quinta-feira, 20 de abril de 2017

O Prof. Josué e as seis propostas

Faleceu no último dia 11/04 o Prof. Josué Mendes Filho, Professor Emérito da Universidade Federal do Ceará. Ele fez a Graduação em Física nessa universidade, o Mestrado na Universidade de Brasília e o Doutorado na Universidade Estadual de Campinas. Como foi um colega e amigo, vou usar um pequeno espaço para pontuar alguns aspectos da personalidade do Prof. Josué, para que fiquem como lembrança. 

Em primeiro lugar há que se destacarem os aspectos relacionados ao docente e ao pesquisador, que nele caminhavam juntos. O Prof. Josué ministrou diversas disciplinas do curso de Física. Particularmente, fui seu aluno no curso de Mecânica Teórica I e acredito que tenha me divertido muito com as equações diferenciais do Symon. No que diz respeito às teorias físicas, acho que o Prof. Josué era um Newtoniano inveterado. Ele acreditava demasiadamente na realidade das "forças". Os modelos que ele criava para interpretar os resultados obtidos no laboratório mostravam isso. Eles eram cheios de "ganchos" - representados pelos dedos e as mãos em movimento - que mantinham os átomos e moléculas conectados por forças poderosas, ou então, quando era possível, o mundo se enchia de osciladores harmônicos simples, no máximo, com acoplamento entre eles. Com isso não quero dizer que o nosso mestre tivesse uma visão simplória do mundo físico. Pelo contrário, com modelos simples ele conseguia modelar diversos fatos experimentais. Um belo exemplo do uso destes modelos foi aquele desenvolvido em sua tese de Professor Titular, onde conseguiu explicar as várias transições de fase do sulfato de lítio e potássio através de triângulos com diversas orientações (representando íons sulfetos), que se encaixavam em losangos maiores, que representavam a célula unitária do cristal.

Para manter um bom clima de trabalho no Departamento de Física, o Prof. Josué ajudou vários estudantes e professores ao longo dos anos de variadas formas. E também se esforçou para ajudar a criar boas condições de pesquisa. No que diz respeito ao Laboratório de Espalhamento de Luz, hoje ele pode ser considerado um dos mais importantes do país na sua área de atuação, contando com oito pesquisadores que desenvolvem pesquisas em diversos tipos de materiais. Tal laboratório foi erguido com muito esforço pelo Prof. Josué, em parceria com o Prof. Erivan Melo, que herdaram bastante conhecimento e habilidades diversas do velho Prof. Sergio Porto. Lembro-me que inicialmente, lá pela década de 80, o laboratório ficava localizado numa sala no piso superior do bloco 929, onde era necessária, periodicamente, a subida de alguém com uma barra de gelo até a caixa d'água para se conseguir refrigerar o tubo do laser de argônio. Está também na lembrança a mudança do laboratório para o andar térreo, no qual foi utilizada a força de aproximadamente uns 16 homens para descer a pedra de mármore que servia de base para o espectrômetro. Esses aspectos de força bruta - ilustrando que muito suor foi derramado literalmente - obviamente caminhavam com a sagacidade e a competência para se conseguir recursos em uma época em que o financiamento para a ciência era bem menor do que é (foi) nos últimos anos.

Às vezes, o Prof. Josué exagerava um pouco no relato dos seus feitos e, para alguns, parecia ser um defeito. Exagerado ou não, tinha a qualidade de falar o que o desgostava diretamente na frente da outra pessoa, o que de certa forma o fazia parecer, às vezes, rude. O importante é que as suas ações eram claras, mesmo no delicado palco do jogo político que se joga normalmente dentro de uma universidade.

O Prof. Josué se orgulhava de sua memória. Certa vez, quando saíamos do laboratório, lá pelas sete horas da noite (o ano era 1999 ou 2000), conversei com ele sobre o livro do Ítalo Calvino "Seis propostas para o próximo milênio", que eu acabara de ler. Falei-lhe do que Calvino considerava serem os valores que o século XX deixaria de legado para o século XXI: a leveza, a rapidez, a exatidão, a visibilidade, a multiplicidade e a consistência. Em cada ponto do legado sugerido pelo escritor italiano, o Prof. Josué tinha uma observação interessante a fazer e o papo, no estacionamento do bloco 928, se estendeu por mais de uma hora. Terminamos a conversa e cada um foi para o seu destino; a discussão, aparentemente, ficara no passado. Umas duas ou três semanas depois ocorreu uma cerimônia no Departamento de Física e, para minha surpresa, o Prof. Josué fez um belo discurso no qual a linha mestra da fala eram exatamente os seis pontos sugeridos por Ítalo Calvino, que ele lembrava com grandes detalhes. 

Vou encerrar por aqui porque a ideia era apenas deixar uns "flashes" de lembranças. Aliás, vou deixar o próprio Calvino encerrar; esperando que sirva de homenagem ao professor: "quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis".

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