terça-feira, 21 de abril de 2020

Outro pesadelo

Acordei após um pesadelo e lembrei-me de Gerard de Nerval: "O Sonho é uma segunda vida". E pensei, tentando encontrar uma simetria: a vida pode ser um outro pesadelo. No centro, uma crise política e de saúde pública.

Bolsonaro apresenta um contumaz desprezo pelos mais humildes e uma arrebatadora admiração pelos poderosos, em particular por banqueiros e empresários. É um herói para maus caráteres, para medíocres, para fracassados e para ignorantes. Antes da eleição presidencial de 2018, Bolsonaro mostrara em diversas ocasiões quem ele era. Racista, debochou e fez piada com negros em uma Associação Israelita no Rio de Janeiro. Xenófobo-regionalista, achincalhou a população do Nordeste. Homofóbico, declarou com todo o orgulho que preferia ter um filho morto a homossexual. Misógino, por várias ocasiões foi extremamente agressivo e deselegante com repórteres mulheres. Incentivou a violência contra a mulher, ao afirmar que não estupraria uma deputada porque ela não mereceria. Foi anti-democrático, ao homenagear torturadores e considerar como herói o maior assassino do regime militar brasileiro. Foi anti-patriota, ao bater continência à bandeira dos Estados Unidos. Amante de assassinos, ao comentar que o regime militar deveria ter matado mais pessoas. Fascista, quando gritou em comício que deveriam fuzilar os adversários políticos. Agora, com a pandemia da covid-19 e o desprezo descarado pela vida dos cidadãos, vemos que também lhe caberia bem um outro adjetivo: nazista. Em resumo, não vale uma cibazol!

segunda-feira, 20 de abril de 2020

srta. Swann

Gilberte, a filha querida do sr. Charles Swann e paixão de infância/adolescência do Narrador de Em busca do tempo perdido, desaparece do segundo ao quinto volumes da obra, reaparecendo novamente apenas na segunda metade do sexto volume, A Fugitiva. Entretanto, nesse reaparecimento a srta. de Swann agora é chamada de srta. de Forcheville, que recebera esse título pelo fato de sua mãe ter desposado após a viuvez um nobre, o sr. de Forcheville. Gilberte, também, por um golpe de sorte do destino, recebeu uma grande herança de um tio de Swann que morreu sem deixar descendentes, se tornando assim uma das mais ricas herdeiras da França. O Narrador, nos primeiros momentos do reencontro, não reconhece o seu antigo amor, mas quando toma consciência de quem é a moça loura com um ar um pouco mais delicado, 'quase sofredor', ele recorda dos tempos em que passeava pelos Campos Elíseos com o coração transbordando de esperança e sofrimento; mas agora, a antiga filha da sra. Odette não representa mais nada. Gilberte se casará com o nobre Saint-Loup e passará de uma pequena criança burguesa, para uma interessante moça burguesa rica e finalmente uma nobre das mais requisitadas do faubourg Saint-Germain. Eis uma rápida descrição da Gilberte nobre na tradução do poeta Carlos Drummond de Andrade:

Participando, numa palavra, da opinião dessa personagem de opereta que declara: "Meu nome me dispensa, creio eu, de dizer mais nada", Gilbert pôs-se a ostentar desprezo pelo que desejara tanto, a declarar que todos os moradores do faubourg Saint-Germain eram idiotas e infrequentáveis, e, passando da palavra à ação, deixou de frequentá-los. Pessoas que só a conheceram depois dessa época, tendo-a ouvido, nos primeiros contatos, convertida em duquesa de Guermantes, zombar alegremente da sociedade que lhe seria tão fácil ver, e, como não a vissem receber uma só pessoa dessa sociedade, pois se a mais brilhante de todas se aventurasse a ir visitá-la, seria recebida de cara com um bocejo, envergonham-se retrospectivamente de terem podido achar algum encantamento na alta-roda, e nunca ousariam revelar esse segredo humilhante de suas fraquezas passadas a uma senhora que, por uma elevação essencial de sua natureza, se lhes afigura jamais seria capaz de compreendê-las. Ouvem-na zombar com tanto espírito dos duques e vêem-na, coisa ainda mais significativa, harmonizar inteiramente sua conduta com essas zombarias! Sem dúvida, não cogitam de apurar as causas do acidente que transformou a srta. Swann em srta. de Forcheville, e a srta. de Forcheville em marquesa de Saint-Loup, e depois em duquesa de Guermantes. Talvez não lhes ocorra também que esse acidente serviria, menos pelos seus efeitos do que pelas suas causas, para explicar a atitude ulterior de Gilberte, pois o convívio com plebeus não é concebido da mesma maneira como o faria a srta. Swann por uma dama a quem todo mundo chama de "senhora duquesa", e as duquesas, que a aborrecem, de "minha prima". Desdenhamos de bom grado um objetivo que não logramos atingir ou que atingimos definitivamente.

