sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Velho camarada


De "O tempo redescoberto", sétimo volume do "Em busca do tempo perdido", de Marcel Proust, na tradução de Lúcia Miguel Pereira. Ainda na matinée na casa da princesa de Guermantes, o narrador continua a encontrar pessoas completamente irreconhecíveis pelo passar do tempo. A partir do maior ou menor encanecimento, o narrador infere a quantidade de anos que se passaram. E se detém em detalhes que contam muito de uma vida, como os olhos fundos em olheiras da viscondessa de Saint-Fiacre, a face pálida de um triste fantasma que substitui o outrora garboso Sr. Legrandin. Com um antigo amigo, o narrador apresenta um momento de hesitação: a pessoa com quem tem a oportunidade de conversar, quase nada possui do colega que ele conhecera no passado. 

"Encontrei ali um antigo camarada que, durante dez anos, eu vira quase diariamente. Alguém nos quis apresentar de novo. Encaminhei-me então para ele, e ouvi-o dizer, numa voz que logo reconheci: "É para mim um grande prazer, depois de tantos anos". Mas que surpresa a minha! A voz parecia emitida por um fonógrafo aperfeiçoado, porque, se era a de meu amigo, provinha de um sujeito corpulento e grisalho, para mim desconhecido, dando portanto a impressão de ter sido alojada artificialmente, por engenho mecâncio, nesse velho gordo igual a tantos outros. (...) Decididamente, parecia-me outro, quando, de súbito, ouvi, provocada por palavras minhas, sua risada, sua risada solta de antigamente, a que correspondia à perene mobilidade do olhar."

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