Mais de um século depois, Marx
continua ajudando a interpretar os fatos históricos. Após um golpe de estado, a
destruição dos direitos sociais e trabalhistas, o perdão das dívidas de grandes
empresas e de grandes bancos e o estranho comportamento dos poderes da República
mostram que o capital – que se beneficia da mais valia, da sonegação, da
ciranda financeira e da corrupção – consegue penetrar todas as cidadelas,
inclusive aquelas aparentemente intransponíveis. Abaixo reproduzimos um
interessante texto de Márcio Sotelo Felipe, que joga um pouco de luz sobre a
situação política e econômica do país há exatamente um ano em que a Câmara dos
Deputados no Congresso Nacional realizou a mais patética sessão de sua história.
ODEBRECHT, O COMITÊ PARA GERIR OS NEGÓCIOS DA
BURGUESIA.
Márcio Sotelo Felipe
“Um
comitê para gerir os negócios da burguesia”. É assim que Marx, no Manifesto
Comunista, se refere ao Estado. A frase de Marx, um tanto quanto retórica,
expressa uma condição estrutural sempre oculta pela ideologia que faz ver a
aparência como essência.
A lista Fachin é um raro momento
em que as sombras se dissolvem. Um raro momento em que se vê as entranhas do
capitalismo. Raro demais para ser desperdiçado em análises que se esgotem na
moralidade dos indivíduos ou em críticas ao sistema eleitoral e reivindicações
por sua reforma, ainda que isto tudo seja pertinente.
A Odebrecht conseguiu livrar-se
de 8 bilhões de impostos graças a algumas encomendas de Medidas Provisórias. Em
meio a denúncias que atingem todo o sistema político, o detalhe escabroso é
pinçado em sua crueza para chocar e atingir o partido que a mídia adora odiar.
Mas nisto onde termina o
“Departamento de Operações Estruturadas” da Odebrecht (e outros departamentos
congêneres das grandes empresas) e onde começa o Estado?
Desde 1995, governo Fernando
Henrique, dividendos de empresas estão isentos de Imposto de Renda. No entanto,
o trabalhador às voltas neste momento com a sua declaração está pagando uma
alíquota de 27,5% caso ganhe por mês a fabulosa quantia de 4.660 reais.
E ganhando essa fantástica
quantia dependerá mais e mais de serviços públicos vitais – saúde e educação –
que serão catastróficos daqui a pouco tempo porque os gastos públicos estão
congelados por 20 anos; mas não para pagar os rentistas parasitários que
abocanham 40% do orçamento da União.
Fundos privados de previdência
esfregam as mãos na iminência de abocanhar uma parte de salários de 4.660 reais
graças à destruição do sistema de previdência pública. O “déficit” da
Previdência é um caso de pós-verdade. A seguridade social, que inclui a
previdência, tem, por força da Constituição, receitas que não entram no cálculo
do governo.
Há uma crise fiscal, mas
desonerações, sonegação e juros nominais da dívida pública tomaram 8% do PIB em
2015. Os jornais desta semana noticiam que o CARF (Conselho Administrativo
de Recursos Fiscais) isentou o Itaú do pagamento de 25 bilhões de Imposto de
Renda e Contribuição Social sobre Lucro Líquido devidos por ganho de capital no
processo de fusão com o Unibanco.
O que é isto tudo se não um
comitê para gerir os negócios da burguesia? O Estado do bem-estar social que
parecia desfigurar ou atenuar o conceito de Marx desaparece. Construído em
grande parte como resposta às lutas sociais, vai sendo aniquilado sob o influxo
de uma tremenda ofensiva de um projeto e de uma visão ideológica a que se deu o
nome de neoliberalismo.
Essa visão ideológica inclui
meritocracia, individualismo, egoísmo social e a crença no mercado como um fato
da ordem natural das coisas, conceitos que, narcotizando as massas, responde
pelo refluxo das lutas populares. No capitalismo do século XIX crianças de 8
anos faziam jornadas de 14 horas. No do século XXI idosos terão sua força de
trabalho exaurida até a morte porque não poderão pagar previdência privada e
não haverá uma pública.
Há um terremoto político quando
se descobre que o comitê dos negócios da burguesia está funcionando sob
propina. Mas não é a propina que explica a operação desse comitê. Ele funciona
sempre, estruturalmente, no capitalismo, mesmo que políticos nunca ponham no
bolso nada a não ser o próprio soldo.
A lista que abala o país não é,
pois, uma questão que deva ser tratada no plano restrito da moralidade das
pessoas ou de uma reforma política que resolva nossos problemas. A lista é a
ponta do iceberg de algo que é estrutural. Agora estamos vendo a promiscuidade
entre sistema político e as classes dominantes e aquele a serviço destas; o
Estado como instrumento de acumulação do capital e de expropriação da riqueza
produzida pelos trabalhadores.
Hoje, findo o ciclo da
social-democracia, já não temos o direito de duvidar da natureza do escorpião
ou de suspeitar da retórica de Marx. Não se transforma a sociedade no interior
de um aparelho – a política institucional – cuja natureza é exatamente impedir
a transformação da sociedade. Isto retoma uma antiga questão da esquerda: o que
estamos fazendo quando estamos no aparelho do Estado?
A experiência do PT termina com
a tragédia pessoal de seus quadros. Preferiu o governo em vez do poder.
Renunciou definitivamente, ao contrário do que nos permitia supor o discurso de
seus primórdios, à organização das massas, à conquista do poder político de
baixo para cima, nas ruas, nos sindicatos, nas organizações de base.
Governou com políticas de
compromisso com as classes dominantes e sequer formulou – porque precisava ser
confiável nessa política de compromisso e conciliação – o que a
social-democracia europeia conseguiu no pós-guerra: bens sociais, saúde,
educação, habitação, etc. Em um cenário econômico internacional favorável,
limitou-se a aumentar o poder de consumo dos miseráveis, capital político que
se esgotou rapidamente. E os trabalhadores não foram ao enterro de sua última
quimera. Ah, a “ingratidão”, essa pantera… enquanto isso a classe média zumbi
tomou as ruas.
A esquerda que supõe possa haver
uma luz no fim do túnel apenas apostando nas eleições de 2018 persiste no erro
de ignorar a natureza do escorpião. Pode-se imaginar que o candidato mais à
esquerda, se ganhar, reverterá sem mais a barbárie social do capitalismo
brasileiro hoje? Irá com canetadas, projetos de leis ou emendas à Constituição
restaurar a CLT, construir uma previdência social digna, investir em saúde,
educação, recuperar o pré-sal para o patrimônio nacional? Com que força
política?
Ao entregar-se de corpo inteiro
à política institucional, renunciando ao poder que pode ser construído nas ruas
e nas organizações populares, nada mais faz do que compor a engrenagem do
sistema, mantê-la e reproduzi-la porque o poder não comporta vácuo. Ou é o
deles ou é o nosso. Se não disputamos, é somente o deles.
E não o disputamos elegendo a
política institucional como o único instrumento de ação política. Nela, só há
lugar hoje para o poder da elite predadora que não vê limites em sua sanha de
acumulação e promove sem qualquer pudor a barbárie social.
Temos uma greve geral pela
frente. Ou construímos um poder alternativo com a força social dos excluídos ou
afundaremos cada vez mais no lodo da política institucional. Apostar apenas em
eleições é jogar água no moinho da barbárie social que está, quase que
literalmente, reduzindo a pó a existência dos brasileiros.
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