Na última postagem lembrei de pesadelos atribuídos ao personagem Bergotte,
de Em busca do tempo perdido, no quinto volume (A prisioneira)
de Marcel Proust, na tradução de Manuel Bandeira e Lourdes Sousa de Alencar. Duas
páginas à frente Proust faz uma curiosa descrição da morte do
escritor Bergotte. Embora a narrativa não seja tão triste quanto aquela relativa à morte da avó do narrador, entretanto, trata-se de uma interessante reflexão sobre as obras de arte que são deixadas pelos artistas, os seus legados, que de certa forma parecem lhes fornecer um caráter de imortalidade. Mais alguns belíssimos parágrafos do gênio francês:
“Morreu nas circunstâncias seguintes.
Por causa de uma crise de uremia sem maior gravidade lhe haviam prescrito o
repouso. Lendo, porém, num crítico, que na Vista
de Delft de Ver Meer (emprestada pelo
museu de Haia para uma exposição holandesa), quadro que ele apreciava muitíssimo
e julgava conhecer em todos os pormenores, havia um panozinho de muro amarelo
(de que não se lembrava) tão bem pintado que era como uma preciosa obra de arte
chinesa, de uma beleza completa em si mesma, Bergotte comeu umas batatas, saiu
de casa e entrou na exposição. Logo nos primeiros degraus que teve de subir
sentiu umas tonteiras. Passou em frente de alguns quadros e teve a impressão da
secura e da inutilidade de uma arte tão factícia, e que não valia as correntes
de ar e de sol de um palazzo de
Veneza, ou de uma simples casa à beira-mar. Enfim, chegou diante do Ver Meer,
de que se lembrava como sendo mais luminoso, mais diferente de tudo o que
conhecia, mas onde, graças ao artigo do crítico, reparou pela primeira vez
numas figurinhas vestidas de azul, na tonalidade cor-de-rosa da areia e
finalmente na preciosa matéria do pequenino pano de muro amarelo. As tonteiras
aumentava; não tirava os olhos, como faz o menino com a borboleta amarela que
quer pegar, do precioso panozinho de muro. ‘Assim é que eu deveria ter escrito’,
dizia consigo. ‘Meus últimos livros são
demasiado secos, teria sido preciso passar várias camadas de tinta, tornar a
minha frase preciosa em si mesma, como este panozinho de muro’. Não lhe
passava, porém, despercebida a gravidade das tonteiras. Em celestial balança
lhe aparecia; num prato a sua própria vida, no outro o panozinho de muro tão bem
pintado de amarelo. Sentia Bergotte que imprudentemente arriscara o primeiro
pelo segundo. ‘Não gostaria nada’, disse consigo, ‘de vir a ser para os jornais
da tarde a nota sensacional desta exposição’.
Repetia para si mesmo: ‘Panozinho de
muro amarelo com alpendre suspenso, panozinho de muro amarelo’. Nisso deixou-se
cair subitamente, num canapé circular; subitamente também, cessou de pensar que
estava em jogo a sua vida e, recobrando o otimismo, disse consigo: ‘É uma
simples indigestão causada por aquelas batatas mal cozidas, não há de ser nada’.
Nova crise prostou-o, ele rolou do canapé ao chão, acorreram todos os
visitantes e guardas. Estava morto. Morto para sempre? Quem o poderá dizer?
(...) não existe razão alguma em nossas condições de vida nesta terra para que
nos julguemos obrigados a praticar o bem, a ser delicados, mesmo a ser
corteses, nem tampouco para que o artista culto se julgue obrigado a recomeçar
vinte vezes um trabalho, cuja admiração que suscitará pouco lhe há de importar
ao corpo comido pelos vermes, como o panozinho de muro amarelo pintado com
tanta ciência e requinte por um artista desconhecido para sempre apenas
identificado pelo nome de Ver Meer. (...)
Enterraram-no, mas durante toda a
noite fúnebre, nas vitrinas iluminadas, os seus livros, dispostos três a três,
velavam como anjos de asas espalmadas e pareciam, para aquele que já não
existia, o símbolo da sua ressurreição.”
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