domingo, 19 de abril de 2020

A morte de Albertine

Outra morte que marcará indelevelmente o Narrador do Em busca do tempo perdido refere-se a de sua amada Albertine. Na verdade, essa morte é o que suscitará ao Narrador o maior período de tempo de reflexão a respeito desse fato definitivo de nossas vidas. Depois de praticamente ser expulsa da casa do Narrador por causa de um ciúme exagerado, Albertine vai para o interior, para a casa de uma parente, mas ainda escreve para Marcel com a intenção de reatar os laços e voltar para a casa. Entretanto, antes que o Narrador possa tomar alguma atitude, ele recebe um bilhete da sra. Bontemps com uma notícia arrasadora:

"Meu pobre amigo, nossa Albertine já não existe. Perdoe-me dizer essa coisa horrível a quem gostava tanto dela. Foi jogada contra uma árvore pelo cavalo, durante o passeio. Apesar de todos os nossos esforços, não escapou. Antes tivesse eu morrido em seu lugar!"

Depois desse bilhete, o Narrador se confrontará com a inexorabilidade da morte e esse pensamento o guiará durante muito tempo. Abaixo várias referências à tristeza e ao sentimento de culpa, tal como descrito por Marcel Proust no sexto volume da obra, A Fugitiva, na tradução de Carlos Drummond de Andrade.

Amanhã, depois de amanhã, era um futuro de vida comum, talvez para sempre, que começava; meu coração atirou-se a ele, mas já não estava mais ali, Albertine morrera.

Ligada que estava a todas as estações a lembrança de Albertine, par que eu a perdesse seria preciso que as esquecesse todas, prestes a conhecê-las de nov, como um velho atacado de hemiplegia e que reaprende a ler; seria preciso que eu renunciasse a todo o universo.

(...) tudo isto modificava o caráter de minha tristeza retrospectiva tanto quanto as impressões de luz ou de perfume que lhe  estavam associadas, e completava cada um dos anos solares que eu tinha vivido - e que, só pelas suas primaveras, suas árvores, suas brisas, já eram tão tristes por causa da lembrança inseparável dela -, duplicando-o com uma espécie de ano sentimental, em que as horas não eram definidas pela posição do sol, mas pela espera de um encontro, em que o comprimento dos dias ou os progressos da temperatura eram medidos pelo voo de minhas esperanças, pelo progresso de nossa intimidade, pela transformação progressiva do seu rosto, pelas viagens que ela fizera, pela frequência e pelo estilo das cartas que escrevera durante certa ausência, pela sua maior ou menor precipitação em me ver de volta.

Então, ao pensar no vazio que eu sentiria agora voltando para casa, que não mais veria cá de baixo o quarto de Albertine, cuja luz se apagara para sempre, compreendi o quanto, naquela noite em que, deixando Brichot, eu imaginara sentir tédio e pesar por não poder ir passear e amar por aí afora, compreendi o quanto me enganara, e era somente porque julgava inteiramente segura a posse daquele tesouro cujos reflexos vinham lá do alto até mim, que eu me descuidara de apreciar-lhe o valor, e que fazia com que me parecesse forçosamente inferior a outros prazeres, por pequenos que fossem, mas que, procurando imaginá-los, eu avaliava. 

