segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Pequeno reboco amarelo

Há poucos dias li na "A Prisioneira" de Proust, uma passagem impressionante. Resumidamente, a passagem é  mais ou menos o seguinte: um escritor está muito doente e lê num jornal a crítica sobre a exposição de um pintor holandês falecido, pouco famoso, autor de uma obra que ele, o escritor, achava tratar-se de uma obra-prima e pensava conhecê-la em todos os detalhes. O crítico do jornal falava exatamente desta obra e dizia da beleza de "um pequeno pedaço de reboco amarelo no muro". Então o escritor doente dizia: "nunca vi este detalhe". E sai, desesperado, para o museu. Ao chegar quase agonizante em frente ao quadro que ele pensava conhecer perfeitamente, observa pela primeira vez alguns pequenos personagens em azul, que a areia era rósea e, finalmente, "a matéria preciosa do minúsculo reboco do muro amarelo". E então o escritor pensa neste instante que era assim que ele deveria ter escrito, que deveria ter construído frases preciosas em si mesmas, como aquele pequeno reboco no muro amarelo. O narrador deixa o escritor de lado e se pergunta: o que faz uma pessoa recomeçar vinte vezes uma coisa que produzirá uma admiração futura tão insignificante para o seu corpo já devorado pelos vermes, como aquele pequeno reboco de muro amarelo pintado com tanta sabedoria e delicadeza por um artista para sempre desconhecido?

Junho/1994.

Nenhum comentário:

Postar um comentário