quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Pálpebras cerradas

Na última parte do "Em busca do tempo perdido", O tempo redescoberto, de Marcel Proust, na tradução de Lúcia Miguel Pereira, há uma longa reflexão acerca do passar do tempo e do seu efeito inexorável sobre as pessoas que conseguem resistir ao açoite da morte, o envelhecimento. Nessa passagem, numa matinée na casa da princesa de Guermantes, o narrador relata o encontro com várias pessoas da sociedade que ele frequentava quando moço, só os reconhecendo através de alguns traços remanentes ou pelos harmônicos característicos das vozes que permanecem praticamente imutáveis com o passar do tempo. Um nobre orgulhoso que não apresentava mais tanta soberba, vaidade e arrogância, um velho irreconhecível que ainda possuía vivacidade apesar da fisionomia modificada, uma velha bruxa com o seu cabelo branco e miríades de pessoas com as faces deformadas, os abdômens arredondados, os antigos esbeltos corpos curvados. São páginas chocantes que mostram ao narrador, e ao leitor, as consequências do passar dos anos.

"Logo se verificava não ser devido a nenhum acidente de carro, mas a um ataque, o coxear de alguns homens que já tinham, como se diz, um pé na sepultura. Da sua, entreaberta, certas mulheres meio paralíticas, como a sra. de Franquetot, pareciam não poder soltar inteiramente os vestidos presos na lápide, e, incapazes de aprumar-se, infletidas, de cabeça baixa, descreviam uma curva que era de fato sua posição atual entre a vida e a morte, à espera da queda final. Nada impediria o movimento da parábola que as arrebatava, elas tremiam se tentavam erguer-se, e seus dedos já não conseguiam segurar coisa alguma.

Embuçados nas cãs, alguns semblantes já tinham a rigidez, as pálpebras cerradas dos moribundos, e os lábios, agitados por perpétuo tremor, pareciam murmurar as orações dos agonizantes."


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