A ideia de que temos de morrer é mais cruel do que a morte, porém menos que a ideia de que alguém morreu, e que, aplanando-se depois de haver engolfado a criatura, estende, sem um redemoinho sequer naquele ponto, uma realidade de onde essa criatura está excluída, onde não existe mais nenhuma vontade, nenhum conhecimento, e da qual é tão difícil remontar à ideia de que essa criatura viveu, quanto é difícil, no que toca à lembrança recentíssima de sua vida, pensar que seja assimilável às imagens sem consistência, às lembranças deixadas pelas personagens do romance que lemos.

Agora não estava mais em parte alguma, ainda que percorresse a terra de um polo a outro não encontraria mais Albertine. A realidade que se havia fechado sobre ela voltara a tornar-se compacta, apagara até o rastro do ser que nela submergira. Não era mais que um nome, como aquela sra. de Charlus, de quem diziam com indiferença os que a tinham conhecido: "Era encantadora".

(...) o que me causava espanto não era, como nos primeiros dias, que Albertine, tão viva em mim, pudesse não existir mais sobre a face da terra, pudesse estar morta, mas que Albertine que não existia mais sobre a terra, e morrera, houvesse permanecido tão viva em mim.

sábado, 18 de abril de 2020

O incipit da Recherche.

        Na postagem passada fizemos várias referências ao excelente trabalho da Profa. Sheila Santos, da Universidade Federal de Santa Catarina, que realizou uma análise primorosa da primeira tradução brasileira da obra Em busca do tempo perdido, tal como publicado pela editora Globo [1]; o intuito da investigação, entre outros, foi o de identificar a uniformidade linguística da tradução coletiva. A professora utiliza diversas páginas para fazer a análise das frases iniciais, o incipit, do livro de Marcel Proust. Aqui vou fazer uns poucos comentários sobre a longa discussão que existe a respeito dessa temática.

        Antes de ir ao incipit do Em busca do tempo perdido, no caso, o início do primeiro volume da obra No caminho de Swann, acho que é interessante relembrar uma lição popular de Umberto Eco, "Seis Passeios Pelos Bosques da Ficcção" [2]. Eco era um fã de Gérard de Nerval, mais particularmente da obra Sylvie, sobre a qual ele ministrou uma disciplina de pós-graduação na Universidade de Columbia. No Seis Passeios Eco faz uma análise de diversos aspectos da obra, mas começa discutindo a frase inicial de Sylvie: Je sortais d'un théâtre où tous les soirs je paraissais aux avant-scènes en grande tenue de soupirant. Segundo Eco, essa é uma frase difícil de ser traduzida para o inglês porque o tempo verbal utilizado é o pretérito imperfeito, mas na língua saxônica não existe esse tempo. Isso impõe uma dificuldade para o tradutor, mas Eco propõe duas possíveis traduções: I came out of a theater, where I appeared every evening in the full dress of a sighing lover e I came out of a theater, where I used to spend every evening in the proscenium boxes in the role of an ardent wooer. Eco lembra que o pretérito imperfeito é interessante porque ele tem caráter simultâneo de duração e de interação. No primeiro aspecto o verbo mostra algo que estava acontecendo no passado mas não fornece informação sobre o início e o fim da ação. Quando dizemos, 'eu estava lendo', há uma imprecisão quanto ao tempo preciso em que isso ocorreu. No segundo aspecto, de interação, Eco afirma que na ação representada pelo imperfeito a ação se repetia. Empregado na primeira frase de Sylvie, o imperfeito fornece uma imprecisão temporal que será importante no desenvolvimento do romance. Eco ainda discute outros aspectos da obra, mas o importante para essa postagem é o tempo verbal utilizado por Nerval.

