sábado, 14 de julho de 2018

Cem anos de Bergman

Há exatos cem anos nascia o cineasta sueco Ingmar Bergman. Autor de filmes memoráveis como Persona, O Sétimo Selo e Morangos Silvestres, entre outros, é cultuado por muitos admiradores do cinema. Particularmente, acho Morangos Silvestres (Smultronstället) uma das mais belas obras do cinema. Assisti esse filme pela primeira vez numa sala de projeção no Conjunto Nacional, em São Paulo, tendo saído pela manhã de Campinas, onde morava, especificamente para esse fim. Na sessão das treze horas, apenas quatro ou cinco pessoas ocupavam o imenso salão de cadeiras vazias... era um ambiente misterioso para uma obra reveladora de grandes facetas da mente e da alma humanas. 


Prof. Isak Borg (Victor Sjöström) e Sara (Bibi Andersson) em Morangos Silvestres.

O filme Morangos Silvestres conta a história de um médico e professor, Isak Borg, que vai da cidade de Estocolmo para Lund de carro com sua nora para receber uma homenagem na universidade pelos seus 50 anos de profissão. A história toda acontece ao longo de um dia durante o qual se intercalam sonhos e realidade. O filme possui muitos simbolismos. Ele começa com um sonho do Prof. Borg pouco antes do amanhecer e termina também com um sonho logo após ele deitar-se à noite. No total são quatro sonhos, o que já poderia sugerir uma ideia de totalidade, ou ao menos, uma complementaridade entre a realidade e o sonho.

No primeiro sonho o Prof. Borg encontra-se num local desconhecido e desabitado da cidade onde os relógios não têm ponteiros, ou seja, como se o tempo não passasse. Ele vê então a chegada de uma carruagem desgovernada no interior da qual encontra-se um caixão de defunto. A roda da carruagem engancha num poste e os cavalos que a puxam ficam forçando para frente e para trás até ela quebrar e o caixão escorregar, ficando parcialmente aberto. Quando o professor se aproxima do caixão, a mão do cadáver que se encontra fora o agarra e quando ele olha para o corpo que está sendo carregado percebe que o mesmo está com os olhos abertos e para sua grande surpresa é o próprio professor! 

Ao acordar desse primeiro sonho o Prof. Borg, interpretado magistralmente por Victor Sjöström, resolve ir de carro com sua nora, ao invés de avião como estava combinado com todos, para desgosto de sua ajudante de muito anos, Agda. Ela então, chateada, sugere que esta é a atitude de um velho resmungão e egoísta. Durante a viagem o Prof. Borg tem uma dura conversa com a nora Marianne, interpretada por Ingrid Thulin, e se detém para descansar num local onde sua família passava o verão há muito tempo atrás: o campo dos morangos silvestres. 

Enquanto Marianne vai dar um mergulho num lago próximo, o Prof. Borg descansa na relva e sonha pela segunda vez naquele dia. Então, a imagem clara da manhã se dissolve em imagens ainda mais claras das lembranças, nas palavras do próprio Isak. Ele caminha até a casa e se reencontra com os seus familiares do passado. Lá estão os irmãos, a mãe, o tio e a prima Sara, o amor de sua vida. Enquanto Sara, interpretada pela atriz Bibi Andersson, está colhendo morangos silvestres para presentear o tio surdo que faz aniversário, ela é assediada pelo irmão do Prof. Borg, Sigmund. Sara está indecisa entre Isak, com sua inteligência e frieza, e Sigmund, um sujeito bonachão e brincalhão. 

Após assistir a cena do almoço e a dúvida de Sara, ele acorda com uma garota pedindo uma carona pois está indo para a Itália com dois amigos. A garota, que também se chama Sara e é interpretada pela mesma Bibi Andersson, está em dúvida com quem dos dois amigos ela deve namorar, uma vez que um deles é muito racional e o outro é sensível e religioso. Essa coincidência parece revisitar o passado do próprio Prof. Borg com seu irmão e sua prima (Sara se casara com Sigmund e tivera seis filhos). O simbolismo não passa despercebido pelo professor e ele comenta sobre a semelhança física da garota Sara com sua prima, que no momento tem setenta e cinco anos.

