quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Quanto mais sós...

A amada que foi levada pelo tempo, que não respondeu a uma carta (um e-mail ou um whatsapp, para os jovens leitores), que faltou a um encontro, que menosprezou um presente, que esnobou um poema, que nem se dignou a cruzar o seu olhar na direção onde o angustiado homem se encontrava, ávido por alguns segundos de atenção... Os encontros e os desencontros da vida novamente na pena ágil de Marcel Proust (O caminho de Guermantes, terceiro volume de Em busca do tempo perdido) na tradução de Mario Quintana:

"E passado o último carro, quando sentimos com dor que ela não mais virá, vamos jantar na ilha; por cima dos álamos trêmulos que recordam sem fim os mistérios do entardecer mais do que respondem a eles, uma nuvem rósea põe uma última cor de vida no céu asserenado. Algumas gotas de chuva caem sem ruído na água, antiga, mas na sua divina infância, que continua sendo da cor do tempo e que esquece a todo instante as imagens das nuvens e das flores. E depois que os gerânios, intensificando a iluminação de suas cores, lutaram inutilmente contra o crepúsculo ensombrecido, uma bruma vem envolver a ilha que adormece, passeamos pela úmida escuridão, pela margem da água, onde, quando muito, a passagem silenciosa de um cisne nos pasma como num leito noturno os olhos abertos um instante e o sorriso de uma criança que não supúnhamos desperta. Então quiséramos tanto mais ter conosco uma amada quanto mais sós nos sentimos e mais longe nos podemos crer.
(...)
Quando me encontrei sozinho em casa, lembrando-me que tinha ido fazer uma excursão vesperal com Albertine, que cearia depois de amanhã em casa da sra. de Guermantes e, de que tinha de responder a uma carta de Gilberte, três mulheres a quem havia querido, considerei que a nossa vida social está cheia, como o estúdio de um artista, de esboços abandonados em que por um momento julgáramos poder plasmar a nossa necessidade de um grande amor, mas não pensei que às vezes, se o esboço não é muito antigo, pode acontecer que o retornemos e façamos dele uma obra muito diferente, e talvez até mais importante do que aquela que havíamos projetado a princípio."

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