        Retornemos ao incipit do livro principal de Marcel Proust. Segundo a professora Sheila Santos, "comumente, considera-se constitutivo do incipit apenas a primeira frase da obra, que no caso da Recherche seria “Longtemps, je me suis couché de bonne heure”. Porém, ele pode estender-se além desse limite, abarcando uma sequência textual mais longa, como, por exemplo, as primeiras frases ou o primeiro parágrafo." Assim, de acordo com a professora, pode-se considerar o incipit da obra as duas primeiras frases:

Longtemps, je me suis couché de bonne heure. Parfois, à peine ma bougie éteinte, mes yeux se fermaient si vite que je n'avais pas le temps de me dire: “Je m'endors”.”

        Muitos artigos já foram escritos tentando decifrar esse início da obra de Proust. Em relação às versões brasileiras, a professora da UFSC fornece uma interpretação para "as transformações linguísticas operadas pelos tradutores brasileiros da Recherche". Antes de ver as explicações, vejamos as duas versões brasileiras para as frases iniciais de No Caminho de Swann:, respectivamente devidas a Mario Quintana e a Fernando Py:

Durante muito tempo, costumava deitar-me cedo. Às vezes, mal apagava a vela, meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar: “Adormeço”.”

Durante muito tempo, deitava-me cedo. Às vezes, mal apagada a vela, meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar: “Vou dormir”.”

A tradução italiana de 1952, assinada por Natalia Ginzburg para a editora Einaudi de Turim, é a seguinte:

“Per molto tempo, mi sono coricato presto la sera. A volte, non appena spenta la candela, mi si chiudevan gli occhi così subito che neppure potevo dire a me stesso: “M'addormento.”

Por seu turno, a primeira tradução inglesa, devida a C.K. Scott Moncrieff, aparece da seguinte maneira:

“For a long time I would go to bed early. Sometimes, the candle barely out, my eyes closed so quickly that I did not have time to tell myself: “I'm falling asleep.”

Já na tradução inglesa mais moderna, de Lydia Davis, encontramos o seguinte texto:

For a long time, I went to bed early. Sometimes, my candle scarcely out, my eyes would close so quickly that I did not have time to say to myself: “I'm falling asleep.”

      De acordo com a Ref. [1], o advérbio de abertura da obra, "longtemps", vai fazer eco com as palavras finais do romance, três mil páginas mais a frente: "dans le Temps", que se constitui no encerramento do Le temps retrouvé. Para traduzir esse advérbio que carrega consigo muito significado, os tradutores brasileiros utilizaram a locução verbal "durante muito tempo". Observe-se que as traduções italiana e inglesas também escolheram expressões com significado similar. Já o tempo verbal da primeira frase é o passé composé, que é um tempo verbal com pouca utilização por parte do autor, segundo a Ref. [1]. Talvez se Proust tivesse utilizado o pretérito imperfeito no começo da obra - como destacado por Umberto Eco com referência à obra de Nerval - isso tivesse sugerido um caráter de sonho ou de irrealidade ao texto da Recherche, mas ao contrário, os fatos e lembranças rememorados eram bastante reais para o Narrador, e assim tal tempo verbal não poderia ser utilizado. Destaca-se que o imperfeito, apesar desse início, é bastante utilizado por Proust ao longo da obra, para destacar principalmente a interconexão entre o passado e o presente. De qualquer forma, há uma ambiguidade temporal na primeira frase da Recherche com a utilização do passé composé que será seguido por uma série de imparfaits nas restantes frases do parágrafo. É interessante também destacar que a expressão no presente “je m'endors” ganha uma tradução de Mario Quintana no mesmo tempo verbal, assim como a tradução italiana de Ginzburg. Fernando Py, por sua vez, prefere traduzir para uma expressão no tempo futuro, enquanto as duas versões inglesas utilizam um present continuous. Essas são apenas algumas das sutilezas das primeiras frases do romance, na verdade, a análise que pode ser realizada relativa a elas é muito mais complexa. Para os que quiserem se aprofundar nesse tema podem se dirigir à Ref. [1] e respectivos títulos citados na bibliografia da tese.


[1] Sheila Maria dos Santos, (Des)aparecer no texto: o escritor-tradutor na tradução coletiva de A La Recherche Du Temps Perdu de Marcel Proust, Tese de Doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis: 2018.