Mais à frente o carro que transporta as cinco pessoas quase se choca com outro que movimentava-se em sentido contrário. Isak e Marianne dão carona ao casal que vinha no outro veículo após o mesmo ter sofrido avarias. Entretanto, o casal fica brigando verbal e fisicamente na frente dos três jovens que estão no carro, lembrando ao Prof. Borg a sua própria vida pregressa quando era casado com Karen, já falecida. Por conta disso, Isak e Marianne pedem para o casal sair do carro. Mais adiante todos param num posto de gasolina na cidade aonde vive a mãe quase centenária de Isak. O frentista reconhece o antigo médico do lugarejo e o elogia como "o melhor médico do mundo". Isak pensa em voz alta que não deveria ter nunca saído dali. Isak vai com Marianne visitar a sua velha mãe e a nora percebe quão fria e dura era a avó do seu marido, Evald.

Novamente na estrada com a direção do carro sob Marianne, Isak sonha pela terceira vez. Inicialmente ele vê a sua prima Sara numa casa com o seu irmão Sigmund. Ela toca piano e a seguir os dois se dirigem a uma mesa onde será servido um jantar. A seguir, o velho Isak entra em uma casa onde vai passar por um teste de Medicina. O avaliador faz alguns questionamentos que ele não sabe ou não lembra a resposta. No exame prático o avaliador mostra uma mulher que está com o rosto ligeiramente inclinado e lhe pergunta o diagnóstico. Isak toca o seu pescoço e conclui que ela está morta. Quase imediatamente a mulher levanta a cabeça e dá uma sonora gargalhada. Isak, com o argumento de sua idade avançada - já tem 78 anos - pede que o avaliador seja indulgente. Entretanto o julgador o reprova por incompetência, frieza, egoísmo e falta de compreensão. Finalmente o avaliador o chama para um pátio ao lado e diz que quer lhe mostrar mais alguma coisa. A uns poucos metros Isak consegue ver a sua esposa Karen o traindo com outro homem. Karen diz que Isak, com sua típica frieza e atitude superior, vai perdoá-la. 

Pouco antes de chegar a Lund, Marianne tem uma conversa com o seu sogro e diz que agora entende a frieza de Evald, parece que vem da família, da mãe de Isak, do professor... Ela fala ainda que está grávida mas Evald não quer o filho mas mesmo assim ela vai tê-lo. Após a cerimônia em que o Prof. Isak Borg recebe um título da Universidade, os três jovens batem à sua janela e cantam uma canção para homenageá-lo. O Prof. Borg tem uma conversa com o filho Evald; Marianne vem se despedir dele de uma maneira amigável sugerindo uma reconciliação entre eles, ou ao menos uma compreensão após o dia de convivência. O Prof. Borg dorme e sonha pela quarta vez. Ele caminha novamente pelo claro caminho dos morangos silvestres guiado pelas mãos da prima Sara que o leva até a beira do lago. De lá ele acena e recebe de volta o carinho dos pais que o retribui com sorridentes acenos. 

Bergman no seu livro Imagens afirma que ao fim e ao cabo o filme se deveu principalmente a Viktor Sjöström que pegou o texto e inseriu a sua própria experiência "o seu sofrimento, misantropia, indiferença, brutalidade, dor, medo, solidão, gelo, calor, acidez e tédio (...) não era mais o meu filme, era o filme de Viktor Sjöström". Enfim, um filme belíssimo, com atuações excepcionais, cheio de poesia e reflexões acerca da vida e sobre a aproximação da morte. Um filme para dezenas e dezenas de reflexões. Parabéns, Bergman!


Marianne (Ingrid Thulin) e Prof. Isak Borg (Victor Sjöström) em Morangos Silvestres.


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