segunda-feira, 22 de junho de 2015

Retorno à Balbec

No quarto volume de "Em busca do tempo perdido" há um retorno bem particular. Após um ano da morte da avó, o narrador retorna à Balbec de sua adolescência. Na verdade, ele retorna a uma outra Balbec. Lá, os sentimentos são diferentes, bem como o são as sensações e as lembranças. Lembranças que são arbitrárias, mas que acesas por um pequeno detalhe (como o sabor de uma madeleine no chá - como veremos em outra postagem) voltam à tona com uma força avassaladora. 

"As imagens escolhidas pela recordação são tão arbitrárias, tão estreitas, tão inacessíveis, como as que formara a imaginação e a realidade destruíra. Não há razão para que, fora de nós, um local verdadeiro possua antes os quadros da memória que os do sonho. E depois, uma realidade nova talvez nos faça esquecer, detestar até os desejos pelos quais havíamos partido."

Neste momento do romance, Marcel Proust revisita um tema explorado em outros pontos da história. É a consciência de fatos passados trazidos à vida pela visita ao local onde as lembranças foram guardadas. Outra descrição grandiosa de Proust [Sodoma e Gomorra] na tradução poética de Mário Quintana:

"Acabava de perceber, em minha memória, inclinado sobre o meu cansaço, o rosto terno, preocupado e decepcionado de minha avó, tal como ela estivera naquela primeira noite de chegada, o rosto de minha avó, não daquela que eu me espantara e censurara de lamentar tão pouco e que de seu apenas tinha o nome, mas da minha avó verdadeira, cuja realidade viva eu tornava a encontrar pela primeira vez, numa recordação involuntária e completa, desde que ela tivera um ataque nos Campos Elísios. Essa realidade não existe para nós enquanto não foi recriada por nosso pensamento (sem isso, os homens que estiveram empenhados numa batalha gigantesca seriam todos grandes poetas épicos); e assim, num desejo louco de precipitar-me em seus braços, não era senão naquele instante, mais de um ano após o seu enterro, devido a esse anacronismo que tantas vezes impede o calendário dos fatos de coincidir com o dos sentimentos - que eu acabava de saber que ela estava morta. (...) Pois às perturbações da memória estão ligadas as intermitências do coração. É sem dúvida a existência de nosso corpo, semelhante para nós a um vaso em que estaria encerrada a nossa espiritualidade, que nos induz a supor que todos os nossos bens interiores, as alegrias passadas, todas as nossas dores, estão perpetuamente em nossa possessão. Talvez seja igualmente inexato acreditar que se escapem ou voltem. Em todo caso, se ficam em nós, é a maior parte do tempo num domínio desconhecido em que não têm a mínima serventia para nós, e em que as mais habituais são recalcadas por lembranças de ordem diferente e que excluem qualquer simultaneidade com elas na consciência. Mas se for recuperado o quadro de sensações em que estão conservadas, têm elas por sua vez esse mesmo poder de expulsar tudo quanto lhes é incompatível, de instalar sozinho em nós o eu que as viveu. Ora, como aquele que eu acabava subitamente de tornar-me não havia existido desde essa noite remota em que minha avó me despira quando da minha chegada a Balbec, foi muito naturalmente, não após o dia atual, que esse eu ignorava, mas - como se houvesse no tempo séries diferentes e paralelas - sem solução de continuidade, logo em seguida após a primeira noite de outrora, que aderi ao minuto em que minha avós se inclinara para mim. O eu que eu era então, e que por tanto tempo havia desaparecido, estava de novo tão perto de mim que me parecia ouvir ainda as palavras que tinham imediatamente precedido e que no entanto não eram mais que um sonho; assim um homem mal desperto julga perceber bem junto a si os rumores do seu sonho que vai fugindo. (...) E agora que renascia essa mesma necessidade, bem sabia que podia esperar horas e mais horas, que jamais ela estaria junto de mim; só agora o descobria por que, ao senti-la pela primeira vez viva, verdadeira, enchendo o meu coração até afogá-lo, reencontrando-a enfim, eu acabava de saber que a tinha perdido para sempre."

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