[2] Umberto Eco, Seis Passeios Pelo Bosque da Ficção, Tradução de Hildegard Feist, editora Companhia das Letras, São Paulo: 2004.

sexta-feira, 17 de abril de 2020

A tradução da Recherche

Não trabalho com tradução nem pertenço à área da literatura, mas acredito que quando a pessoa se dispõe a traduzir Proust é como começar a penetrar numa floresta da infância que se sabe repleta de monstros, os quais estão prestes a devorar o intruso. Ou então, como um homem que se voluntaria para ir à guerra e quando embarca para a primeira batalha, não sabe se será possível retornar. A tradução de Em busca do tempo perdido, pela sua extensão, contendo mais de um milhão de palavras e repleta de longas orações, constitui-se num trabalho de fôlego. A primeira tradução total da obra realizada por uma única pessoa é devida a Eva Rechel-Mertens, que verteu para o alemão a Recherche em apenas incríveis quatro anos, de 1953 a 1957 [1]. Outra tradução total realizada por uma única pessoa foi realizada pelo poeta italiano Giovanni Raboni, que traduziu a obra para a sua língua materna a partir de 1983 sob a égide da editora Arnoldo Mondadori, de Milão [2,3]. No Brasil, o poeta carioca Fernando Py também conseguiu a façanha de verter para o português toda La Recherche, que foi publicada pela editora Nova Fronteira, do Rio de Janeiro, em 2016. De acordo com o próprio Fernando Py "não é tarefa tranquila traduzir uma obra de vulto como a de Proust. Ainda mais quando já existem outras em português. Mas não há dúvida de que é uma aventura intelectual largamente compensadora, um trabalho altamente gratificante" [4]. Houve uma tentativa de tradução para o inglês feita por Charles K. Scott Moncrieff, que conseguiu traduzir os seis primeiros volumes, mas a sua morte em 1930 o impediu de trabalhar no último volume e concluir o projeto.

Assim, a maioria das traduções é realizada por um grupo de tradutores. A versão inglesa moderna foi realizada pela escritora-tradutora americana Lydia Davis (Swann's Way), pelo escritor-tradutor australiano James Grieve (The Shadow of Young Girls in Flower), pelo escritor-tradutor australiano Mark Treharne (The Guermantes Way), pelo escritor-tradutor inglês John Sturrock (Sodom and Gomorrha), pela escritora-tradutora inglesa e professora universitária Carol Clark (the Prisoner), pelo escritor-tradutor inglês Peter Collier (The Fugitive) e pelo escritor-tradutor inglês Ian Patterson (Finding Time Again) [1]. Essa tradução multinacional foi capitaneada pela editora inglesa Penguin Press, que permitiu que o trabalho fosse levado a cabo em pouco tempo, a expensas de não formar um todo homogêneo. De acordo com o blogueiro Allan Ray Jasa [5], que fez a leitura de um fôlego, Davis, Sturrock e de certa forma Patterson, escolheram uma tradução que conservou muitas palavras próximas do francês, ocasionando certas sintaxes estranhas no inglês. Por outro lado, traduções nas quais o texto ficou com um inglês mais moderno foram conseguidas por Grieve, Treharne, Clark e Collier. Isso representa uma das dificuldades na tradução da obra. No Brasil, além da tradução recente assinada pelo poeta Fernando Py como já comentado, existe uma tradução mais antiga realizada por vários escritores para a editora Globo de Porto Alegre. Essa tradução brasileira, que utilizo em várias postagens desse blog, foi realizada pelo poeta Mario Quintana (os quatro primeiros volumes [6-9]), pelo poeta Manuel Bandeira e Lourdes Sousa de Alencar (A Prisioneira) [10], pelo poeta Carlos Drummond de Andrade (A Fugitiva) [11] e pela escritora e ensaísta Lúcia Miguel Pereira (O Tempo Redescoberto) [12]. O problema da coerência nessa tradução brasileira assinada por diversas pessoas e ainda por cima ser baseada na versão não definitiva da obra francesa é discutido minuciosamente na tese de doutorado da Profa. Sheila Santos [1]. Espero conseguir ler mais sobre o assunto.


