sábado, 7 de julho de 2018

A morte de Bergotte

Na última postagem lembrei de pesadelos atribuídos ao personagem Bergotte, de Em busca do tempo perdido, no quinto volume (A prisioneira) de Marcel Proust, na tradução de Manuel Bandeira e Lourdes Sousa de Alencar. Duas páginas à frente Proust faz uma curiosa descrição da morte do escritor Bergotte. Embora a narrativa não seja tão triste quanto aquela relativa à morte da avó do narrador, entretanto, trata-se de uma interessante reflexão sobre as obras de arte que são deixadas pelos artistas, os seus legados, que de certa forma parecem lhes fornecer um caráter de imortalidade. Mais alguns belíssimos parágrafos do gênio francês: 

“Morreu nas circunstâncias seguintes. Por causa de uma crise de uremia sem maior gravidade lhe haviam prescrito o repouso. Lendo, porém, num crítico, que na Vista de Delft de Ver Meer (emprestada pelo museu de Haia para uma exposição holandesa), quadro que ele apreciava muitíssimo e julgava conhecer em todos os pormenores, havia um panozinho de muro amarelo (de que não se lembrava) tão bem pintado que era como uma preciosa obra de arte chinesa, de uma beleza completa em si mesma, Bergotte comeu umas batatas, saiu de casa e entrou na exposição. Logo nos primeiros degraus que teve de subir sentiu umas tonteiras. Passou em frente de alguns quadros e teve a impressão da secura e da inutilidade de uma arte tão factícia, e que não valia as correntes de ar e de sol de um palazzo de Veneza, ou de uma simples casa à beira-mar. Enfim, chegou diante do Ver Meer, de que se lembrava como sendo mais luminoso, mais diferente de tudo o que conhecia, mas onde, graças ao artigo do crítico, reparou pela primeira vez numas figurinhas vestidas de azul, na tonalidade cor-de-rosa da areia e finalmente na preciosa matéria do pequenino pano de muro amarelo. As tonteiras aumentava; não tirava os olhos, como faz o menino com a borboleta amarela que quer pegar, do precioso panozinho de muro. ‘Assim é que eu deveria ter escrito’, dizia consigo. ‘Meus últimos  livros são demasiado secos, teria sido preciso passar várias camadas de tinta, tornar a minha frase preciosa em si mesma, como este panozinho de muro’. Não lhe passava, porém, despercebida a gravidade das tonteiras. Em celestial balança lhe aparecia; num prato a sua própria vida, no outro o panozinho de muro tão bem pintado de amarelo. Sentia Bergotte que imprudentemente arriscara o primeiro pelo segundo. ‘Não gostaria nada’, disse consigo, ‘de vir a ser para os jornais da tarde a nota sensacional desta exposição’.

Repetia para si mesmo: ‘Panozinho de muro amarelo com alpendre suspenso, panozinho de muro amarelo’. Nisso deixou-se cair subitamente, num canapé circular; subitamente também, cessou de pensar que estava em jogo a sua vida e, recobrando o otimismo, disse consigo: ‘É uma simples indigestão causada por aquelas batatas mal cozidas, não há de ser nada’. Nova crise prostou-o, ele rolou do canapé ao chão, acorreram todos os visitantes e guardas. Estava morto. Morto para sempre? Quem o poderá dizer? (...) não existe razão alguma em nossas condições de vida nesta terra para que nos julguemos obrigados a praticar o bem, a ser delicados, mesmo a ser corteses, nem tampouco para que o artista culto se julgue obrigado a recomeçar vinte vezes um trabalho, cuja admiração que suscitará pouco lhe há de importar ao corpo comido pelos vermes, como o panozinho de muro amarelo pintado com tanta ciência e requinte por um artista desconhecido para sempre apenas identificado pelo nome de Ver Meer. (...)

Enterraram-no, mas durante toda a noite fúnebre, nas vitrinas iluminadas, os seus livros, dispostos três a três, velavam como anjos de asas espalmadas e pareciam, para aquele que já não existia, o símbolo da sua ressurreição.”

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