linda e risonha aurora,
Faltava bem poucas hora
Pra minha Nanã morrê.


Por ali ninguém chegou,
Ninguém reparou nem viu
Aquela cena de horrô
Que o rico nunca assistiu,
Só eu e minha muié,
Que ainda cheia de fé
Rezava pro Pai Eterno,
Dando suspiro magoado
Com o seu rosto moiado
Das água do amô materno.


E, enquanto nós assistia
A morte da pequenina,
Na manhã daquele dia,
Veio um bando de campina,
De canário e sabiá
E começaram a cantá
Um hino santificado,
Na copa de um cajueiro
Que havia bem no terreiro
Do meu rancho esburacado.


Aqueles pássaro cantava,
Em louvô da despedida,
Vendo que Nanã deixava
As miséria desta vida.
Pois não havia recurso,
Já tava fugindo os pulso.
Naquele estado mesquinho,
Ia apressando o cansaço,
Seguindo pelo compasso
Das música dos passarinho.


Na sua pequena boca
Eu vi os lábio tremendo
E, naquela aflição louca,
Ela também conhecendo
Que a vida tava no fim,
Foi arregalando pra mim
Os tristes oinho seu,
Fez um esforço ai, ai, ai,
E disse: “abença papai!”
Fechou os ói e morreu.


Enquanto finalizava
Seu momento derradeiro,
Lá fora os pássaro cantava,
Na copa do cajueiro.
Em vez de gemido e chôro,
As ave cantava em coro.
Era o bendito perfeito
Da morte de meu anjinho.
Nunca mais os passarinho
Cantaram daquele jeito.


Nanã foi, naquele dia,
A Jesus mostrá seu riso
E aumentá mais a quantia
Dos anjo do Paraíso.
Na minha imaginação,
Caço e não acho expressão
Pra dizê como é que fico.
Pensando naquele adeus
E a culpa não é de Deus,
A culpa é dos home rico.


Morreu no maió maltrato
Meu amô lindo e mimoso.
Meu patrão, aquele ingrato,
Foi o maió criminoso,
Foi o maió assassino.
O meu anjo pequenino
Foi sacudido no fundo
Do mais pobre cemitério
E eu hoje me considero
O mais pobre deste mundo.


Soluçando, pensativo,
Sem consolo e sem assunto,
Eu sinto que inda tô vivo,
Mas meu jeito é de defunto.
Envolvido na tristeza,
No meu rancho de pobreza,
Toda vez que eu vou rezá,
Com meus joêio no chão,
Peço em minhas oração:
Nanã, venha me buscá!