Referências:

[1]Sheila Maria dos Santos, (Des)aparecer no texto: o escritor-tradutor na tradução coletiva de A La Recherche Du Temps Perdu de Marcel Proust, Tese de Doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis: 2018.

[2] Marcel Proust, Alla Ricerca del tempo perduto, La Prigioniera, Traduzione di Giovanni Raboni, Arnoldo Mondadori Editore, Milano: 1989.

[3] A contracapa da edição de bolso Oscar Mondadori afirma que "è d'essere stata tradotta interamente (per la prima volta nel mondo) da una sola persona, il poeta Giovani Raboni". Contudo, de acordo com a Ref. [1], "Agostini Ouafi assinala que Rabani não trabalhou só, tendo recebido a colaboração editorial, linguística e literária de Marco Beck, Giorgio Coroyi e Jean-Louis Provoyer".

[4] Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido, Tradução de Fernando Py, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro: 2016.

[5] https://medium.com/@allanrayjasa/on-reading-the-entire-in-search-of-lost-time-by-marcel-proust-9be5279f822a

[6] Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido: No Caminho de Swann, Tradução de Mario Quintana para Du cotê de chez Swann, 12a. ed., Editora Globo, São Paulo: 1990.

[7] Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido: À Sombra das Raparigas em Flor, Tradução de Mario Quintana para À l'ombre des jeunes filles en fleur, 12a. ed., Editora Globo, São Paulo: 1995.

[8] Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido: O Caminho de Guermantes, Tradução de Mario Quintana para Le côté de Guermantes, 9a. ed., Editora Globo, São Paulo: 1989.

[9] Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido: Sodoma e Gomorra, Tradução de Mario Quintana para Sodome et gomorrhe, 9a. ed., Editora Globo, São Paulo: 1989.

[10] Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido: A Prisioneira, Tradução de Manuel Bandeira e Lourdes Sousa de Alencar para La prisonnière, 9a. ed., Editora Globo, São Paulo: 1989.

[11] Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido: A Fugitiva, Tradução de Carlos Drummond de Andrade para Albertine disparue, 9a. ed., Editora Globo, São Paulo: 1992.

[12] Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido: O Tempo Redescoberto, Tradução de Lúcia Miguel Pereira para Le temps retrouvé, 8a. ed., Editora Globo, São Paulo: 1988.


quinta-feira, 16 de abril de 2020

A morte de Swann

Durante a sua vida cheia de reflexões e observações minuciosas acerca das pessoas da sociedade francesa do final do século XIX e de seus sentimentos, o Narrador de Em busca do tempo perdido encarará a morte de vários conhecidos e de algumas pessoas amadas. A descrição dessas mortes é um dos pontos centrais na obra principal de Marcel Proust. Assim, o desaparecimento da avó do Narrador representa um momento sublime, de grande literatura (já apresentada em outra postagem), quando é possível descobrirmos, na tradução poética de Mário Quintana que "sobre aquele leito fúnebre, a morte, como o escultor da Idade Média, tinha-a deitado sob a aparência de menina e moça". O tempo passará e a intermitência do coração, segundo o próprio Narrador, fará com que a lembrança do ente querido seja conseguida apenas de tempos em tempos, até que finalmente o passar dos anos levará ao esquecimento total. 

Em relação ao escritor Bergotte, o aspecto mais importante deste acontecimento terminal é o fato de seus livros expostos nas livrarias se transformarem num símbolo de ressurreição, como se o grande artista, na verdade, continuasse a sobreviver nas suas obras de arte. No que diz respeito à Albertine - que viveu com o Narrador um romance complexo, denso e repleto de traições e desconfianças - a morte trouxe tristeza e angústia, até atingir, após muito tempo, a indiferença e o esquecimento. Poderíamos também lembrar aqui da existência e morte do pintor de mãos gordas e amigo, cuja única recordação de sua vida anônima será um quadro deixado, e que não se encontra mais no salão onde ele fora originalmente exposto. E também lemos sobre o triste final do velho Charles Swann - personagem central do volume inicial da obra, No caminho de Swann - que foi assim descrito pela tradução de Manuel Bandeira e Lourdes Sousa de Alencar no quinto volume da obra, A Prisioneira:

