quarta-feira, 24 de junho de 2015

Congos, Fandangos e Reisados

Relendo "Fortaleza descalça" de Otacílio de Azevedo, veio-me à mente uma passagem de "Em busca do tempo perdido" no qual as pessoas que passaram por um determinado caminho estão mortas, bem como as lembranças dessas pessoas. De fato, no texto "Congos, Fandangos e Reisados", que reproduzimos abaixo, Otacílio de Azevedo apresenta um pedreiro, chamado Gorgulho, que nas manifestações folclóricas aparecia como um verdadeiro rei. Entretanto, o tempo passou e as festas não existem mais. Gorgulho se perdeu nas vielas do tempo; o autor, que não expressa no seu texto nada mais do que o apelido e as indumentárias do trabalhador-rei, não sabe nem se à época da escritura do livro - década de 70 do século passado - ele ainda estaria vivo. É difícil compreender o fato na sua plenitude, mas Gorgulho, seus amigos e familiares que viveram, sofreram e se divertiram no início do século XX estão todos mortos, assim como suas lembranças.

Congos, Fandangos e Reisados
Otacílio de Azevedo

"Os Congos, Fandangos, Reisados e, ainda, os Pastoris, tiveram fim, pelo menos como instituição tradicional em Fortaleza, como ocorria por volta de 1918.

Foram essas as grandes diversões populares dos tempos de nossos pais. Seis meses antes do início dessas representações, já se iniciavam os ensaios. Os sons dos tambores, zabumbas e maracás eram ouvidos nos quatro cantos da cidade.

Frequentei, com meus amigos mais chegados, esses festejos folclóricos que se prolongavam até às altas horas da madrugada.

Em grandes terrenos, armavam-se palcos nos quais se representavam as estórias e lendas entremeadas de cânticos e cenas empolgantes, ao som de uma cadência de ritmos envolventes. O Rei e as princesas, envoltos em rendas e cetins, impunham sua majestade e grandeza pelos ares donairosos que assumiam.

Ainda hoje recordo a figura principesca que fazia, naquele esplêndido meio, o Gorgulho, um simples e analfabeto pedreiro que residida na minha rua. Vestido na roupagem de seda colorida, cheia de fitas e arabescos, minúsculas lantejoulas, vidrilhos e brilhantes pedrarias, pavoneava-se e aparecia ao público com gestos de um verdadeiro rei. Seus valetes, de calça de cetim verde, justa ao corpo, colete violeta, clâmide vermelha caindo sobre os ombros e espadas de papelão dourado completavam a moldura daquela corte efêmera mas impressionante.

Quando sentado no trono forrado de fofos de papel de seda salpicado de estrelas, tendo, à guisa de cetro, uma vara coberta de papel dourado, com um grande "S" na ponta, os pés metidos numas reiúnas de soldado, descansando num tablado, sobre um tapete de palha de carnaúba colorida - aí o espetáculo era mesmo empolgante e todos sentiam-se diminuídos por aquela grandeza. A cabeça, uma coroa de flandres pintada de cores diversas dava-lhe um ar diferente, afastando-o do comum dos mortais...

À frente do lugar onde se realizava o pagode, ia-se beber e tirar gosto com caranguejo e comentar os fatos e feitos da festividade. Mesas e cadeiras eram atulhadas pela comida e pelos frequeses.

Muitas vezes, tarde da noite, costumava haver grossa pancadaria e os convivas desapareciam como por encanto. Maior parte das vezes, eram os soldados da Polícia Militar em luta contra os soldados do Exército, à época sérios rivais...

Em 1917 assistimos à última representação oficial, por assim dizer, dessa festividade, ao lado da residência do senhor Álvaro de Castro Correia, alto comerciante e único representante do sabonete "Santelmo" em Fortaleza, considerado, na época, o melhor do Brasil.

Ainda me recordo do príncipe Sueno, cuja indumentária era semelhante à do Rei, faltando-lhe, apenas, a coroa. O "secretário" usava um grande chapéu de abas largas viradas para cima, como os dos cangaceiros de Lampeão, efeitado de pequenos espelhos que brilhavam à luz do acetileno. Também apareciam meninos fantasiados com boleros e saiotes curtos à moda de bailarinas.

Com o decorrer do tempo tudo aquilo se acabou. A chegada do rádio, com os seus programas dançantes - os "bazares" - seus anúncios gritados e permanentes, tudo mudou. Acabaram os reisados, congadas e fandangos. Fala-se muito de que ainda existem, aqui e além, mas, na verdade, acabaram de uma vez. O que resta é propaganda dos departamentos de turismo que procuram, a todo custo e sem resultado, reviver estas festividades legítimas, as quais não mais existem porque não têm mais razão de existir. Tudo que se fizer nesse sentido será simples caricatura daquilo que era feito com intenção verdadeiramente artística e por necessidade orgânica de alimentar o espírito popular.

A essas horas, se é que ainda vive, por onde andará o Gorgulho? Talvez sonha, ainda, com aquele efêmero mas brilhante e magnífico reinado de poucos dias, durante os quais ele realmente vivia, todo-poderoso, debaixo de sua coroa de papelão dourado."

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