segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

O tempo recuperado

O vício da preguiça, uma alegada falta de tempo, a incapacidade de superar obstáculos, há toda uma série de desculpas para não se realizar uma tarefa. Refiro-me, especificamente nesse ponto, à leitura do "Em busca do tempo perdido", de Marcel Proust, que distribuído em sete volume, ou cerca de três mil páginas - da edição publicada pela Editora Globo - utilizei 29 anos para a conclusão de sua leitura (23/12/1991 - 03/01/2021). Na obra, desfilam e se entrelaçam as vidas de diversos personagens, como os artistas: o escritor Bergotte, o músico Sr. Vinteuil, o pintor Elstir, a atriz Berma, o pianista Dechambre, o violinista Morel; pessoas da classe média como o engenheiro Legrandin, dr. Cottard, o professor Brichót, da Sorbonne, o Sr. de Bontemps, Diretor do Gabinete do Ministro, além de uma figura importantíssima na trama - Charles Swann - conhecido vendedor de obras de arte que trafegava com desenvoltura entre a burguesia e a aristocracia parisiense; muitos trabalhadores, como o ascensorista e os garçons do hotel de Balbec, a florista, o entregador de alimentos na casa de Combray, os mordomos das grandes mansões, os vários mensageiros, a vendedora de café numa estação de trens,  os criados, os cobradores, os jardineiros, Jupien, Françoise; Marcel (o narrador), sua mãe, seu pai e sua avó; Gilberte e sua mãe Odette, Albertine, Andrée, Gisèle, Miss Rosemond, Sr. e Sra. Verdurin; Robert de Saint-Loup e Bloch; e os aristocratas: o duque e a duquesa de Guermantes, Princesa Marie-Gilbert Guermantes, princesa de Parma, marquesa Sra. de Villeparisis, conde de Crécy, condessa de Molé, viscondessa de Saint-Fiacre, Barão de Charlus e dezenas, talvez centenas de outros tipos. "Em busca do tempo perdido" é a história de um escritor que quer começar a sua obra, mas nunca tem força suficiente para realizá-la, consumindo o seu tempo em conversas com amigos, em reuniões nos salões chiques da alta aristocracia ou, movido pelo ciúme, em perseguição à mulher amada. Três lugares, localizados no espaço, no tempo e na memória - voluntária e involuntária - servirão de cenários principais para os acontecimentos do romance: Combray, Balbec e Paris. Quando pequeno, em Combray, o narrador acreditava que o caminho que levava à terra dos Guermantes era inconciliável com o caminho que levava à Méséglise, o caminho de Swann, uma vez que estavam localizados em direções opostas. De fato, pelos campos ao redor da cidade poderiam ser feitos dois passeios a partir da casa da família do narrador: saindo pelo portão principal percorria-se o caminho que passava pela propriedade do Sr. Swann; saindo pelo portão dos fundos ia-se por um alameda que passava pela propriedade dos Guermantes, ricos aristocratas de longa tradição. O caminho de Guermantes representava algo inacessível, abstrato, ideal, enquanto que o caminho de Swann, margeando casas de pessoas conhecidas e repleto de cores e aromas de flores, representava  objetivos acessíveis e concretos. Muitos anos depois, Gilberte, o amor da infância do narrador, mostrou-lhe que era possível numa tarde, fazer o passeio pelos dois caminhos; a incompatibilidade, ao final, era pura ilusão. A burguesia e a aristocracia - que também poderiam ser simbolizadas pelos dois caminhos - convergiriam mais adiante na filha de Gilberte Swann e Robert de Saint-Loup. Na cidade praiana de Balbec, o narrador encontrará as moças em flor e se apaixonará por Albertine, com quem terá uma relação doentia de amor e ciúme até a morte trágica da mulher. Também encontrará o pintor que destruía a realidade em um segundo e criava uma nova em seu lugar para satisfazer apenas o seu ideal de beleza, um resumo do artista e de sua obra. Em Paris, as relações hipócritas, superficiais e de conveniência da aristocracia serão registradas pelo narrador como se ele possuísse o dom de fotografar e congelar a alma e os mais secretos desejos dos personagens. Na tentativa de apreender todos os acontecimentos do passado e resignificar o tempo que se foi, o narrador encontra na literatura a maneira de fazê-lo. Através de elementos retirados da memória, ele consegue construir um quadro onde o tempo é o senhor soberano da vida e da sociedade, levando orgulhosos senhores ao esquecimento, elevando figuras degradadas às mais altas posições, destruindo fortunas, nobrezas e os pormenores das genealogias, permitindo que os erros sejam transformados em poeira imperceptível, e que homens e mulheres outrora insuportáveis percam os seus defeitos como fruto de conquistas ou frustrações. Na obra que deixaria para as gerações futuras, o narrador redescobriria a realidade esquecida, amalgamando sensações e lembranças, recuperando, de certa forma, o tempo perdido.  


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