A morte de Swann impressionara-me na ocasião, profundamente. A morte de Swann! Swann não tem nesta frase o simples papel de um genitivo. Quero referir-me à morte particular, à morte enviada pelo destino ao serviço de Swann. Pois dizemos morte para simplificar, mas são tantas as mortes quantas as pessoas. Não possuímos sentido que nos permita ver, correndo a toda velocidade em todas as direções, as mortes, as mortes ativas dirigidas pelo destino a este ou àquele. Muitas vezes são mortes que só se desobrigarão inteiramente de sua tarefa dois ou três anos depois. Correm, vão pôr um câncer nas entranhas de um Swann, saem depois para outras tarefas, só voltando quando, feita a operação pelos cirurgiões, é necessário repor o câncer. Depois vem o momento em que se lê no Gaulois que a saúde de Swann inspirou cuidados, mas que a sua indisposição está em perfeita via de cura. Então, poucos minutos antes do último suspiro, a morte, como uma religiosa que nos tivesse assistido em vez de nos destruir, chega para acompanhar os nossos derradeiros instantes e coroa com uma auréola suprema a criatura para sempre enregelada cujo coração cessou de bater. E é essa diversidade das mortes, o mistério de seus circuitos, a cor de sua charpa fatal que dá um quê tão impressionante às linhas dos jornais: "Soubemos com vivo pesar que o sr. Charles Swann faleceu ontem em Paris, na sua residência, vítima de pertinaz moléstia (...)".


quarta-feira, 15 de abril de 2020

Marcel

O narrador do Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, discute sobre o sentido da vida, sobre os hábitos, as ambições, a inveja, o amor, a arte e a morte. Entretanto, em toda a longa obra, com mais de um milhão de palavras, o nome desse narrador só aparece duas vezes, ambas no quinto volume, A Prisioneira (La prisonnière). A primeira referência ao nome acontece quando a personagem Albertine desperta de um sono, e nessa parte do enredo, o personagem se revela e, aparentemente, se confunde com o autor. A segunda referência ocorre quando a mesma Albertine manda um bilhete para o narrador e este a fica aguardando com uma mistura de angústia e satisfação. Estes dois momentos foram traduzidos por Manuel Bandeira e Lourdes Sousa de Alencar para a editora Globo das maneiras descritas abaixo.

A hesitação do acordar revelada pelo seu silêncio não o era pelo seu olhar. Logo que recuperava a palavra, dizia: "Meu" ou "Meu querido", seguidos um ou outro do meu nome de batismo, o que, atribuindo ao narrador o mesmo nome que ao autor deste livro, daria: ''Meu Marcel", "Meu querido Marcel". Já eu não consentia desde então que em família os parentes, chamando-me também querido, tirassem às palavras deliciosas que me dizia Albertine o privilégio de serem únicas. Ao dizê-las, fazia um momo, que logo transformava num beijo. Tão depressa adormecera havia pouco, tão depressa acordava.

[...]

Senti um vivo movimento de gratidão por Albertine, que, era visível, não tinha ido ao Trocadero por causa das amigas de Léa e me mostrava , renunciando ao espetáculo e voltando a meu chamado, que me pertencia mais do que imaginava. Maior ainda foi ele quando um rápido me trouxe um bilhetinho dela recomendando-me paciência e onde havia daquelas expressões carinhosas que lhe eram familiares: "Meu querido, meu caro Marcel, chegarei menos depressa do que este rápido, de cuja bicicleta gostaria de me utilizar para me ver depressa junto de você. Como pode pensar que eu possa ficar zangada e que alguma coisa possa me entreter mais do que estar com você? Será gostoso sairmos juntos, seria ainda mais gostoso nunca sairmos senão juntos Que ideias são essas suas? Esse Marcel! Toda sua, Albertine".