domingo, 15 de outubro de 2023

Cem anos de Ítalo Calvino

Há 100 anos nascia em Havana, Cuba, Ítalo Calvino, um dos maiores escritores italianos do século XX. Pouco após o seu nascimento, a família retornou para a Itália, uma vez que os pais eram italianos e naquele momento encontravam-se a serviço no país caribenho. Autor de obras importantes como "O Barão nas Árvores", "O Visconde Partido ao Meio", "Se Numa Noite de Inverno um Viajante", "O Cavaleiro Inexistente", "As Cosmicômicas" e "As Cidades Invisíveis", entre outros, Calvino era um mestre na arte dos contos e dos raccontini, continhos ou pequenas histórias. Em uma de suas obras primas, "As cidades invisíveis", por exemplo, Marco Polo vai contando ao grande Kublai Khan como são as cidades do seu grande império. Mas cada descrição de uma cidade, que consome entre uma e duas páginas, é uma descrição completa fechada em si mesma. De certa forma, nessa obra que considero uma das melhores que li do autor italiano, ele coloca em prática os valores que ele acreditava que a literatura do século XX deixaria de legado para a posteridade: a leveza, a rapidez, a visibilidade, a exatidão, a consistência e a multiplicidade (legado esse que foi explorado em outra belíssima obra, "Seis Propostas para o Próximo Milênio"). Quem aceitar o convite de caminhar pelas cidades invisíveis de Calvino, provavelmente ficará preso nas suas armadilhas, ou subirá a um alto pináculo à espera de que um barco passe por ali e o leve a um outro destino. Como na cidade de Tamara: 

"Finalmente, a viagem conduz à cidade de Tamara. Penetra-se por ruas cheias de placas que pendem das paredes. Os olhos não vêem coisas mas figuras de coisas que significam outras coisas: o torquês indica a casa do tiradentes; o jarro, a taberna; as alabardas, o corpo da guarda; a balança, a quitanda. Estátuas e escudos  reproduzem imagens de leões delfins torres estrelas: símbolo de alguma coisa - sabe-se lá o quê - tem como símbolo um leão ou delfim ou torre ou estrela. Outros símbolos advertem aquilo que é proibido em algum lugar - entrar na viela com carroças, urinar atrás do quiosque, pescar com vara na ponte - e aquilo que é permitido - dar de beber às zebras, jogar bocha, incinerar o cadáver dos parentes." 

Certamente muitos textos de qualidade surgirão destacando os aspectos literários de Ítalo Calvino por causa dessa efeméride, e qualquer tentativa que eu fizesse para destacar as qualidades desse escritor seriam irrelevantes e nada acrescentariam (mesmo porque deixo isso aos especialistas). Dessa forma, escrevo apenas sobre a sua participação como membro do Partido Comunista Italiano. Na verdade, Calvino começou sua vida literária como articulista/ jornalista do L'Unità, órgão do PCI. Após alguns anos, o escritor se desliga da agremiação e passa a publicar regularmente em diversos meios impressos da Itália dos meados do século XX, e continua a produzir até a sua morte, em 1985. Em sua carta de despedida, assevera: "Juntamente com muitos camaradas, eu esperava que o Partido Comunista Italiano se colocasse à frente da renovação internacional do comunismo, condenando métodos de exercício do poder que se revelaram infrutíferos e antipopulares, dando impulso à iniciativa de baixo para cima em todos os campos, lançando as bases para uma nova unidade de todos os trabalhadores, e neste fervor criativo reencontrasse o vigor revolucionário e o impacto nas massas." Deixou o partido, mas o seu sonho por justiça e igualdade entre as pessoas continuou inabalável pelo resto de sua vida.



Para encerrar essas brevíssimas linhas, um pequeno trecho de um conto de 1968 denominado 'A Memória do Mundo', no qual o protagonista trabalha numa firma em que ele e os seus camaradas têm a função de anotar todos os fatos relevantes para servir como lembranças de uma humanidade que está prestes a desaparecer. De fatos relevantes ele passa a anotar também algumas insignificâncias e daí, parte para enfeitar a realidade com algumas mentiras. Um pouco da arte de se criar e se reconstruir a realidade: "A mentira só exclui a verdade aparentemente, você sabe que em muitos casos as mentiras - por exemplo, para o psicanalista, as do paciente - são tão ou mais indicativas do que a verdade; e assim será para os que tiverem de interpretar a nossa mensagem. (...) Ouça: a mentira é a verdadeira informação que temos de transmitir. Por isso não quis me proibir um uso discreto da mentira, quando ela não complicava a mensagem, mas, ao contrário, a simplificava. Em especial nas notícias sobre mim mesmo, acreditei-me autorizado a ser pródigo em detalhes não verdadeiros (não creio que isso possa atrapalhar alguém). Por exemplo, minha vida com Ângela: eu a descrevi como gostaria que fosse, uma grande história de amor, em que Ângela e eu aparecemos como dois eternos namorados, felizes em maio a adversidades de todo tipo, apaixonados, fieis". 

Nenhum comentário:

Postar um comentário